quinta-feira, julho 07, 2005

079. "ROSA DE AREIA" - Crítica de João Bénard da Costa - 2

[Festival de Berlim 1989]

O crepúsculo inicial ou a aurora final
Um filme

(Conclusão)

Com Deus diante dos olhos

É, pelo contrário, uma rima poderosa que unifica os episódios que se sucedem entre o belíssimo plano élfico das raparigas a correr na clareira do bosque (plano que fortemente recorda outro semelhante que existe em Ana e com a mesma função) e o episódio da ressurreição do morto. É a «secção» mais violenta e agreste do filme, desde que abandonámos um imaginário à Corot (o tal plano a que chamei élfico) e os discretíssimos rumores (guizos, chocalhos, sopros, brisa) da descida da fraga que ecoa o de Trás-os-Montes, e entrámos nas grutas e no oculto.
No alto de um monte, o vento é fortíssimo, muito mais implacável na sua estridência do que os corpos esvoaçantes que começam a evocar a guerra que parecem ver, mas de que apenas nos é dado esse off sonoro. Depois, os ruídos tornam-se mais misteriosos, dir-se-ia que «raspando» à própria imagem, como se o discurso de horror fosse mais o dos sons do que o das palavras. Um imenso travelling atira-nos para o fundo de uma cova num imaginário surreal, até um dos mais fabulosos planos do filme em que a câmara se imobiliza perante um cão negro e cego que parece arrancado ao mais tenebroso bestiário barroco, a Dionísio Minaggio e aos insólitos jardins dos governadores espanhóis de Milão do século XVI.
A essa imagem alucinante (que me evoca igualmente o plano da raposa n'A Caça, de Manoel de Oliveira) sucede-se a do poço com água amarela, que lentamente sobe e extravasa numa analogia mais misteriosamente horrível. E é depois que se sucedem as sequências do boomerang, da invocação de António Reis e do regresso da alma doente (outro fio oculto para Ana) com a composição soberba da imagem (o espelho, o corpo do jovem).
É, precedido pelo rufar do tambor da mesma mulher de negro, entramos no episódio que certamente mais dará que falar: a leitura do processo e sentença do porco homicida, na Vila de Castelo Branco, em Março de 1428.
Ao contrário da guerra (figurada na banda sonora, como disse) ao contrário do «episódio» posterior do distribuidor do pão (relator do que só ao longo entrevemos) o processo do porco é inteiramente figurado, com personagens vestidas à época e reconstituição do patíbulo. E se o horror sonorizado ou narrado (as violências das mortes) funcionava por elipse, aqui funciona por visualização, «quadro vivo», na própria monstruosidade kafkiana do processo e do facto (verídico a histórico). Mostruosidade que atinge o paroxismo quando o juiz afirma que, em cumprimento de preceito legal e teológico (baseado numa passagem do livro do Êxodo) significou ao porco a sentença capital, «olhando nos olhos o animal criminoso» e com «Deus diante dos olhos» condena o «culpado» a ficar «pendurado na potência até à morte» e «aí ficará longo tempo, até apodrecer, para memória da enormidade do seu crime e para incitar à reflexão os outros que poderiam querer imitá-lo».
O realismo da sequência introduz vertiginosamente o irrealismo da visão e a irrisão de uma justiça que procura, para o animal, justificar-se com os mesmos fundamentos que utiliza para humanos. Abstendo-se de qualquer excesso (não vemos morrer o porco) António Reis e Margarida Cordeiro perceberam que só essa visualização (pela sua carga de insólito, de absurdo) podia servir de correlato à violência não visualizada, que a nossos olhos – ao contrário daquela – já seria banal pela quotidiana invasão de imagens semelhantes.
O que justifica essa visão é a sua diferença de natureza e de objecto. Sendo o mesmo, o horror é diverso e daí a circularidade desses vários «episódios» carentes de «alimento, ajuda humana e vida».
Por isso também, essas chacinas não podem ficar confinadas a um passado remoto. A mancha amarela que a rapariga, mais tarde, risca no chão, associável à da água do poço, reenvia a outro círculo em que o tempo histórico se une com o da ficção científica. O círculo das imagens é tão perfeito como o dos sons. E as palavras são como o vento que passa.
Tudo é imagem. Tudo é fragmento. Tudo é uno.

Espaço, caça, pátria

Na quarta das Elegias de Duino, Rilke fala de uma misteriosa «promessa». Os amantes, diz, prometem-se Weit, Jagd und Heimat (Espaço, Caça e Pátria). Os que se reúnem pelo amor, situam-se no Weite, o espaço, ou, mais precisamente, o «largo». É neste espaço alargado, dilatado, aberto, que terá lugar a «caça». O Heimat, a pátria, o lugar de regresso, e o terceiro momento da «promessa», mas esse momento não está situado no tempo. Como diz Rilke, não é «uma das estações do ano secreto». A «pátria» é, mais aproximadamente, a abolição do tempo e a sua reabsorção num novo espaço que a Décima Elegia chama
        Stelle, Siedelung, Lager,
        Boden, Wohnort (Lugar,
        Residência, Terreno,
        Solo, Morada)

