quarta-feira, junho 29, 2005

073. CONVERSA COM MARGARIDA CORDEIRO - Entrevista por Ilda Castro - 3

Conversa no Mogadouro
Margarida Cordeiro
nasceu em 1938, Mogadouro

(Conclusão)

E a produção de curtas-metragens?

Não vi. Aqui em Trás-os-Montes também não é possível! Mas em relação ao documentário tenho uma experiência muito gira. Eu tinha um partis pris, e uma pessoa com partis pris é uma pessoa idiota; eu dizia que o documentário não é trabalhado, é inventado, porque a realidade não acontece como surge no documentário. Logo, o documentário será uma arte menor. Depois, vi em Ardèche um documentário sobre um nazi: eram dois filmes, um sobre um nazi e o outro o making of desse filme. Foi de noite e eu tive vómitos, tive uma reacção visceral e converti-me ao documentário. Era uma coisa pungente, chamava-se Unser Nazi, O Nosso Nazi. Foi feito por um cineasta que entrou como actor no Brandos Costumes, do Seixas Santos. Uns tipos deslocavam a câmara em círculos à volta do nazi. O nazi não era um actor era de facto um nazi, daquele que se tinha conseguido apanhar, um individuo de meia idade que acedeu a fazer a entrevista. Era tipo pergunta, resposta: "Fez isto e isto e isto?", "Fiz", "E o que é que sente?", "Nada, era o meu trabalho". A certa altura, começa-se a levantar dentro de nós um sentimento muito estranho, que é o de que estes também a torturar o nazi! Por quem me vou dividir? Isto só analisei muito tempo depois. O nazi repugnava-me, porque era um nazi verdadeiro e estava voluntariamente ali, não tinha nenhuma sensação do mal; ao mesmo tempo era idoso – e vem a ideia do pai –, os outros eram novos. Nós não sabíamos para que lado nos havíamos de virar; eu tive de vomitar, coisa rara em mim; não choro em filmes, quando muito posso-me rir. Aí disse: podem fazer-se coisas lindíssimas a partir seja do que for, é preciso é ter talento.

Alguma vez pensou esquecer completamente o facto de durante dez anos não obter apoio financeiro para o projecto e...

Era só a comparticipação portuguesa, a que eu tenho direito, porque eu pago impostos. Era só a contribuição portuguesa, porque o resto eu arranjava lá
fora. As co-produções é assim que funcionam, dá-se aqui uma fatia do orçamento e depois os co-produtores avançam. Não posso é passar para o apoio externo sem a quotização portuguesa. E foi isso que me fizeram, sempre me impediram na primeira fase. Cheguei a ficar em segundo lugar, eles não me punham nunca no fim da lista, andaram a gozar comigo mesmo. É opinião minha e dos meus amigos.

Nunca pensou pôr uma pedra em cima de tudo isso, comprar uma câmara de vídeo e começar a fazer os seus filmes, já noutra perspectiva?

Não, não. Eu não tenho jeito para filmar, não sou boa técnica. Tenho ideias. Normalmente, o operador ajuda-me, eu digo: "Quero isto, ponha a técnica e faça-me isto desta maneira". Tenho ideias visuais muito nítidas. Por exemplo, em relação ao Pedro Páramo tenho as cenas todas na cabeça, podia fazer esquemas. Cheguei a ir duas vezes ao México, havia sítios que inclusive já tinha escolhido.

O filme passa-se no México, portanto.

Só os exteriores, que até nem são muitos, para ser mais baratos. Os interiores far-se-iam aqui para rentabilizar, estava tudo já esquematizado.

Acha que o facto de ser mulher pode ter tido alguma importância para não ter recebido a comparticipação?

