sábado, abril 05, 2008

174. «ANA» - Crítica de João Gonçalves

[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]

A estreia, na semana que agora se encerra, do filme Ana de António Reis e Margarida Cordeiro e a passagem de Manoel de Oliveira por Cannes, são o pretexto para se falar nestas páginas de cinema português. Polémico, atribulado e, por vezes, fascinante, confunde-se de algum modo com o País contraditório que o gerou.

Ana
ou a raiz
afectuosa


Há um País que eu não conheço. Há um País que dificilmente sentirá a passagem para a Europa. Há um País no qual a CEE terá dificuldade em entrar.
Experimente-se o Norte. Mais concretamente: Trás-os-Montes, Miranda do Douro. As horas que separam a cidade desses sítios e caminhos escondidos são os anos e os séculos das distâncias. Uma vez percorridas, permanecem tão ou mais inatingíveis do que outrora. Há um País enorme do qual voluntariamente o tempo nos separa como um estranho frenesim nos faz ser daqui e mais nada.
Partamos, pois. De manhã, muito cedinho. Um sol acabado de nascer, as árvores, as sebes, os campos de uma cor assim como ensonada, adormecida. Os carros despontam no horizonte numa arrancada firme sem destino aparente. Tem por fronteira Portugal.

Assim puderam longamente
amadurecer...


A paisagem parada. Sucalcos, montes, longos verdes, longas pastagens. Foi por aqui que começámos. Começou a fazer-se de norte para sul, por expulsão e conquista, pelas fortalezas da Costa até Santarém.
Regular no traçado, grosseiramente paralela à linha de costa, desenha com esta um rectângulo alongado no sentido do meridiano, que constitui uma das figuras de Estado mais harmoniosas e mais simples. Ao Norte do Douro, a fronteira ajusta-se aos confins da Terra Portugalense que, desde o meado do século XI chegava ao Minho e se foi alargando para o interior. Palavras de Orlando Ribeiro que bastam para olhar da história, a fronteira.. Cá dentro ficámos à espera de outros dias, de outra luz.
É Miranda ao sol fresco de uma manhã de sempre. O barulho do riacho é o som que não conheço. Uma mulher atravessa a corrente com audácia. Domina o pequeno barco como nós dominaremos nossos carros. As estradas que não conhecem o alcatrão, os caminhos que já não esperam futuros. Por aí descem animais e seus guardadores.
Há muitos séculos descia a História e nós aprendíamos a dizer não.
Assim puderam longamente amadurecer, ao abrigo de fronteiras que são as mais velhas da Europa, os traços próprios da alma portuguesa e que a individualizam tão nitidamente em relação aos seus vizinhos peninsulares. Dum lado, um povo orgulhoso e exaltado, pronto para todos os sacrifícios e para todas as violências que lhe inspirará a preocupação da dignidade; do outro lado, mais melancolia e mais indecisão, mais sensibilidade ao encanto das mulheres e crianças... (P. Birot).

As emoções da infância

Na nossa vida há um tempo imóvel e o que se lhe segue, prolonga indefinidamente essa paragem, essa suspensão. Fixemo-nos nessa imagem primordial: Mãe, Ana, Portugal.
O leite recolhe-se directamente de um seio materno ou, então, busca-se nos animais, entre palhas. É levado para dentro de casa, onde, na selha com água levemente aquecida, a Avó dá o banho primeiro à criança. A planície de verdes e castanhos é um imenso e inesperado infantário. O melhor do mundo, vigiado pela Mãe, Ana. O que aí se partilha sobreleva o entendimento. Mas sente-se. Ou pressente-se.
Como toda a beleza, Ana não é mais que um pressentimento, uma ténue vertigem de uma beleza inacessível. São momentos que nos escapam, são tempos que não nos pertencem. De Ana para a filha; da filha para o neto... Uma cadeia silenciosa só quebrada pela necessidade de explicar o novo. Aí se unem passados e futuros, nas mãos crepusculares de Ana e no tacto maravilhado das crianças. Nascemos ali. Portugal nasceu ali.
Tudo, porém, se transfigura. E a criança olha o futuro com uma saudade infinita. Ana traz o passado ao colo, envolvido em terra, chuva, vento. E a ternura é uma colcha ou uma manta antiga.
Falam António Reis e Margarida Cordeiro. Falam de Ana. Assim. As emoções da infância que nasceu de novo, sob outras formas, com outros rostos, outras. Dadas a madrugadas e a longos percursos feitos pelas margens das árvores, no convívio silencioso das crianças, no aconchego de um tosco soalho de aldeia. Em Miranda do Douro.
O trabalho intenso para que as transmutações surjam e permaneçam na obra inteira e já independenmte de nós.

Apenas coisas

Só aparentemente, Ana é algo de remoto. As coisas simples de que a obra de António Reis nos fala, dizem tanto ou mais que uma viagem guiada ou um manual de etnografia. Ou uma vulgar história de Portugal. As antenas, os rádios, as televisões, os carros, o vídeo, os livros, etc, etc, não chegam para dar um nome às coisas. Darão - quanto muito - a perspectiva desassossegada daquilo que é. Os silêncios encontram-se noutras paragens, noutros saberes, noutros mundos.
Nas madrugadas fechadas de Ana, nos espaços cruzados de Miranda, visto de lá ou daqui, de algum modo se descobre a raiz. A Raiz Afectuosa: criança, mãe, terra, sangue de Ana.
Com os anos
a pouco e pouco
a raiz afectuosa
penetrou no fundo da terra
até chegar
ao mais pequenos
e mais antigo
veio de lágrimas.

Os versos de António Osório entrelaçam-se inesperadamente com o filme de António Reis e Margarida Cordeiro. Da mesma forma que eu, humilde espectador, me deixo embalar por este suave cântico de outrora, entoado num lugar que eu não conheço mas que faço meu, como Ana faz de Miranda todos os recantos de um País que esquecemos. Feito de coisas, apenas, forças elementares:
O sangue que se dá,
a pele que se ama,
a passagem das nuvens,
a voz de um amigo,
o escuro reboco do tempo,
ele próprio lava corrupta,
a única, única vida,
o corpo, a carne,
o futuro dos homens.


João Gonçalves

Jornal Semanário, págs. 41 e 42, de 11 de Maio de 1985.