segunda-feira, setembro 06, 2004

014. DUAS OU TRÊS COISAS QUE SABÍAMOS DE NÓS

"Pouco sei de nós que possa dizer, e que queira dizer. Sei – entraram uma vez, há muitos anos, na minha cabeça e no meu coração e lá ficaram para sempre – alguns versos perdidos e pouco mais (e o cobrador sabe sempre / quando o silêncio tem pó / e é perfeito). E outras coisas, mais secretas e mais fugazes, imagens breves, uma palavra ou outra, o último transido abraço poucos dias antes da sua morte.
Andávamos com os «Poemas quotidianos» no bolso e partilhávamo-los avaramente, nos cafés e nas longas noites solitárias da adolescência, como um fogo comum, um sinal que nos identificava uns aos outros como membros da mesma tribo errante; éramos todos jovens, ou julgávamos que éramos, e acreditávamos, naqueles tempos controversos, que nos havia sido dado o dom de, pela poesia, compreender e mudar o mundo e a vida. António Reis não o sabia, mas todas as palavras que então possuíamos eram as suas.
E um dia a notícia correu pelas esplanadas do Carmo e passou rapidamente de boca em boca. O António Reis estava a preparar uma página de poesia para o «Jornal de Notícias»; tinha convencido o dr. Nuno Teixeira Neves a entregar o número da Primavera do seu «Suplemento Literário» aos jovens poetas do Porto (o que quer que isso de jovens poetas do Porto fosse e era, asseguro-vos, algo muito misterioso) e queria poemas jovens e primaveris (o que quer que isso fosse também). Acorremos em massa, os jovens, os poetas e a Primavera.
A primeira reunião foi em casa do António Reis, nas margens do Douro, do lado de Gaia. Entrámos todos timidamente, quase com medo, o Chico, o Manuel Bernardo, o Rui, o Madureira, o Eduardo Guerra Carneiro (e tantos de que já não me recordo!), como se profanássemos um santuário ou a nossa própria intimidade. Levávamos os bolsos cheios, em pequenos cadernos, folhas soltas, incipientes livros, com o melhor que tínhamos: o coração. E o Reis recebeu o nosso coração com o seu enorme coração aberto. (É provavelmente piegas, isto, mas não consigo dizê-lo de outro modo. Porque é verdade?
Nunca tínhamos lido os nossos poemas em público. Lemo-los para o Reis e ele ouviu-nos, durante horas, com infinita paciência, e não menos infinita ironia (muitas vocações terão ali acabado, naquela noite terrível, e foi o Reis que lhes deu, com doces e duras palavras paternais, o golpe de misericórdia!). Dessa bela e nocturna noite recordo o fatídico momento da leitura do meu poema. Eu também nunca tinha lido um poema alto, e comecei a fazê-lo com o orgulho agressivo de quem espera o pior e sabe de antemão que esse pior será injusto. Antes de mim, o Manuel Bernardo tinha lido o seu, era qualquer coisa do género «Amanhã vamos fazer as coisas mais belas do mundo, etc., etc.», e o Reis tinha comentado, fulminante, ainda o último verso ecoava perplexamente na sala: «Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje, Manuel Bernardo!».
Já não me lembro do poema que li, perdi-o entretanto para sempre em alguma gaveta das muitas casas por onde passei. Lembro-me só que, terminada a leitura, o Reis me perguntou: «Você conhece o Ponge?». Eu não conhecia, e o Reis foi lá dentro e trouxe-me um livro: «Acho que você há-de gostar». Eu não sabia se aquilo era um sim ou um não; mais tarde soube que era um sim, o poema saiu na página da Primavera do JN, aliás ao lado do do Manuel Bernardo e dos poemas dos outros todos!
A partir de então começámos a encontrar-nos mais vezes, e ainda enchemos com os nossos imaturos sonhos e rimas outra página do «Suplemento Literário» do dr. Teixeira Neves. A casa do Reis já era pequena, e imprópria para tantos poetas e tanto barulho. Mudámo-nos para cafés fora do tempo e do espaço: o Piolho, o Estrela, o Magestic. E, quando, às duas da manhã, os cafés fechavam, para o salão de cabeleireiro da Rua de Guedes de Azevedo onde o Madureira tinha arranjado emprego, o «Salão Capri», de sua graça (acho que ainda existe).
Depois, aos poucos, os poemas começaram a escassear e a figura do Reis a perder, com a sua fácil amizade, algum mistério. Ficámos reduzidos a uma pequena meia dúzia; o Reis continuou a falar-nos de poetas e de poesia e nós a ouvi-lo religiosamente, até que ele partiu, finalmente, para Lisboa. A última memória que tenho das sessões poéticas do «Salão Capri» é uma longa correria, debaixo da chuva, entre o Piolho e a Rua de Guedes de Azevedo. O Reis ia à frente, com o inevitável casaco de couro aberto ao vento, e nós atrás, sobraçando folhas dactilografadas e rindo (o Madureira queixava-se que deixara cair e perdera, nessa noite, algures sob a tempestade, um livro inteiro de poemas, coisa em que todos – que tínhamos também, cada um, as suas mentiras – fingíamos cumplicentemente acreditar). Tentei várias vezes, em vão, escrever um poema a partir da imagem desses seis ou sete poetas primaveris em louca correria atrás dos «Poemas quotidianos», fustigados, os poetas e os poemas, pela mais prosaica das chuvas. Mas a poesia, aprendi depois (e à minha custa) não se faz só com memórias, embora continue sem saber muito bem como ela se faz; foi algo que o Reis nunca pôde ensinar-nos, ele que, no entanto, nos ensinou, nesses dias misteriosos da juventude, coisas primárias e quotidianas sobre nós próprios e sobre a nossa juventude que poucos poetas do mundo (eu é que sei!) nos poderiam, como ele fez, ensinar.
Nunca mais o vi, até poucos dias antes da sua morte, no dia dos 50 anos do Chico. Receei então, quando dei subitamente com ele ao fundo da sala, que não me reconhecesse. Tantas coisas se tinham passado entretanto, tantas coisas mudado! Mas ele abraçou-me com tal força que soube então, comovidamente, com todo o meu corpo, que, afinal, algo essencial não mudara. E o meu coração rejubilou como se eu fosse jovem outra vez, e apertei-o também com quanta força tinha. Não com tanta força porém, hoje que sei que me despedia dele para sempre, como quereria ter podido então fazê-lo. Mas essas são coisas, indecifráveis e invioláveis, que estão para além da memória e das imagens, um património fundo e secreto que nenhumas palavras me poderão roubar e que nos pertence só aos dois, a mim e ao Reis."

Manuel António Pina


Regina Guimarães (Directora) - A Grande Ilusão, n.º 13/14 (Out. 91 a Mai. 92), pág. 4-5, Edições Afrontamento, Porto, 1992.