sábado, junho 23, 2007

155. «JAIME» - Reportagem de Albertino Antunes

Nasceu no Barco (Covilhã) em 1900 e morreu em Lisboa, (1969), depois de 31 anos de internamento no Hospital Miguel bombarda. Nos últimos quatros anos da sua vida (1965/1969) Jaime Fernandes fez bonecos, desenhou, primeiro com um fósforo embebido em mercuro-cromo, depois com vulgares esferográficas.
Uma média metragem (quarenta minutos) do poeta António Reis mostra as pinturas de Jaime, que alguns críticos dos mais exigentes situam no pequeno quadro dos génios.
Para já, um caso de espanto e emoção.
(Página 1)
Reportagem de Albertino Antunes nas páginas 8 e 9

«JAIME» RESSUSCITA JAIME:
No cinema uma obra notável
Na pintura um génio


Na ficha clínica, o diagnóstico classificou-o de esquizofrénico-paranóico. Cinco anos depois da morte, os especialistas em artes plásticas consideram-no um génio. É Jaime Fernandes, beirão, trabalhador rural e, sobretudo, pintor, desenhista e poeta. Em trinta e um anos de internamento hospitalar escreveu milhares de palavras. Nos últimos quatro anos de vida e de hospital (1965-1969) voltou-se para a pintura desenho, deixando uma obra que só por acaso se não perdeu totalmente. Nela (no que resta) se debruçou um poeta para nos dar, num filme (Jaime), a visão do homem e da obra.

«HÁ FOTOGRAFIAS DE NITIDEZ. ESTAS SÃO OBSCURAS, SÃO FEITAS POR MIM, CONFORME A MINHA VONTADE».

Jaime pisava e repisava esta definição (?) da sua obra, no dizer de (Dom) Miguel, seu amigo íntimo e companheiro de hospital durante vários anos.
Jaime Fernandes Simões nasceu em 1900, na aldeia do barco, concelho da Covilhã. Até aos 38 anos viveu as dificuldades dos minifundiário da zona, cuja subsistência depende do bom ou mau ano agrícola. Depois, o internamento no Hospital Miguel Bombarda afastou-o, definitivamente, da mulher e dos seus cinco filhos. Para trás e longe ficaram, também, as árvores, os rios com peixes, a serra e os animais:

E EU A RIR-ME
COMEREM OURIÇOS
BEBEREM VINHO

Começou a escurecer cedo. Praticamente desde que entrou para o hospital. A sua escrita (bonita, graficamente) é um poderoso reflexo dos seus conflitos e problemas interiores.
Segundo depoimento de outros internados no hospital, Jaime passava dias inteiros a escrever e, mais tarde, a pintar ou desenhar. Além disso, tinha ainda uma vida prática activa, trabalhando na cantina.
Mas o seu passatempo era de facto a escrita e a pintura. Encheu folhas e folhas com milhares de palavras (alguns desenhos estão completamente escritos por trás), normalmente sem nexo aparente. Porém, de repente, Jaime explode:

ESTRELAS
DEPOIS OLHAI AS NUVENS
METERMOS NELAS
NELAS 1000 HOMENS
DENTRO;

ou então manifesta preocupações, das quais se poderia dizer que são profundamente fisolóficas (existenciais):

NINGUÉM SÓ EU
E
EU NÃO SABER NADA

A escrita toma, normalmente, a forma de cartas, que ele nunca chegou a enviar. Escrevia-as e punha-as de lado. Posteriormente, quando algum familiar ou conterrâneo o visitava, entregava-lhe as missivas.
«As cartas dele», diz D. Angelina, mulher de Jaime e ainda viva, «davam-me sempre muita alegria. Mas eu não entendia o que ele queria dizer. Eram assim umas coisas sem termo nem termo».
Os últimos quatro anos de vida e hospital dedicou-os Jaime a pintar e desenhar. Limitado no material, servia-se do que o acaso lhe proporcionava: um papel qualquer (a folha de 35 linhas dava-lhe para fazer, por exemplo, 10 desenhos), esferográficas, lápis e, uma vez até, mercuro- -cromo.
Na sua pintura há uma identificação (consubstanciação) do homem com o animal, o que leva necessariamente a estabelecer o paralelo com uma expressão das cartas:

