quinta-feira, setembro 29, 2005

111. FALECIMENTO - Texto de João Lopes

Contracampo

António Reis, formalmente

Como todos os guardiões das formas, António Reis era um homem difícil. Numa imagem de cinema, tanto quanto num encontro casual - e, com ele, os encontros casuais podiam transformar-se em capítulos de romance -, ele via o trabalho das formas, quer dizer, a pulsação da vida.
Era difícil porque as formas são difíceis e não admitem as traições mesquinhas dos homens. Devolvem-nos tudo o que somos, sem que adiante desculparmo-nos ou culpabilizarmo-nos.
Sem dúvida, por isso, ele tinha uma relação com o cinema que não necessitava das ostentações de qualquer saber enciclopédico. Creio mesmo que Reis não conhecia muitos filmes. Mas não haverá muita gente que saiba, como ele sabia, expor-se, disponível e cândido, ao que, em qualquer «reprodução» (e o cinema é, talvez, a mais ilusória), já é forma. Ele sabia que o labor das formas começa ou, pelo menos, revela-se a partir do momento em que as coisas passam a ser mais do que a simples condição do seu ser e ganham um nome. Isto é, sempre.
Daí o seu combate pela simples afirmação do nome que ele desenvolveu, precisamente, em torno do nome de Margarida Cordeiro, que com ele partilhou os filmes e a vida que só a eles pertence. Vezes sem conta, Reis indignou-se contra a falta de rigor ou, pior do que isso, a indiferença das prosas de imprensa que omitiam o nome de Margarida na realização dos seus filmes. Não era um combate por nenhum valor ideológico, nenhum feminismo, nenhuma imagem de marca. Era uma revolta contra a incapacidade de respeitar os nomes. Logo, as coisas. Logo, todas as galáxias da existência. Reis revoltar-se-ia contra Deus, se Deus não soubesse ser digno dos nomes das suas criaturas.
Um pouco abaixo de Deus, as entidades oficiais do nosso país deram provas de uma indiferença gelada perante o nome de Reis e a palavra morte com que, agora, nas biografias deveremos recobri-lo. Em momentos de galas e funções da Europália, nenhum governante com o peso, o poder e o valor simbólico necessários para a ocasião veio dizer ao povo essa coisa simples que, como eleito da colectividade, lhe competia dizer: que, com a morte de António Reis, desapareceu uma das grandes figuras da cultura portuguesa contemporânea. Aliás, foi toda a classe política a dar de um escandaloso alheamento que define bem a vacuidade da sua relação com o universo cultural e, sobretudo, a sua incapacidade para se pensar também como sujeito cultural. Todos os discursos remendados que vierem a seguir não passarão de patéticas confirmações dessa incapacidade.
No fundo, tudo isso está certo, revoltantemente certo. Tem a ver com esse «morrer sozinho» de que João Mário Grilo falava no último EXPRESSO (14/9) ou o viver com os filmes em «autismo obstinado», para utilizar as palavras que, com tocante justeza, Eduardo Prado Coelho escreveu num texto publicado no «JL» (17/9).
É por isso também que a herança de Reis é tão difícil como ele era. E tanto mais quanto a obra de Reis e Margarida está por cumprir na sua relação com o público: Rosa da Areia, o seu derradeiro e belíssimo filme, permanece quase invisível entre nós. Não por acaso, é um filme que redobra as dificuldades, sendo, como é, um objecto de radical exterioridade até ao próprio cinema - existe, apenas, como se fosse o primeiro filme do mundo. Resiste também através dessa rede de afectividades que Reis parecia estar incessantemente a refazer, como quem produz cenas de um outro filme envolvido com o próprio quotidiano. Daí nasceram muitos dos seus amigos - somos poucos, mas bons.

João Lopes

Jornal Expresso, 21 de Setembro de 1991