terça-feira, julho 05, 2005

078. "ROSA DE AREIA" - Crítica de João Bénard da Costa - 1 (Actualizado)

[Festival de Berlim 1989]

O crepúsculo inicial ou a aurora final
Um filme

Le temps s’en va, le temps
s’en va, ma Dame;
Las! Le temps non, mais nous
nous en allons

        Pierre de Ronsard


Em Berlim, Fevereiro de 1989, Rosa de Areia, o último filme de Margarida Cordeiro e António Reis, teve estreia mundial. Já estamos por demais habituados a estas primeiras núpcias de filmes portugueses no estrangeiro para que o facto choque alguém Devia chocar, mas não choca. Também não chocará quando daqui a bastante tempo (um ano? dois? três?) Rosa de Areia for finalmente distribuído em Portugal, eventualmente, até, primeiro na televisão (primeira também – honra seja feita – a apostar no filme) e só depois numa sala de cinema. Continuará a não chocar se o público deixar a dita sala às moscas. E chocará um bocadinho – mas não muito, é fait divers – se uma douta comissão – como sucedeu com Ana – vier a declarar ex cathedra que o filme não tem qualidade. Um dia, depois, eu sei. Mas também sei que a longo prazo estaremos todos mortos. E para nos ressuscitar só fica o filme.
Não quero ser ave agourenta. Queiram alguns (não é preciso invocar o Santo Nome em vão) que as coisas se passem de modo diferente e de modo diferente se passarão. Já alguns, só alguns, quiseram que o filme existisse (RTP, Secretaria de Estado da Cultura, Fundação Calouste Gulbenkian) e o filme existe. Mas, para ser inteiramente sincero, não creio, não creio que se vá além disso, nem que o filme seja recebido, em Portugal, de modo diverso do que o foram Jaime, Trás-os-Montes, Ana, os três sublimes filmes anteriores de Margarida Cordeiro e António Reis.
Neste pessimismo só eles me não acompanham. Os grandes visionários podem ter dúvidas, podem ter muitas noites de agonia, mas a sua fé move montanhas. E já é muito dissonante que eu comece este texto com tanto pessimismo. Por isso, a ele não torno. Porque vos vou falar de uma das grandes obras fundadoras e fundamentais que o cinema já nos deu. Perante ela, acreditamos que tudo pode estar ainda no início, esse início donde nos falam António Reis e Margarida Cordeiro.
Pegando no epígrafo de Ronsard, só nós é que nos vamos. O tempo não, o tempo não, minha senhora.

Tratar por tu o universo

Por isso, em Rosa de Areia, o tempo pode ser nenhum (rigorosamente indefinido como em tantos planos acontece), pode ser a Idade Média, o século XV, o século XVI, ou pode ser o tempo futuro, o tempo de que Carl Sagan nos fala noutro plano do filme. Por isso, também o termo plano é pobre e particularmente desajustado. Dizer plano-sequência (e, na verdade, o filme é a soma e súmula de 97 planos a que se costuma chamar assim) não me ajuda, nem ajuda a entender a prodigiosa construção do filme. Porque não há diferença de significação e de significado, entre um plano de segundos de uma seara ondulante, ou de um campo de flores às vezes pacificado, e uma sequência de quatro ou cinco minutos que narra uma história: o porco executado ao abrigo de uma prescrição mosaica; o relato da imolação pelo fogo de centenas de camponeses esfomeados; a história do pai que ressuscitou dos mortos para dar de beber à filha um vinho feito de sol, de poeiras e de chuva.
Precisamente depois do episódio da execução do porco, precisamente depois do plano que a ele se segue – o mais erótico e críptico do filme – onde vemos os carrascos, de tronco nu, moles de músculos arrancados a uma revisitação cottafaviana do peplum italiano, a lavarem-se do sangue do animal, precisamente depois, dizia eu voltamos a ver as Parcas que desde o início nos conduziram nesta peregrinação. Estão junto a rochas e montes, como saliências deles e recitam um texto védico que nos pergunta para onde vão as meias-luas, para onde se apressam as virgens de diferentes rostos, porque nunca param as águas, porque nunca descansa o vento, porque nunca descansa o espírito. Que relação obscura existe entre o episódio anterior e esse plano (e já expliquei quão mal utilizo esses termos)? Pode responder-se que existe uma relação poética, como se pode chamar poema cinematográfico a todo o filme. Mas a palavra ou a expressão só não é redutora se a entendermos etimologicamente (no sentido da poiésis) e nos esquecermos de qualquer conotação com as definições pasolinianas de «cinema-poesia». Não há cinema mais directo, menos subjectivo (mesmo que se pense na «subjectividade livre» de Pasolini) do que o cinema de Margarida Cordeiro e António Reis. Jamais os autores penetram na alma dos seus personagens (se existem personagens e se têm alma) adoptando a sua psicologia ou a sua língua, para continuar a seguir a teoria do autor de Teorema.
Essa penetração, mesmo entre eles, parece impossível. No final, uma voz em off pergunta ou insinua que «é preciso, talvez, escolher um fio, ao acaso». Obtém como resposta (ou como continuidade) que «a ideia destas histórias é tua, e não sou eu que vou interferirnelas». E as últimas palavras do filme, junto à terra nua que fora também (pelo ecrã da parede) sua imagem inicial, dizem «e, no entanto, será que houve, jamais, alguma coisa, nalgum lugar, nalgum tempo?».
Quem é o «tu» a que se atribui «a ideia destas histórias»? Quem é o «eu» que não vai interferir nelas?
Como Bachelard um dia escreveu (no prefácio à tradução francesa do Ich und Du, de Martin Buber), a questão é irrelevante quando transcende o substancialismo do primeiro pronome pessoal: «Que importam as flores e as árvores, o fogo e a pedra, se não amo e não tenho lar? É preciso ser dois – ou, pelo menos, ai de nós, ter sido dois – para compreender um céu azul, para invocar uma aurora. As coisas infinitas, como o céu, a floresta e a luz só acham nome no coração daquele que ama. A brisa das planuras, na sua doçura e mansidão, é o eco de um suspiro enternecido. Por isso, a alma humana, enriquecida por um amor eleito, anima as grandes coisas entre as pequenas. E pode tratar por tu o universo, porque conhece a embriaguês humana do tu».
Este texto de Bachelard é, porventura, a melhor explicação originária de Rosa de Areia e da singularidade, inocente e perversa, do seu olhar. Muitos excertos de L’Air et les Songes podiam ser também citados. Porque este é um filme «que trata por tu o universo», um filme sobre o ar e os sonhos, as flores e as árvores, o fogo e a pedra, o céu e a montanha, a luz e o som. E é essa grande coisa que é o cinema que nele se anima, tão convocada pelo olhar mais inicial, como pelo olhar mais crepuscular, num círculo em que o tempo mensurável e o tempo do destino são concêntricos. E, na passagem de uma terminologia bachelardiana a uma terminologia jüngeriana, Rosa de Areia é também o filme que nos recorda que é quando a noite é mais densa que o orvalho é mais fecundante.
Bachelard e Jünger teriam amado esta Rosa do Deserto, manhã de crepúsculos, crepúsculo de manhãs.

