sábado, novembro 06, 2004

053. "ANA" - Crítica de João Bénard da Costa-1

Vendo "Ana", de António Reis e Margarida Cordeiro

Miranda: a túnica inconsútil

Confesso que estou bastante longe de partilhar do sentimento algo generalizado entre a crítica portuguesa de que estamos a viver, em 1982, um ano áureo da história do cinema. Acho mesmo, sem ofensa para ninguém, que só santa ignorância da história passada permite que se generalize dum Schroeter, sempre magnífico, do Parsifal, de Syberberg, do último Straub, do último Godard, do último Rohmer, do último Demy, do último Carpenter ou do E.T., de Spielberg, para o comum da produção, dos jovens turcos, aos vários «geists» ou aos velhos rotineiros americanos que não merecem tantas vitórias. E mais confesso que semanalmente me estarreço perante o número de obras-primas (e Deus sabe que os exageros me não assustam) que, segundo a mesma crítica, semanalmente, também se estreiam em Lisboa.
Peso, pois bem as palavras, quando digo o que vou dizer: não julgo que haja em toda a história do cinema português um ano a pôr a par do de 81/82 em que, entre um Outono e outro, se estrearam quatro filmes dos maiores filmes de sempre: Francisca, de Manuel de Oliveira, Silvestre, de João César Monteiro, A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha, e Ana, de António Reis e Margarida Cordeiro (os dois últimos ainda insolitamente inéditos comercialmente entre nós). Houve ainda mais algumas obras de mérito, mas a esses quatro não hesito em classificá-los de obras-primas. Estarei eu, por meu lado, a exagerar? É sempre possível, mas se o dissesse, mentiria. E vou mais longe: do que conheço da produção mundial desta colheita de 82, tais obras são do melhor, senão o melhor.
Não costumo pecar muitas vezes por chauvinismo. Mas não deixa de ser ironicamente triste que o Festival da Figueira tenha passado ao lado de Ana, premiando a obra que em Valladolid ficou muitos furos abaixo desta. A justiça ficou ao lado.
De Ana vou falar:
Filmado em Trás-os-Montes, podia-se supor que os autores iriam continuar a sua admirável obra anterior, a que tinha por título o nome da província. Se num sentido fundo a continuam (como continuam Jaime, seu primeiro filme e adiante explicarei porquê), no sentido das expectativas, nada de menos exacto. Ana é o contrário de Trás-os-Montes, poder-se-ia dizer o anti-Trás-os-Montes.
Nesse filme, o olhar dos autores era sobretudo um olhar terrivelmente nostálgico. Da invocação-chamamento do pastorzinho do inicio à imagem e ao som do comboio final, o percurso (a peregrinação, dizendo melhor) era sobre o que se perdeu, o que vive na memória e na saudade, sobre as raízes que vão ser arrancadas e a interpenetração da magia e do real, que se sabe perdida. Trás-dos–Montes é o filme do jamais, um poético adeus, uma litania lancinante. O olhar dos autores (jamais subjectivado) estava do lado (ou ao lado) do olhar dos que o sabem, dos adultos que têm ainda acesa a vela da esperança mas ignoram por quanto tempo mais ou duvidam de mãos em que a possam depor. O olhar de Orfeu convertia Eurídice em pedra, como todo o olhar que não resiste ao chamamento do amor que ficou para trás. Nesse filme, centrado sobre uma criança, ouvíamos e víamos as histórias e as paisagens que já não seriam dela.
Em Ana, o olhar dos autores também não se subjectiva. Mas, centrando-se numa velha (a avó, a mãe que dá o título ao filme), abre (como a extraordinária panorâmica inicial) para uma criança, presença relativamente discreta no filme, mas que em reminiscências lembrará tudo o que viu e ouviu (e tacteou, cheirou e gostou) dessa fabulosa personagem, guardadora de tudo, que, como no ritual do baptismo, lhe abriu o corpo e a alma para as marcas indeléveis. Ao filme da nostalgia, sucede-se o filme da esperança, a «jeune fille» que desafia o próprio Deus do poeta de Péguy. À peregrinação sobre a memória e a saudade, sucede-se a navegação reminiscente que não se abre nem se cerra mas termina no espaço circular do lago (imagem com que se inicia a morte de Ana, imagem com que se inicia o "nascimento" da criança). Ao filme do jamais, a obra do para sempre. Ana, através do seu corpo e do seu sangue, viverá no olhar maravilhado e maravilhoso de Alexandre. A sua morte é ressurreição.