Eu pensei nisso no princípio. Primeiro: "Não vou ser paranóica, não me dão agora dão-me depois!"; depois, pensei: "Será por ser mulher?". Mas não era! Porque a Maria de Medeiros fez, fez a Teresa Villaverde e fez a Margarida Gil. E eu concluí: "Não, não é por ser mulher, então porque será? Será porque eu pus o meu nome primeiro no Rosa de Areia e o do António a seguir?" Mas não. As pessoas que foram enterrar o António, os seus colegas do cinema, portaram-se muito mal. Pena não tinham nenhuma – eu não vi, mas pessoas minhas amigas viram. Também não era por eu estar a querer fazer cinema sem o António, portanto. Finalmente, gostava que me explicassem esse mistério, porque se repetiu, foi uma recusa tão nítida, que houve qualquer motivo que se prolongou nos vários júris. Saber qual é, não sei. Gostaria que me dissessem. Não é por eu ser mulher, não foi por não ter cumprido as exigências, apresentei os documentos na hora certa, etc. Faltou-me uma coisa: ter uma boa cunha, nas antecâmaras perversas das atribuições de subsídios para o cinema.

O cinema em Portugal faz-se através de cunhas?

É só cunhas, não tenho a mínima dúvida. E os cineastas portugueses, conheço bastantes, trabalham não pelo cinema, mas porque precisam de ganhar algum dinheirito, dado que eles não têm uma profissão regular fora do cinema. Os subsídios são-lhes dados pelo Estado, eles nem pagam impostos, coitados, têm uma sorte doida. São os mesmos de ano para ano, "tu ganhas este ano, daqui a três anos ganhas tu", e fazem estas estratégias. Esta é uma das partes do mistério. Agora, porque é que me seleccionaram sempre para fora, a mim, eu? Não sei. Eles pertencem a gangs pequenos, uns com os outros e eu não pertenço a nenhum gang.

O que é mais importante para si, na vida?

A amizade, a amizade.

Como é que vê a história do cinema português desde 1974, altura em que começou a participar?

Eu não sou idónea nisso. E se já não era antes, agora muito menos. Não vou falar sobre o cinema português, que aliás acho que não existe. Há películas filmadas, muitos metros, muitos quilómetros de película filmada, mas cinema? Diga-me algum, ou alguma obra menor que o cineasta a seguir tenha melhorado um pouco. Se me disser, eu respondo: "Ah! Pois, não tinha visto!" Mas a minha teoria é que não há cinema português. Há uma porção de pessoas que impressionam película, com tendências de teatro filmado, místicas num caso, thriller noutro e, ainda, episódios descarnados da guerra no ultramar, melodramas...

Em relação à forma como as pessoas fazem ou conseguem fazer cinema, acha possível que se venha a alterar?

Na questão chamada cinema, sou pessimista. Acho que as pessoas já deram provas de que não fazem nada e continuam a receber subsídios. E as pessoas novas, que poderiam ter pontos de vista diferentes – pelo menos havia a suspeita que poderiam fazer filmes bons – não têm oportunidade. Portanto, há muita gente que poderia fazer bons filmes certamente, se a política de subsídios fosse mais justamente distribuída; mas não era com júris destes, que são tão "isentos".

A sua experiência como psiquiatra influenciou o seu trabalho?

No cinema não. Tenho uma faculdade de visualizar cenas desde criança. Ponho facilmente uma ideia minha em cena, no cinema. Com facilidade sei qual é o melhor ponto de vista, como se resolve na cena seguinte. No Jaime, descobri que sei pôr imagens em movimento. E sons. Sei fazer isso.

Há quantos anos não apresenta o projecto?

Há dois anos.

Quais são actualmente os seus projectos?

Viver em paz. Fazer felizes as pessoas que se chegam a mim.


(FIM)

Ilda Castro - Cineastas Portuguesas 1874-1956, págs 92-107, Câmara Municipal de Lisboa, 2000.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Precisão: Margarida Cordeiro é, em verdade, de Bemposta, a terra de seus pais, onde mantém a casa de família e onde muitos conviveram com ela, com a mãe Ana (saudosa professora de tantos agora adultos!) e com o António Reis - é concelho de Mogadouro, certo, mas é aldeia raiana, do Planalto Mirandês, suficientemente conhecida, pelo menos pela sua barragem do Douro Internacional.
Bemposta é desse Trás-os-Montes rural e belo que eles sempre honraram.

Cf. - http://www.bragancanet.pt/bemposta/html/personalidades.htm#2net

(Já agora, a propósito do título: os falantes locais diriam "Conversa em Mogadouro" e não "no"...)

4:43 da tarde  
Blogger LowRider said...

esta biografia está agora em http://www.bemposta.net/personalidades/personalidades.htm#2

12:27 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home