domingo, março 27, 2011

193. NA MORTE DE ANTÓNIO REIS

[Poesia]

António Reis, que morreu em Lisboa, em 10 de Setembro de 1991, pouco depois de completar os sessenta e seis anos de idade (nascer em Valadares, Vila Nova de Gaia, a 27 de Agosto de 1925[1927]), deixou o seu nome nas últimas décadas ligado sobretudo ao cinema, onde realizou uma obra de grande originalidade que terá os pontos porventura mais altos em Jaime, 1973 [1974], e Trás-os-Montes, 1976. Antes, porém, de se iniciar no cinema, como assistente de Manoel de Oliveira, em Acto da Primavera, 1963, e autor dos diálogos de Mudar de Vida, de Paulo Rocha, de 1966, já se tornara conhecido como poeta através de dois livros, Poemas Quotidianos, 1957, e Novos Poemas Quotidianos, 1960, reunidos alguns anos depois (1967) com mais alguns inéditos em Poemas Quotidianos, volume antecedido de um estudo de Eduardo Prado Coelho e incluído na que era então no país a mais prestigiosa colecção de poesia, a «Colecção Poetas de Hoje», da Portugália Editora. As duas recolhas poéticas que lhe deram na altura uma justa reputação, e que não representavam as suas primeiras incursões pelos domínios da poesia (à semelhança de outros autores, arredou da bibliografia o que se não identificasse com o que considerava ser o verdadeiro timbre da sua voz), vieram a público, no Porto, sob os auspícios dos «fascículos de poesia» Notícias do Bloqueio, de que se publicaram nove números entre 1957 e 1962. O Porto é, entre os fins da década de 40 e os começos dos anos 60, palco de uma intensa actividade cultural, de que, para além da edição das Notícias, se destacam, para nos cingirmos ao campo literário, a publicação em 1949 e 1950 da Colecção «Germinal», dos três fascículos de A Serpente entre Janeiro e Março de 1951, o aparecimento em 1953 da revista Bandarra, a qual tem nos períodos compreendidos entre Janeiro de 1955 e Setembro de 1959, em que se apresenta como revista «de artes e letras ibéricas», e entre a Primavera de 1961 e o Verão de 1962, correspondente aos quatro números da segunda série, os pontos de maior interesse, e ainda a publicação do que era, sem dúvida, ao tempo, o melhor suplemento literário da imprensa diária portuguesa, o Suplemento «Cultura e Arte» de O Comércio do Porto. Na vida cultural da capital nortenha, em cuja área metropolitana então residia e trabalhava (como empregado de escritório, rezam as notas biográficas que sobre ele existem em antologias de poesia), distinguia-se António Reis como uma «figura» particularmente «activa», de acordo com o belíssimo retrato que Paulo Rocha traçou, em texto publicado no JL, na semana seguinte à da sua morte (17.9.91).