Um ordenado rigor

Disse o suficiente, julgo eu, para se ter já percebido que Rosa de Areia, ao contrário de Trás-os-Montes e de Ana, não tem um fio narrativo, pelo menos na acepção convencional do termo. Ténue era esse fio nos filmes anteriores, mas existia. Em Trás-os-Montes, transportavam-no as crianças, através da sua maravilhosa iniciação à magia e aos ritos. Em Ana, transportava-o a personagem titular, essa avó telúrica para quem a visão de um cometa e o apelo de uma vaca constituíam a mesma aura de sacralidade.
Rosa de Areia – apesar do lugar que no filme tem a mesma paisagem primeva e matricial – Trás-os-Montes, sempre como lugar de origem e lugar de fim – não segue essa estrutura guiada ou centrada. Os únicos guias no mundo deste filme, no tempo deste filme, são os autores, tão expostos quanto secretos para usar palavras deles. E expostos – mais expostos ainda do que nos filmes anteriores – porque a ordenação das imagens não obedece a outra lógica que não a do seu próprio imaginário, nunca tão assumido e tão fulgurante como aqui. Secretos – mais secretos ainda do que nos filmes anteriores – porque nenhum mensageiro se introduz entre eles e a mensagem que cada plano é. Nos planos iniciais julgamos encontrá-lo, quer no velador do sono das crianças, (aquele que lê um obscuro texto de Kafka que fala de «uma pequena comédia», de «uma inocente ilusão») quer na rapariga cega que um travelling acompanha, entre searas e ventos, paralelamente à câmara, na profundidade de campo, até depois se virar para ela – e para nós – do plano afastado até ao plano próximo.
Reencontramos muitas vezes ou algumas vezes essas personagens, se for legítimo chamar-lhes assim, mas não são mais condutores do que todos os outros que iremos conhecendo ao longo do filme. Esses, como todos, são relevos de um sonho oueds temporários onde nasce a rosa do deserto, para citar uma frase da brevíssima sinopse do filme. A sua missão – se missão tem – é apenas a de presidir à conformação dessa flor, a de nos acordarem ou adormecerem para a sua efémera fragrância. Quem são? Não sabemos, mas acompanhamo-los.
Do mesmo modo, guia não é o tema musical que ouvimos durante o genérico, as Variações Sinfónicas, de César Franck. Depois delas, nunca mais ouviremos música no filme e não prenunciam sequer uma estrutura a que a forma «variações» se possa aplicar. Num filme de tantos temas, não é possível «variar», mas apenas prosseguir, adensando. Por isso, depois, só há lugar para os sons e os silêncios – imagens sonoras tão relevantes como as imagens visuais – na banda som mais bem trabalhada de qualquer dos filmes de Cordeiro e Reis (e quem viu Trás–os–Montes e Ana sabe já da importância que os autores lhe deram nesses filmes).
Em duas sequências, voltamos a ouvir algo a que convencionalmente se pode chamar música. São as sequências em que surge uma mulher toda de negro vestida com um boomerang e depois com um tambor associadas ao plano em que se faz referência a guerras passadas, violências passadas, paroxismos e excessos. Como fantasma de um chefe guerreiro, ou do «soldado isolado» referido pouco antes, no diálogo, essa mulher – que nunca antes vimos e nunca mais veremos – parece simultaneamente desposar e chorar tal violência, ficando no filme como nota mais aguda dela. Com ela, a banda sonora explode, na percussão ou no silvo, em ritmos que, uma vez mais, tanto podem ser originários como prenunciadores de dissonâncias futuras.
Será por acaso que essa sequência – a mais musical – é a mais violenta?
Será por acaso que a ela se sucede o plano em que um dos autores – António Reis – surge no filme de costas para comandar o regresso da alma penada? («Vem, alma errante! (...) Vem comigo, alma! Para tua casa! Ao abrigo das tempestades, do vento e da noite escura!»).
Não o creio. As libérrimas associações do filme jamais parecem comandadas por acasos e nenhuma escrita automática é invocável a propósito deste filme, onde a ordenação mais oculta é a mais rigorosa.

(Continua...)

João Bénard da Costa

Jornal Diário de Notícias, págs. 12-13, de 26 de Fevereiro de 1989