«ANIMAIS COMO RETRATOS
DE PRÍNCIPES
OLHOS NAS MESMAS ARCAS»

Jaime trabalhava muito e depressa, utilizando o melhor possível o escasso e primitivo material de que dispunha:
«E a maneira como ele trabalhava»…, assevera (Dom Manuel), «não era moroso, era rápido. Trabalhou por assim dizer até à morte dele. Trabalhou sempre».
A morte parece ter sido uma das obsessões de Jaime. Nas suas cartas os verbos matar e morrer aparecem centenas de vezes, embora quase sempre desinseridos do resto do texto. Em relação a si próprio, Jaime viu-se morrer por diversas vezes, antes da morte natural em 1969:

«OITO VEZES JAIME MORREU JÁ CÁ»

JAIME
- UM FILME

Dois anos passaram sobre a morte de Jaime, até que, em 1971, se descobriu acidentalmente um desenho num gabinete clínico do Hospital Miguel Bombarda.
Na posse do desenho, que se considerou extraordinário, António Reis lançou-se na investigação da vida e obra do Jaime, tendo em vista a realização de um filme.
«Foi», confessa aquele poeta, «um trabalho difícil e árduo. Ele nunca conservou os trabalhos. Normalmente, pedia o material emprestado e, digamos em paga, dava os trabalhos.
Mesmo assim conseguimos recolher algumas dezenas de desenhos e pinturas e muitas cartas. Felizmente, nem tudo se perdeu (aliás nem quero pensar na hipótese contrária).»
De resto, António Reis teve a melhor assistência para trabalhar sobre o «dossier» do artista, estudar o meio geográfico e contactar com a família. (Deste trabalho beneficiámos também nós, pois só através dele conseguimos obter elementos sobre Jaime e a sua obra). Por outro lado, contou com uma equipa de filmagem excelente (para quem teve as palavras mais fraternas).
O resultado aí está: O filme «Jaime», onde perpassam a vida e a obra do artista, integradas nos ambientes em que uma decorreu e a outra foi criada.
«Tivemos sempre a preocupação», diz António Reis, referindo-se a toda a equipa, «de não dissociar a biografia da obra. Não nos interessava fazer o filme da vida de um pintor. Aliás, estou convencido que prestávamos um mau serviço ao Jaime se fizéssemos um filme sobre artes plásticas, embora prestássemos, talvez, um bom serviço à pintura.
Digamos, portanto, que a fita é um poema plástico e humano».
«Jaime» é o primeiro filme realizado por António reis, com responsabilidade integral e liberdade total. Mas, que pensa o realizador (expressando-se por palavras) do homem que lhe forneceu a matéria-prima par o seu filme?
«Eu não conheci o Jaime», responde António Reis, «e no decurso de todas as investigações que fiz ele escapou-me sempre. A única coisa (pouco) que agarrei foi pelo que ele deixou pintado e escrito. De resto, ele próprio escapou-me».
Parece que António Reis não tem razão na sua humildade. Pelo menos, a maior parte das pessoas, entre as quais escritores e pintores, que têm visto o filme, em sessões privadas, consideram-no notável.
Com efeito, aqueles quarenta minutos de celulóide foram tratados com mãos de poeta (- cineasta). Jaime e a sua obra estão lá bem vivos, permitindo ao espectador a aproximação e compreensão (leitura) de ambos.
As árvores, os animais, os rios e a casa que o artista conheceu até aos 38 anos, lá estão integrados e transformados. Depois, a solidão-hospital, que ele viveu nos últimos 31 anos de vida, e as presenças da viúva e da galeria de rostos humanos, companheiros de situação e que serviram de modelo ao pintor.
Mas, sobretudo, agiganta-se viva e poderosa a pintura do Jaime.
A verdade é que o filme tem agradado a toda a gente. Vejamos, por exemplo, as palavras de cineasta Paulo Rocha:
«O filme é a melhor surpresa para o cinema português de há vários anos para cá. Com efeito, António Reis vem abrir um tipo de actividade que não existia entre nós. Ele renova, mesmo internacionalmente, a concepção e realização do filme de arte, juntando à vanguarda artística um certo calor humano. Ora isto é muito raro, como é raro conseguir uma banda sonora tão viva e rica.
Além disso, e aqui reside outra (bela) surpresa, o filme permitiu descobrir o artista Jaime Fernandes e um novo cineasta (António Reis).
Finalmente, e porque tenho alguma dificuldade em reagir criticamente ao filme, só quero formular um voto: Que o António Reis volte à carga, muito em breve».
É este, aliás, o grande desejo de António Reis, que projecta um filme sobre o nordeste. Para isso, porém, é necessário que o Centro Português de Cinema possa dispor de meios financeiros…