A produção coligida no volume da Portugália em 1967, e que compreendia uma centena de poemas escritos entre 1952 e 1962, situa-se dentro de uma orientação realista com forte implantação junto dos poetas da geração de 50 que, por essa altura, se encontram radicados na área do grande Porto. Os poetas dessa tendência fazem mesmo parte, poderíamos dizer, de uma segunda geração neo-realista que se afirma em lugares como as revistas acima referidas, e na qual António Reis representa uma faceta intimista, tal como já acontecera com João José Cochofel relativamente ao primeiro neo-realismo poético, o que teve na Colecção «Novo Cancioneiro» o seu mais conhecido lugar de afirmação. A lírica despojada do autor de Poemas Quotidianos, sem deixar de fazer a denúncia da atmosfera opressiva que se respira no Portugal de Salazar («Não esqueço os mortos // Não esqueço os heróis // Não esqueço / o luto / das famílias // todos silenciosos // Denuncio / publicamente / a nossa cobardia // e quem mente»), detém-se sobretudo, distanciada do fôlego épico que atraiu muita da poesia que lhe é ideologicamente afim, no registo dos pequenos nadas de que, em sintonia com o que o próprio título sugere, se compõe o dia-a-dia na cidade – uma cidade que, simultaneamente, se ama e é fonte de sofrimento pelas «imperfeições e mágoas» que a desfeiam – daqueles que dificilmente alcançam a satisfação das necessidades mais imediatas («Depois das 7 / as montras são mais íntimas // A vergonha de não comprar / não existe / e a tristeza de não ter / é só nossa // E a luz / torna mais belo / e mais útil / cada objecto»). O poeta entra nas suas casas, aponta as carências que os atingem, comunga das preocupações que os afligem («Hei-de entra nas casas / também / como o luar // A ver as faltas de roupa interior / e de cama // os rostos preocupados / com os avisos da luz e da água // com a máquina de petróleo apagada / jornais nas paredes / e um pássaro na varanda / a cantar / ao lado de uma flor»). E percorre com um olhar terno e comovido esses interiores de casas de gente modesta, de existências apagadas mas carregadas de memórias, já então submetendo as imagens que vai captando a um princípio que se diria o da montagem cinematográfica («Hei-de entrar nas casas / também // como o silêncio // A ver os retratos dos mortos / nas paredes / um bombeiro um menino // A ver os monogramas bordados nos lençóis // Os vestidos virados / os vestidos tingidos / os diplomas de honra / as redomas // E a caderneta de Socorros Mútuos e Fúnebres // em atraso»).

Mas o poeta que se entrega, com a sua câmara, à captação dos espaços interiores e que os faz equivaler ao «espaço interior» criado nos próprios poemas, à interiorização, sem a qual nenhum universo lírico encontra ressonância junto do leitor («Um espaço interior / criei / nestes poemas // onde estalam os móveis / e os sentidos // onde as ideias / a meia-luz / respiram // e a vida / e as imagens / não se reflectem / só / vidros»), é também, e por excelência, o poeta do amor conjugal, dos dias preenchidos por uma intimidade partilhada; «Conheço / entre todas / a jarra que enfeitaste // têm o jeito / com que compões o cabelo / as flores que tocaste»; «Enquanto estudo / oiço-te na cozinha // sei o que fazes / o que pensas / sentes // Vês uma flor / no ovo da sertã // dás vida / a um peixe / o mar // mas o gosto / atraiçoa-te // e a maçã»). A este respeito, ficará como um dos momentos mais altos da nossa tradição elegíaca aquele poema em que António Reis fixou a funda melancolia e a dor sem consolo possível de que sempre se faz acompanhar uma mudança de casa («Mudamos esta noite // E como tu / eu penso no fogão a lenha / e nos colchões // onde levar as plantas // e como disfarçar os móveis velhos // Mudamos esta noite / e não sabíamos que os mortos / ainda aqui viviam // e que os filhos dormem sempre / nos quartos onde nascem / Vai descendo tu // Eu só quero ouvir os meus passos / nas salas vazias»).

No depoimento vindo a lume no JL, refere-se Paulo Rocha ao estímulo que para António Reis terá representado a colaboração que lhe deu na tradução dos 50 Haiku que publicou na Moraes em 1970, levando-o a retomar a escrita poética. Esperemos que se não tenham perdido os poemas mencionados pelo cineasta e que, em breve, possam ver a luz do dia. Ou que, pelo menos, algum editor se lembre de, sem demora, reeditar os Poemas Quotidianos, há muito esgotados. É a melhor homenagem que, enquanto poeta, se lhe pode prestar.

Fernando J. B. Martinho

Revista Colóquio/Letras. Letras em Trânsito, n.º 121/122, págs. 283-284, Jul-Dez 1991.

sábado, março 26, 2011

192. SEI QUE CHORAS

Sei que choras
muitas vezes
sozinha

e que lavas
o rosto

(Ah Onde
ando eu)

para a tua dor
não ser minha


António Reis - Novos Poemas Quotidianos, pág. 56, Porto, [1959].