054. "ANA" - Crítica de João Bénard da Costa-2
(Conclusão)
Nesse fabuloso plano-sequência (mais uma vez demoradamente fixo) a avó ocupa um canto, com a dobadoura, e o miúdo ocupa o outro. Ela não se mexe, quase ausente. O miúdo pergunta apenas: "O que é a Mesopotâmia?". Fundem-se os saberes e as culturas até à mudança de plano. Tudo são hipóteses. E a "lição" continua sob o leit-motiv constante dos princípios masculino e feminino (jangada-pelota, barco de vida barco de morte) enquanto a avó recebe da rapariga os ovos de pata.
Depois deixa-se de ouvir a voz de Octávio e este entra sozinho na igreja, num racord abrupto permitido pela imagem do carvalho, ao fundo da porta aberta do templo românico. Todas as imagens matriciais foram reunidas. No mundo original e originário vai entrar o prazer.
Por aqui (porta da igreja, plano dos morangos, das melancias, travellings incessantes sobre campos de matizados, o banho das mulheres) Ana estabelece essa continuidade com Jaime e Trás-os-Montes de que acima falei. São as raízes impossíveis de arrancar, a terra na sua mais poderosa imagética telúrica (dos poemas gregos a Dovjenko) que povoavam a "loucura" de Jaime e os contos de Trás-os-Montes (a sequência do domus de Bragança). Mas António Reis e Margarida Cordeiro guardam-se de visões idílicas. Ou melhor dito, sabem que os jardins do Éden são também os da árvore do bem e do mal. Um copo que se parte.
E sobre o miúdo doente "que bem guardado parecia" há os fantasmas "dentro de si mesmo", "de que ninguém o pode defender". "Preso às lianas da sua vida inteira", mundo de eclipses, de luzes, de mistérios, de nomes, entra no sonho, um dos mais belos sonhos do cinema, suscitados pelo gesto catártico do copo quebrado. É o bando dos pássaros, tão rápido quanto ameaçador, são as rochas, o abandono ("oh, como se abandonava!"); os terríveis leitos dos rios já secos das antigas mães". Até regressar a imagem da Avó, guardadora de tudo, até desses sonhos.
E a magia continua nos feirantes associados à convalescença (como em Stars in My Crown o estavam à doença) com a rapariga na bola, o piquenique das melancias, o fabuloso raccord das frutas com os gansos. A ligação entre o olhar puro e o olhar perverso, o grande onirismo depois da grande paz. O espectáculo.
Espectáculo que se funde e difunde, depois, nos campos amarelos, nas espigas, no trigo, que já participam dessa tonalidade onde o sonho e a cultura penetraram. O ritmo do filme acelera-se lentamente (há a primeira imagem dum morto) como se a magia se propagasse a tudo e tudo fosse diverso, permanecendo único. A voz off fala-nos de "jóias de folha de centeio", "jóias de insectos torturados" e a metáfora não dobra retoricamente a imagem, desposa-a. Só então percebemos como desde o sonho tudo foi contaminado por outra luz em contraponto da evocação crepuscular da Mãe Ana. Esta, recordando um episódio antigo, repartia as luzes e as sombras. A criança, despertada do sonho para a magia do espectáculo e a magia da vida, "banha" tudo na luz onírica. No seu olhar desperto (jamais coincidente com o da câmara) tudo se abre em maravilha, como a avó lhe ensinara ao evocar o eclipse. Os fios de água, as folhas de centeio, os insectos, introduzem ao mundo onde natura e cultura se entrelaçam. E a música (Bach) entra no filme, numa figura análoga à de Trás-os-Montes quando ouvíamos o Stabat Mater de Pergolesi. Só que, mais uma vez, o percurso é de sinal inverso. Em Trás-os-Montes, Pergolesi "preparava" para a partida do protagonista, para o comboio, para a demoradíssima crispação das coisas que se despedaçavam. Em Ana, Bach religa (no sentido etimológico da palavra religião) o ciclo de magia ao da morte e este ao da ressurreição.
Bach (e a reaparição do cavaleiro) preparam para o último passeio da Mãe Ana, para o espaço criado pela figura, para as "árvores nobres". Não no sentido de algo que se perde mas no sentido profundo de transmissão.
