quinta-feira, setembro 02, 2004

008. "TRÁS-OS-MONTES" nos "Cahiers du Cinéma"

ANTÓNIO REIS / MARGARIDA CORDEIRO - ENTREVISTA

Serge Daney
Poderias falar-nos das filmagens, das condições em que trabalhaste com os camponeses de Trás-os-Montes?
António Reis
Posso dizer-te que jamais filmámos com um camponês, uma criança ou um velho, sem que nos tivéssemos tornado seu companheiro ou amigo. Isto pareceu-nos um ponto essencial para que pudéssemos trabalhar e para que as máquinas não levantassem problemas. Quando começámos a filmar com eles, a câmara era já uma espécie de pequeno animal, como um brinquedo ou um aparelho de cozinha, que não metia medo. Assim, dispor as iluminações nas suas casas, ou montar os espelhos nos campos para obter luz indirecta, não constituía problema. Era simultaneamente uma espécie de jogo. Foi, pois, possível exigir algumas coisas, a maior parte das vezes com ternura. E se estávamos com dificuldades, compreendiam isso muito bem. Uma coisa muito importante: podiam verificar pelo nosso trabalho que éramos igualmente «camponeses do cinema», porque chegávamos por vezes a trabalhar dezasseis, dezoito horas por dia, e penso que eles gostavam muito de nos ver trabalhar. E quando tínhamos necessidade que eles continuassem a trabalhar connosco, mesmo deixando os animais sem comer ou as crianças sem serem tratadas, eles não o sentiam, na minha opinião, como um constrangimento. Era admirável ver isso. Como sabes, eu não tenho uma concepção tautológica do povo, mas penso que, no nordeste, eles têm uma maneira muito especial de lidar com as pessoas. Se chegares de repente, saúdam-te, abrem-te as portas, dão-te pão, vinho, aquilo que têm. Por outro lado, não são «a bondade personificada», pois são igualmente muito duros. Simplesmente, passam bruscamente da doçura à violência.
Serge Daney
Que relações tinham com o cinema ou a televisão?
António Reis
Na aldeia onde filmámos, posso dizer-te que não havia cinema nem televisão. (Faz um desenho no guardanapo de papel) Portugal é isto, a Espanha é isto, o nordeste fica aqui, há uma cidade chamada Bragança e ali outra chamada Miranda do Douro. Todas as aldeias onde filmámos estão junto à fronteira e nos arredores destas duas cidades. Por isso, os camponeses sabem que existe cinema e televisão em Bragança, mas é tudo. Em muitas aldeias não há ainda electricidade, a relação com o cinema é ainda uma relação como a que têm com a fotografia, simplesmente.
Serge Daney
Como é que, desde que surgiu a ideia e o projecto do filme, pensaste evitar um olhar etnográfico sobre esses camponeses?
António Reis
Sabes, creio que o olhar etnográfico é um vício. Porque a etnografia é uma ciência que vem depois. Do mesmo modo, pusémos de parte um olhar pitoresco ou religioso sobre o nordeste. Evidentemente, interessámo-nos muito pelos problemas antropológicos postos pela região à literatura celta, etc. Lemos toda a obra do vosso Markale, porque os celtas ainda lá estão. Estudámos a arquitectura ibérica, porque a arquitectura das casas aí não nasceu de geração espontânea. Mas sempre com o objectivo de escolher, intensificar. Porque se lemos uma paisagem apenas do ponto de vista da «beleza», é redutor. Mas se pudermos ler ao mesmo tempo a beleza da paisagem, o aspecto económico da paisagem, o aspecto da geografia política da paisagem, tudo isso é a «realidade» da paisagem. Paisagem integrada, sem transformação, paisagem cultivada, etc. Então, no que respeita ao nordeste, dialectizámos tudo o que sabíamos, tudo o que havíamos aprendido com as pessoas, tudo o que descobrimos por nós próprios. Porque era igualmente possível descobrir coisas. A Margarida nasceu na parte mais violenta do nordeste. Ainda hoje ela recorda o sabor do vinho, as lendas e os pesadelos da infância. Tudo isto se tornou uma matéria, com alguma espessura.
