sexta-feira, janeiro 20, 2006

130. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Jorge Leitão Ramos

[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]

Trás-os-Montes

Um filme, isto é, imagens e sons organizados a passarem 24 vezes por segundo, pode, de repente, ultrapassar essa sua simples condição e ascender ao nível do símbolo, da arma, do facto social e político importante.
Tal é o caso, neste momento, de «Trás-os-Montes».
E no entanto dir-se-á, à primeira vista, paradoxal que tal aconteça com um filme onde não há armas, nem ocupações de terras, nem operários em greve, nem esquerda em movimento, nem nada daqueles sinais exteriores e aparentes que levam as pessoas a rotular um filme de «político», de «interveniente».
Foi no entanto deste filme que a direita pediu a pura e simples destruição. Foi este filme que o conhecido órgão da Imprensa regional «Mensageiro de Bragança» (edição de 7/5/76) classificou de sinistro, de farsa, de afronta, de faccioso, de alienante, de macacada e de outros epítetos afins. E, afinal de contas, porquê?
Porque «Trás-os-Montes» é, sem reservas, um acto de amor.
Acto de amor por um povo, por uma terra, por uma cultura.
Porque «Trás-os-Montes» grava, indelevelmente, os sinais de uma resistência secular, as pedras, as lendas e os rostos de um Nordeste cadinho de antigas civilizações, espaço concreto onde se fica e se parte, se vive e se morre. Porque, finalmente, «Trás-os-Montes» é um filme que fala dos explorados e dos esquecidos como nunca ninguém falou neste País, sem paternalismo, sem condescendência, antes com o calor fraternal de quem solidário se sente, companheiro se afirma. Daí a verticalidade, a firmeza, desta obra que se não limitou a registar, a olhar, mas soube, previamente compreender uma realidade, amá-la, e só depois sobre ela se debruçou, atenta, nervosa, calorosamente brilhante.
«Trás-os-Montes» é daqueles filmes que abrem portas. Poucos filmes o fazem em toda a História do cinema. Este é um deles. Nunca como aqui o cinema atingiu a completa fusão daquilo que artificialmente se convencionou chamar de «géneros». Divisão operada no campo do cinema como se o real (o real do filme, entenda-se) fosse espartilhado e cindível em pequenas unidade autónomas. António Reis e Margarida Martins Cordeiro escolheram a globalidade, o filme total. Por isso «Trás-os-Montes» não é nem documento nem ficção, não é prova [prosa] nem poesia. «Trás-os-Montes» é um filme abertamente inteiro, capaz de conter em si, em acabada unidade, todos esses vectores.
Esta película é ainda, por outro lado, um meticuloso trabalho sobre os materiais cinematográficos. A imagem e o som, claro, mas sobretudo o tempo, a duração, a exacta definição dos clímaxes e dos períodos de descontracção, das esperas e das angústia, da beleza ofuscante e da tristeza. Dir-se-ia que este filme materializa os próprios sentimentos, como transforma em poesia os factos duros e concretos. Dir-se-ia que «Trás-os-Montes» está no exacto instante em que tudo se queda, por entre rios e montes e gritos e partidas, todas as viagens sem regresso, os nossos sonhos e a urgência, a intranquilidade e por fim a paz dos amplexos de amor, os melhores.
Por tudo o que «Trás-os-Montes» levanta a direita teme-o.
Politicamente está provado (se necessário fosse) que a subversão da sociedade burguesa se pode fazer com a simplicidade de um gesto de amor de um povo. É que aí, nesse espaço concreto e vital, pressente-se uma força inaudita, insuspeitada por muitos, sabe-se das noites e das albas em que se chora, se aguenta e se resiste.

n/ assinado

Jornal Diário de Lisboa, Sete Ponto Sete, pág. 7, de 19 de Junho de 1976