Mãe Ana aproxima-se do lago oval e murmura o nome de "Miranda", a vaca, sinal da sua ligação indestrutível ao ciclo vital. A morte entrou no filme (o azul, as mãos com sangue) não como destruição, nem sequer como aceitação, mas como ascenção suprema duma linha que não se vê quebrar.
Tudo se torna ainda masi suave e azul, até que ela sai do campo (após o longo e último passeio final), ficando a imagem da paisagem onde para sempre se inscreve. Resta-lhe percorrer os passos iniciáticos da morte, num ritual em tudo paralelo ao do início e do nascimento. Dá de comer a Miranda, sobe vagarosamente as escadas (que antes a víramos subir lestamente) e entra na casa de onde jamais sairá. Passa-se da aurora ao crepúsculo, mas como quotidianamente esse percurso se refaz. No dia seguinte haverá novas auroras e novos crepúsculos e, como queria Caeiro, nada estremece.
Nada? António Reis e Margarida Cordeiro não se pretendem tão cultivadamente pagãos.
Esses quinze minutos finais parecem-me ecoar a morte de Sócrates como Platão a contou no Fédon. Quando os membros se lhe começam a inteiriçar, quando o frio da morte dele se apodera e a cicuta perfaz o efeito mortal, Sócrates não dita aos discípulos uma última máxima, nem lhes revela uma última mensagem. Limita-se a recomendar-lhes que não se esqueçam de pagar o galo a Asclépio. Só depois se estende e morre, para que nada fique em falta, para que nenhuma dívida prossiga. Assim, Mãe Ana, depois de se sentar e dobrar no caldeirão (numa posição quase fetal), depois de mandar a rapariga em sossego, depois da vinda do médico, depois dos planos da roupa sangrenta, diz apenas: "Não te esqueças de dar de comer à Miranda: deita-lhe feno e uma mão cheia de centeio." O filme fica livre, como o final do Fédon, para o não anúncio da sua morte: Ana a correr e a chamar Alexandre, o vento, o vento e, de novo, a imagem oval do lago. Essa serenidade inilustrável que permitirá reordenar todo o filme de maneira diversa e voltar à memória de Alexandre, à aprendizagem de Alexandre. Tudo é sacral e sagrado como nas mortes que são apenas passagem, a de que Sócrates falou aos discípulos nessa noite longa final.
Mas se nenhuma inocência pagã vem "amenizar" o filme no final, também a aura do sagrado não cumpre a curva perfeita. Dentro dela se insere esse genial grande plano de Octávio no automóvel (o rosto enchendo inteiramente o écran) que nos dá a notícia duma angústia, ou duma dor, que "cortam" (no exacto sentido do termo) quaisquer acordes demasiado perfeitos. Nem tudo continuará como dantes "quando o meu corpo apodrecer e eu for morto" nem tudo será despido dos sinais do humano. Mas "outros amarão as coisas que eu amei" (estou a citar Sophia).
As vertentes convergem, com o vértice nesse grande plano que não obnubila o resto, mas lhe impõe a marca do protesto adulto.
Só Deus termina cada coisa segundo a sua esperança. Como dizia Píndaro. Para os homens, continuando a citá-lo, fica sempre alguma dor quando vogamos para a margem imaginária.
Ana é o filme dessa navegação para essa margem imaginária. Na ligação inconsútil ao terreno (a túnica de Miranda) e na ligação não menos inconsútil ao que uma criança recordará pela vida fora, criando ou recriando o espaço mágico dessa navegação. Sôbolos rios, entre os rios.
Alguns dirão que neste filme nada se passa, que não há narração. Serão os mesmos que a não saberão achar no diálogo de Platão, na ode de Píndaro ou no Babel e Sião de Camões. "Fraqueza da humana sorte: / que quando da vida passa / está recitando a morte". "Recitar a morte", do Ulisses de Homero ao Ulisses de Joyce foi o único e supremo fito da narratividade.
Ana é, entre muitas outras coisas, o filme da compreensão disso. Se se lembra na ausência, é porque o seu espaço não é o da memória, "senão o da reminiscência".
Continuando - e concluindo - em Camões: é o filme que sobe da sombra ao real "da particular beleza / para a beleza geral".
(FIM)
Jornal Diário de Notícias, pág. 9, 1 de Janeiro de 1983
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