domingo, setembro 05, 2004

012. O ROMANCE DOS INCURÁVEIS

"Quando eu conheci o António e a Margarida, o casal apareceu-me como saído das páginas da Agustina: Os Incuráveis? O Susto? Os Ternos Guerreiros?
A Margarida era magríssima, de olhos enormes, como um pássaro que nunca descesse à terra. Falava pouco mas criava à sua volta um campo magnético quase asfixiante. O António falava muito, mas de repente a Margarida arrebatava-o pelos ares fora, e a gente deixava de os ouvir. De que falavam, lá entre as nuvens, ou nas entranhas da terra? Falavam talvez de filmes por fazer, ouviam-se gritos de terror, abafados pelas nuvens, caíam cá em baixo penas ensanguentadas, salpicos vermelhos subiam à tona da água. Quando voltavam, já mais compostos e serenos, vestidos de gente, fingiam de novo ser um casal como os outros, um casal de artistas... Nunca saberemos o que os movia. O amor? A guerra? O sangue? O susto? As fitas?
Ao lado deles os trabalhos de amor dos outros casais perdiam o sal, perdiam o fogo. Pobres de nós. Quem os poderia imitar?"

Paulo Rocha, cineasta

Regina Guimarães (Directora) - A Grande Ilusão, n.º 13/14 (Out. 91 a Mai. 92), pág. 9, Edições Afrontamento, Porto, 1992