É uma semelhante promessa que me parece anunciar-se e enuncir-se na Rosa da Areia de Margarida Cordeiro e António Reis.
Já me referi ao mistério do «eu» e do «tu» no diálogo final, que insinua um olhar bifronte, uma dualidade amante.
Essa dualidade, esse olhar começa por pousar-se no espaço de Trás-os-Montes, espaço já mitológico nos filmes dos dois autores, pela referência que de Trás-os-Montes e Ana unem esses filmes a este no que é muito mais do que um décor. Rosa da Areia não começa em Trás-os-Montes, mas a parede nua inicial (o «muro do tempo» para voltar ao léxico jügeriano) só se descerra para nos levar a ver crianças «profundamente mergulhadas na noite» que a voz do poeta não desperta, mas parece introduzir a sonhos semelhantes dos das crianças de Trás-os-Montes e Ana (sobretudo ao sonho do miúdo doente em Ana, velando pela avó).
Logo a seguir, se afirma esse espaço, libérrimo e solto, o espaço inconfundível dos filmes anteriores e das aparições anteriores. Esse espaço é, também, o espaço da montagem, tal como esta foi entendida pelos cineastas russos com que, desde Jaime, António Reis tem secretas e electivas afinidades: Dovjenko, Tarkowski, Paradjanov. Um olhar muito incauto pode dizer que em Margarida Cordeiro e António Reis, como nos cineastas citados, não há montagem, no sentido retórico do termo. Mas não há filmes mais milimetricamente montados, não há filmes onde a montagem não seja tão respiratória, não há filmes onde montagem e espaço se confundam de forma tão absoluta e tão totalizante.
Basta ver com atenção esse prodigioso início, desde a seara dovjenkiana, até ao travelling da cega; desde o aparecimento primeiro da imensa mole granítica (o vento, o vento) até à visitação do anjo andrógino de calças amarelas que a cega acompanhará, desde o plano da apanha da batata até ao da giesta e da constituição do grupo germinal.
Que propõe o anjo à rapariga cega e, depois, às outras aparições? No sentido rilkeano, uma caça ou uma caçada (Jagd) em que a imaginação não é jogo de imagens (visuais e sonora) mas a própria substância do mundo, esse mundo a que se dirigem por «tu», com medo e assombramento.
Explicita-o o episódio da igreja («ancestral, silenciosíssima e vazia» como no poema de Cristóvão Pavia) explicita-o a associação (feita do diálogo) da insensatez à beleza, da frieza à compaixão. E explicita-o, sobretudo, a magnífica encenação do texto de Montaigne, novamente confiada ao velador inicial. Ao princípio, move-se como se estivesse num aquário, num elemento líquido, até que a câmara recua e descobrimos a assistência a quem se dirige. O aquário volve-se em palco ou tela e o cinema é expressamente convocado (filme dentro do filme) para essa caça às imagens, colocada sob o signo da raposa.
Caçada, para além da poesia, num mundo de amére beauté, ou na mais forte imagem de Rilke, do «primeiro grau do terrível». E é a uma ascensão nessa beleza e nessa terribilidade que somos conduzidos no episódio que acima evoquei, perante esse «vento pleno dos espaços do mundo» também referido nas Elegias. O último degrau dela é a ressurreição do pai morto («demasiado tarde») e o lindíssimo texto zen do homem perseguido por um tigre que caiu num poço onde outro tigre o esperava.
É depois dessa narração, culminando a mise-en-scéne desenvolvida ao longo do que chamei «a caça», com um domínio e tensão plásticos a que só, eventualmente, foge a «sequência» do espancamento na igreja (a única no filme que me suscita reservas) que se faz referência ao «crepúsculo inicial da história» no que é, para mim, o movimento visualmente mais impressivo de todo o filme. É quando «a beleza extrema desses corpos frágeis», antes do fim da noite, emerge no primeiro nu dos filmes de Cordeiro e Reis e no movimento da criança que abre a porta e se perde na noite. É uma composição magrittiana que culmina esse reinado da mise-en-scéne e o ciclo do surreal.
Saint-John Perse vem então chamar-nos, por outras palavras, a cette terre jaune, notre délice, no regresso à pátria, ou seja às moradas. E o filme adquire então a sua dimensão plenamente cósmica, em que esta terra e esta beleza são apenas um lugar entre mil milhões, mil milhões, mil milhões.
Regressa o anjo, regressa o imaginário telúrico, enquanto explode o cogumelo atómico e a paisagem parece liquefazer-se, tão carnal e tão abstracta como nas Nymphéas de Monet. O amarelo dá lugar ao rosa e o eu e o tu dissolvem-se na «mesma pessoa... a mesma imagem, talvez...».
Do «crepúsculo inicial da história» regressamos à «aurora final», fechando-se o círculo que é a mais contrastante das metáforas utilizadas no filme. Do fundo dele, brota a água de diversas cores que une as nascentes terríveis às nascentes de harmonia, os crepúsculos sangrentos aos crepúsculos pacificados.
Rosa de Areia é uma figura perfeita, carregando o simbolismo mágico de todas as formas perfeitas. Em cinema, é a mais bela versão do texto hindu do Matsya Purana que Malraux evocou na introdução a La Metamorphose des Dieux. «O regresso ao real» pertence sempre a um ciclo de aparências em que o afloramento do sagrado incomunicável só pode prolongar a inundação».
António Reis e Margarida Cordeiro ousaram segredá-lo no filme em que o cinema revela o que separa a visão da aparência da própria aparição. Dela, teceram os mais inextricáveis fios, sabendo que a tapeçaria ficará, como a de Penélope, para sempre inacabada, porque nela, simultaneamente «se desenham e apagam todas as formas».

FIM

João Bénard da Costa

Jornal Diário de Notícias, págs. 12-13, de 26 de Fevereiro de 1989