Progressivamente, e à medida que ia vendo o filme, duas obras me vinham à memória: O Vale Era Verde, de John Ford, e Stars in My Crown, de Jacques Tourneur, dois dos mais belos filmes de sempre. Mas qualquer desses filmes era narração de uma criança, que recordava um passado para sempre perdido: «how green were their valleys». Isso permitia ao espectador uma identificação, um terreno, já que o olhar desse miúdo era o fio de Ariadna nos labirintos do tempo. Em Ana, essa identificação é recusada (a esse nível), mas devolvida e decuplicada pela certeza de que esse testemunho se não esgota na oralidade ou na visualidade. É uma aprendizagem mais funda, mais radical, que vem do céu (imagem inicial) à terra e à ponte, que o cavaleiro atravessa por duas vezes em movimentos diversos (saberemos depois, que à procura da ama, do leite, para uma nova vida).
Tudo começou num dia «em que a neve e o vento eram mais puros». E com uma invocação: «Sob o teu olhar, Mãe, a natureza continua o indizível». Na sequência seguinte, vê-la-emos (essa mãe), entre os símbolos primordiais, dreyeriana, muito lenta, a olhar para a noite e a chuva lá fora (o plano rima com o do final, do último olhar através da janela, na noite do nascimento, como no dia da morte).
Essa figura – a da Mãe – vai dominando todo o espaço da casa, tratado como o de uma natividade (gruta, estábulo, pai, os animais do presépio – burro, vaca -, sem que nenhum som ou imagem seja símbolo, mas todos perfazendo o renovado mistério da vida nova). Em «off», a morte da mãe e o menino, até à entrada da ama, com que se perfaz o ritual. Há esse discretíssimo nu, o manto (inadjectivável composição de plano), a capa, a almofada encarnada sob os pés. E em plano fixo esse movimento muito lento do corpo que amamenta (e simultaneamente é alimentado), quase só perceptível pelo bater das mãos. O máximo do hieratismo, o máximo de esquematização, o máximo de poesia. Pode-se dizer que a ama dá e não dá de mamar: transmite, eroticamente, um corpo a outro corpo, tranfusão de leite, como se fala em transfusão de sangue. E o plano dura, dura como todo o ritual seguinte e a sua paleta de cores (as frutas espalhadas pelo chão, a cama esquecida, o édredon verde, o banho do bebé na selha). Parece que há pessoas (Tolstoi dizia ser uma delas) que se lembram pela vida fora dos primeiros dias e meses, furtados ao comuns dos mortais. Esses planos parecem comparticipar dessa crença. Sem que nada os subjective, parecem narrados pela criança que nasceu, como se o filme fosse um enorme «flash-back» iniciado, no fim, junto à imagem oval do lago.
Depois, a terra, as cores, a passagem do tempo. Sobre os montes escuros, ao poente, um «travelling» vem apanhar a um canto da imagem Ana, desproporcionada e veneziana, como uma figura de Bellini, para contar a história do eclipse: «Fazia frio. Todo o silêncio caíra sobre o mundo(...). Alguns comentavam o que tinha acontecido calmamente, mas eu não estava sossegada. Eu conhecia a noite, mas aquela escuridão imensa, aquele frio súbito era como uma faca no meu peito.» E a imagem não ilustra, não comenta, abstém-se da mínima retórica. A magia entrou no filme num «travelling» da sombra à luz, inverso à narrativa. Magia não do fenómeno (ou não só) mas da imagem, essa sim, magia suprema. Se o eclipse é tão natural como a decomposição do espectro solar da sequência seguinte, o que não é é a imagem, o écran vazio e branco, quando se abrem as janelas. Reinvenção do cinema, desta «escuridão imensa» aprendida como uma lição que vai ecoar depois no longo dissertar de Octávio sobre os barcos e os Fenícios.

(Continua)

Jornal Diário de Notícias, pág. 9, 1 de Janeiro de 1983