Serge Daney
Mas, para quem vive em Lisboa, o que é o nordeste?
António Reis
É um lugar muito distante. É de onde vem a electricidade, as amêndoas, os bons salpicões, os presuntos, o ferro, etc… O que os camponeses do nordeste dizem da capital, é o que se diz em Lisboa dessa região. Excepção feita aos emigrantes do nordeste que residem em Lisboa. Mesmo quando viveram vinte ou trinta anos em Lisboa, se disserem o nome de uma árvore no seu dialecto próprio, ainda se perturbam.
Serge Daney
Uma coisa que é surpreendente no filme é a ausência da Igreja Católica e da religião. Ora, segundo aquilo que em França sabemos de Portugal pós-25 de Abril, e nomeadamente do norte, parece-nos que a Igreja teve um papel importante...
António Reis
Posso dizer-te que, a esse respeito, tanto eu como a Margarida adoptámos uma posição de princípio de «tábua rasa». No filme nunca tratamos das instituições. Ora, o catolicismo é ali uma religião muito recente. Sente-se no filme que há religiões mais antigas e, entre as próprias pessoas, o cristianismo é uma coisa muito epidérmica. Não é exagero, nem sequer uma liberdade poética, dizer que eles são druidas. Se os ouvisses falar das árvores, de como as amam… Há ali qualquer coisa de muito antigo que não tem nada a ver com o cristianismo, tratava-se de torná-lo presente pela sua ausência. O filme é um fresco, uma gesta do nordeste, é mais vasto do que uma pequena capela num mundo artificial, com o padre da aldeia, etc. Penso que um filme que tivesse tudo isto como assunto, deveria ser feito de um modo diferente daquele que fizemos, teria outras implicações.
Serge Daney
Mas não se pode negar essa influência recente da Igreja no norte de Portugal. O que é que ela fez para influenciar politicamente os camponeses?
António Reis
Conheces tão bem como eu o papel do padre junto dos camponeses. Ele lida com a morte, o além, incute medo. Serve-se do facto de o povo necessitar, no imediato, de alguns fetiches e de ser, portanto, fácil de impressionar. Quer isto dizer, no fundo, que as pessoas são como se apresentam ao padre, no que dizem e no que fazem? Tudo o que pressentimos, no nosso contacto com os camponeses, da sua revolta, da sua filosofia, da sua vida diária, é que existem religiões muito diferentes, mais antigas...
Serge Daney
Isso iria no sentido do início do filme em que se vê uma criança, um pastor, que olha para uma inscrição num rochedo, inscrição que nos remete para um passado muito longínquo.
António Reis
Como sabes há três pastores no filme, todos eles diferentes. O primeiro, aquele de que falas, é uma força da natureza. É como um fula em África ou um pastor do Médio Oriente, um pastor que tem um ofício, um código de comunicação com as suas ovelhas, intuitivo, que ainda pertence um pouco ao neolítico. O que transmite às suas ovelhas é um código onde é difícil separar a música, os aspectos fonéticos, lexicais: sente-se uma indistinção entre todos estes elementos. E ele fala um subdialecto mais antigo que o português. É muito diferente do pastor do final. É um primitivo, no bom sentido da palavra.

Extractos de entrevista publicada in Cahiers du Cinema, n.º 276, Junho de 1977. Tradução de Isabel Câmara Pestana e Miguel Wandschneider.

Recolhido em: Martins, Ana e outros (da Comissão Organizadora do Ciclo) - Olhares sobre Portugal: Cinema e Antropologia, págs. 45-51, Centro de Estudos de Antropologia Social do I.S.C.T.E. e ABC Cine-Clube de Lisboa, Lisboa, 1993

(Continua)