A PINTURA DO JAIME

António Reis abre e fecha o filme com fotos do artista. Porém, na retina do espectador ficam ainda as formas do último quadro filmado. Trata-se de uma composição em monobloco, com uma cabeça de homem em corpo de animal (que é uma forma mineral ao mesmo tempo), pontuado por duas flores. Por que esta escolha?
«É uma recolha», responde o poeta António Reis, «das linhas dramáticas e plásticas da fita. É um regresso à matriz (representação dos três reinos – animal, vegetal e mineral) ou, se se quiser, o silêncio e a morte do Jaime. Na verdade, recorde-se, que se segue a imagem real de um relógio com 1 hora da noite, preciso momento em que o artista morreu».
Jaime Fernandes não foi além de uma instrução primária. Não teve mestres de desenho ou pintura. Ninguém o ensinou a combinar cores. Não seguiu qualquer escola ou movimento artístico e o mais curioso é que, apesar de escrever desde que entrou para o Hospital, só se tenha iniciado na pintura e desenho nos últimos quatros anos da sua vida
«O Jaime», afirma António Reis, «tinha perfeita noção do espaço a ocupar pelo desenho ou pintura. Como estava limitado pelas pequenas dimensões do papel, muitas das suas figuras-homens têm os braços caídos ou levantados, enquanto as figuras-animais têm a cauda caída.
Portanto, as atitudes do desenho estão sempre em função da delimitação do papel, para a qual ele achava sempre uma solução plástica genial. É possível que também estejam ligadas a uma estereotipia emocional, obsessiva e a arquétipos…»
Por outro lado, enquanto nas cartas há uma linguagem que exprime o Jaime psicologicamente, na pintura não. Aqui o artista tem uma coerência total, raramente se vislumbrando indícios da chamada arte psico-patológica, mesmo na utilização das cores (vermelho e preto, principalmente).
«Quando muito», prossegue António Reis, «as leis que presidem à sua arte são equivalentes às da criança ou dos povos primitivos. Na sua arte há uma saúde e vitalidade extraordinárias.
Quanto à interpretação da simbologia das cores, ela está muito viciada e varia de sociedade para sociedade, conforme as culturas. E, por exemplo, o vermelho, no Jaime, não é passional e o preto não é luto. Ele pode encher uma grande superfície de negro e vermelho e depois mete uma dissonância de violeta. Ora isto, só está ao alcance dos grandes artistas e é um acto de consciência pictórica.
Aliás, o Jaime não começou aí. Chegou aí. No filme, não utilizamos algum material que poderia explicar o seu percurso e a sua evolução artística».
E agora, uma vez descoberto e reconhecido o valor artístico do Jaime, qual o destino da sua obra? Como preservar da voracidade dos coleccionadores os poucos quadros que não se perderam?
«Estamos a prever», assegura António Reis, «integrar toda a obra do Jaime num verdadeiro museu de Arte Moderna (em vias de ser criado), onde pudesse ser vista e apreciada por toda a gente.
Evidentemente que os desenhos e pinturas do Jaime pertencem a várias pessoas que, assediadas, poderiam vendê-los. Mas nenhuma delas está disposta a isso, embora o dinheiro lhes fizesse jeito. Portanto, tudo parece indicar que a obra do Jaime não se perderá nas mãos de quaisquer coleccionadores».
E assim se cumprirá o que Jaime dizia frequentemente ao seu amigo (Dom) Manuel.

«HÁ-DE VIR ALGUÉM QUE DARÁ VALOR A ISTO»

Reportagem de Albertino Antunes

Jornal Jornal do Fundão, págs. 1 e 8-9, 27 de Janeiro de 1974 (Dir. António Palouro)