077. "ROSA DE AREIA" - Crítica de A. M. S.
[Festival de Berlim 1989]
Em estado de sonho
A obra de Margarida Cordeiro e António Reis é uma experiência radical que, filme após filme, nos seduz e confunde no convite a uma viagem na qual simultaneamente reconhecemos elementos primordiais e enfrentamos o desconhecido.
Rosa de Areia, estreado no Fórum de Berlim, é a apoteose desse cinema, o seu momento mais fulgurante mas também o que suscitará maior perplexidade.
Progressivamente, a definição concreta de um objecto, que seriam a pessoa e os desenhos de Jaime ou a terra de cultura de Trás-os-Montes, vem-se diluindo numa ordem mais abstracta. Já em Ana era ténue o fio narrativo entre os diversos fragmentos e sequências, algumas das quais (como a evolução do eclipse ou o inesperado discurso sobre influências mesopotâmicas nos barcos do Douro) pressupunham coordenadas espaço-temporais exteriores à racionalidade do nosso saber.
Esta abstracção percorre integralmente Rosa da Areia, qual imensa colagem de textos e imagens.
Se fosse possível «definir» um filme em duas ou três palavras (ou se duas ou três palavras podem ser de algum modo indicativas), dir-se-ia que Rosa da Areia é um filme sobre «a condição humana». Ao princípio poderia ser uma tragédia grega: do alto da montanha, os deuses, as deusas (ou as «estrangeiras», como o diz uma, estrangeiras à condição humana e terrena), comentam as acções que ocorrem lá em baixo, no vale, a violência e as guerras. Ocorre um eixo vertical (em cima/em baixo) que poderia ser tomado como elemento de inteligibilidade do filme. Mas em breve tudo se confunde, quando as próprias estrangeiras têm experiências humanas, e o fascínio hipnótico das imagens e dos sons se revela como único ponto de referência (que assim pode ser reconvertido) numa viagem cujo sentido nos escapa.
Poderia pensar-se (e essa atitude é legítima) que a precisa questão de um «sentido» é inócua, pois que este cinema solicita os sentidos e não o esclarecimento de um saber. Ora, esta é uma questão crucial. Mais do que os filmes anteriores dos autores, Rosa de Areia é um filme que sugere ser, se não da ordem do inomeável (porque, enfim, é um objecto, existe), pelo menos da ordem do indizível, ou seja, um filme cuja radicalidade seria impositiva: sobre ele não se poderia ter nenhum discurso, nada seria passível de explicação ou de interpretação, todo o saber deveria ser anulado perante a experiência dos sentidos. Sucede que o saber, os vários saberes, são precisamente objecto do filme, um saber empírico como um saber científico, um saber íntimo como um saber cósmico (e assim convivem textos de Montaigne e Carl Sagan, por exemplo). Talvez que a questão fulcral deste cinema reside, justamente, na sua polaridade entre a matéria e o saber. Poucos, muito poucos, são os cineastas que são capazes de nos fazer sentir tão intensamente as matérias físicas, mas esse sentir é constantemente recomposto por um conhecimento que os autores detêm e mantêm como que secreto, como que podendo ser apreendido apenas na sua globalidade e não em nenhuma operação particular. Um conhecimento que exigiria uma alteridade absoluta, um estado outro.
Em Ana ouvia-se a dado momento uma das Elegias de Duino de Rilke, com a imagem de uma criança dormindo. O sono e o sonho são invocados em Rosa da Areia desde o início, qual estado originário em que domina a noite, a grande noite cósmica, mas em que simultaneamente afloram outras imagens, outras linguagens, outras associações. A intensidade do olhar torna-se num delírio visionário. Sucede que nesse delírio se vem inscrever uma diferente ordem de representação, com certas e concretas referências históricas ou com certas figurações artificiais – e este, digamos, é o limite da abstracção. As cenas «medievais» que se sucedem nos filmes, as figurações que lembram récitas escolares, vêm-se interpor, e de repente parecemos ter parado em terreno mais reconhecível, embora desconhecendo as razões porque aí estamos. Primeiro trabalho dos autores em 35mm, Rosa da Areia é um filme magistral, composto de planos admiráveis, com sistemática e rigorosa utilização do plano-sequência. É difícil não ficar deslumbrado perante tanta beleza, mas, essa beleza é também um risco. Se este cinema é uma experiência dos sentidos e do conhecimento, não será necessário amá-lo e não apenas admirá-lo, sentir-se transportado por ele e não apenas contemplá-lo? E, no entanto, é de uma beleza prodigiosa!
A. M. S.
Jornal Expresso, pág. 43-R, de 25 de Fevereiro de 1989
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