136. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de João Bénard da Costa
[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]
Por um filme
A única solidão é aquela que não tem passado.
Agustina Bessa Luís
De Trás-os-Montes, filme de António Reis e Margarida Cordeiro, disse Jean Rouch que inaugurava um novo cinema. Coisa de um tipo se pôr de joelhos, terá dito também. A coberto deste magister dixit as línguas dos críticos foram-se, finalmente, desatando e a imprensa do fim da semana passada começou, finalmente, a entoar as suas loas. Loas ou requiems? Pode-se perguntá-lo, porque, entretanto, o filme deixava a sala onde se a exibira, durante uma semana, ignorado pelo público, esquecido pela crítica. Esta, como de costume e, como a propósito de uma outra obra grande notava Eduardo Lourenço, «deixa morrer antes para corar depois». Tudo que agora se diga ou faça em favor dessa coroação – e esta tardia iniciativa de o EXPRESSO é bem um exemplo – é mais produto do vosso remorso do que medida da vossa atenção. E tanta gente viu o filme a tempo de com tempo dele falar.
Pede-se-me, agora, um curto depoimento. Para que possa ter alguma utilidade, é preciso que haja onde ver o filme, o que implica a sua reposição. Como já se fez para Benilde ou Brandos Costumes. Há que teimar e não deixar que se perca assim o que é um dos grandes actos de amor e criação que a arte feita por portugueses nos tem dado.
Para que se não perca uma obra que é, também, para um povo e para um país à procura de si próprios, uma das poucas pedras do caminho que nos pode ajudar a reencontrar a direcção.
Não me aventurarei a tentar explicar porque, no curto espaço de que disponho. Mas usarei o resto dele a dar duas pistas:
I – Falei das pedras do caminho. Lembram-se do conto em que as crianças as deixavam cair no chão para não se perderem? Velhas sagas, velhas lendas. Mas o essencial da busca de António Reis e Margarida Cordeiro está por essas bandas e tem que ver com esses medos. Ir buscar ao tempo, ao «era uma vez», o que, contado, recupera na imaginação o que nela sempre há de memoria. Neste filme, deixa de ser possível dividir uma de outra, como deixa de ser possível separar a imagem do imaginário, pela dupla abertura e pela dupla evasão que cada plano introduz ao que está antes (por vezes, muito antes) e depois (por vezes, muito depois) dele. A imagem reentra no imaginário. Fugindo ao pitoresco, ao folclórico, à redução etnológica, o que Trás-os-Montes nos propõe é o encontro com o real imaginário de uma cultura em que esses dois termos nunca são antitéticos. É o convite a uma viagem que vai até ao fundo dessa fusão, utilizando uma linguagem – como é a cinematográfica – cujo mais fundo sentido nunca foi outro senão o de a dizer. E utilizando-a com o mais obstinado rigor.
II – Assumindo as duas vertentes do passado, Trás-os-Montes é, por via disso e em toda a acepção da palavra, um filme de resistência. Na medida em que desarruma o campo das certezas ou ideias feitas (quer sobre o discurso que usa, quer sobre o que esse discurso nomeia) e na medida em que nos faz descobrir as vertiginosas possibilidades da liberdade mais cercada e mais frágil. Se a primeira acepção é talvez acessível a muito poucos, a segunda invade de tal forma cada plano deste filme que a sua evidência provoca abundantemente as reacções de quem já não pode ou não quer reconhecer os muros da prisão e a espantosa beleza da incessante luta para os derrubar. Nesta medida, a ternura deste filme é tão grande como a sua violência e é isso que muitos poucos suportam. Para falar dos que não renunciaram e da sua solidão, António Reis e Margarida Cordeiro inventaram o cinema da memória, da solidariedade e da não-abdicação.
De quanto pode ser dito sobre a nossa morte-vida, por quem dela vive e morre, este filme nos fala.
Peço desculpa de não ter conseguido ser mais claro.
João Bénard da Costa
Jornal Expresso, Revista, pág. 22, de 25 de Junho de 1976 (secção "Alternativas", coordenação de Helena Vaz da Silva)
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