quinta-feira, fevereiro 14, 2008

173. «ANA» - Crítica de José de Matos-Cruz

[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]

A abordagem de motivos genuínos da nossa cultura e realidade constitui uma via fecunda para a produção artística portuguesa

No exemplo de "Ana"

Dos dilemas e malogros, desenganos e expectativas por que tem passado o cinema português nos últimos anos, a precariedade de uma experiência permite, pelos menos, extrair algumas ilações quanto à adesão ou convívio do público. São, assim, baldadas as tentativas de reactivar certas fórmulas que por cá tiveram êxito, ou de importar modelos consagrados pela produção internacional. Parecendo óbvio, tem-se verificado ser na abordagem de temas ou motivos, genuinamente circunscritos à nossa cultura e realidade, que resulta a viabilidade duma expressão artística, harmonizada pelo talento e autêntica sensibilidade do autor que lhe dá manifestação.

Não sendo talvez decisivo, ainda poderá depreender-se que passa por estas condições mínimas uma eventual penetração dos filmes portugueses no estrangeiro, tal como a prática vem contestando que a respectiva carreira doméstica se resolva a favor dos que pressupõem uma inerência aos desígnios comerciais. Pelo contrário – e para além duma implementação de prestígio, que se processa dentro ou fora de fronteiras – são os sulcos rasgados por uma autêntica e original projecção estética, em seus estigmas e virtualidades, que usufruem duma implantação a médio prazo, sem escamotear que o cinema nacional não tem hipótese de rendibilidade automática, nos estritos limites do mercado natural.

Irrompendo por estes pressupostos e ditames, «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro, teve finalmente estreia em Lisboa, sagrando um espaço inaugural vocacionado, para cuja animação se espera o investimento e privilégio do que ao país corresponde... E não se procure nesta ênfase qualquer chauvinismo: é ainda o espírito de «Ana» que nos faz confiantes – pois, se a aposta na sua difusão envolve um risco inevitável, a assunção do desafio que lhe está implícito constitui, desde já, um justo prémio para os realizadores, logo porque pugnaram sem rendições ou cedências para assegurar uma exibição condigna – tanto no que concerne à aparelhagem de reprodução, como quanto à qualidade das cópias.

Aliás, estes aspectos apenas reflectem a exigência exemplar que a dupla Margarida Cordeiro/António Reis coloca em sua intervenção e criatividade – arrostando os maiores sacrifícios face às contingências económicas, ou subvertendo a confecção artesanal num prodígio de imaginação e, também, numa imagética prodigiosa... Com «Ana» tudo se detêm e reinicia, o tempo e o verbo, o som e o silêncio, a morte e a mãe, a memória e a geração. Uma essência para além da vida, um olhar que é antes da filmagem, a música que o gesto devolve, a pintura repleta na paisagem – como se o quotidiano e o ritual, gerados sucessivamente, coincidissem onde o sonho se suspende.

Com «Ana» regressamos, aliás, a uma ancestralidade onde coerência e origem, resistência e singularidade forjam o sortilégio imutável duma solidária genealogia e duma consciência cultural. O nordeste como território mítico, a mulher como sinal de transmissão, a família como arquitectura milenária, a natureza como solene exaltação e reequilíbrio mágico, transparecem neste fascinante, fabuloso envolvimento que a textura fílmica reflecte, sem inibir ou deturpar – porque, simultaneamente, estimula ao espectador uma activa participação de emoções, experiências e evocações face a um inventário de identidade que perspectiva e transfigura.

José de Matos Cruz

Jornal O Jornal, pág. 30, de 10 de Maio de 1985.

domingo, fevereiro 10, 2008

172. «ANA» - Crítica de José Vaz Pereira

[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]

DISCURSO INOVADOR FEITO DE REGRESSO ÀS ORIGENS

«ANA»
MONTANHA
VOLTA A SER MÁGICA


FINALMENTE «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro, acabou por estrear-se, ao fim de uma série de vicissitudes e contrariedades. O percurso muito próprio e muito pessoal dos seus autores estabelece dificilmente um «modus vivendi» com o sistema. «Ana» é um filme que nada tem a ver com o que o rodeia. Esta independência, este caminho que já vem de «Jaime» e de «Trás-os-Montes» faz da obra de António Reis e de Margarida Cordeiro um caso à parte.

Escrevemos acima que «Ana» é um filme que nada tem a ver com o que o rodeia. Vistas as coisas de outra maneira talvez tenha a ver com tudo. «Ana» equivale a algo de muito profundo, a sentimentos, a sensibilidades e a culturas aparentemente perdidas mas que jazem adormecidas dentro de nós. O filme de António Reis e Margarida Cordeiro vem de muito longe, da noite das origens, mas, curiosamente, está perto da nossa sensibilidade e, nesse sentido, concordamos com várias pessoas que têm afirmado que «Ana» se liga à maneira de ser portuguesa mas não no sentido mais imediato. Pelo contrário. Essa ligação tem a ver com um relacionamento homem-terra, homem-mundo, é vasta e complexa, abarcando uma área tão imensa que se torna difícil, quando não impossível, delimitá-la por fronteiras.

«Ana», que à primeira vista parecerá um filme só habitado pela memória, transforma-se numa vivência. Ao contrário do que acontecia com a sua longa-metragem anterior, António Reis e Margarida Cordeiro colocam esta obra tão esperada não numa determinada província ou região caracterizada mas num estado de espírito. Claro que este estado de espírito tem uma tradução geográfica mas, se olharmos para as montanhas veremos provavelmente mais do que lá está, outras paisagens ainda, ou então pode acontecer que cada um tenha a sua montanha.

«Ana» está longe de ser um filme hermético. Mas habita outro tempo, possui outra respiração e mostra outro ritmo. Contar uma história ou montar um espectáculo, são totalmente alheios à sua essência. Numa palavra, não é disso que se trata e quem procurar por esse caminho ficará com certeza desiludido.

O regresso

O tempo é diferente dentro de outro tempo. Nesse sentido, «Ana» é o menos convencional dos filmes, não respeita nenhuma das regras a que a produção massificada foi pouco a pouco habituando o espectador, quase o amolecendo nas suas escolhas. Ele está, muitas vezes, mesmo sem dar por isso, à mercê de um produto estandardizado.

Com «Ana» encontramo-nos num cinema que não é susceptível de se medir pelos padrões normais. Diríamos que se trata de um filme belo mas com uma beleza que tem a ver com um discurso inovador. Curiosamente um discurso inovador que se faz através de um antiquíssimo tempo de regresso às origens, onde coexistem ecos de infância e de crepúsculo a cada canto, onde somos transportados a um país longínquo que outrora habitámos e que um dia – quem sabe? – voltaremos a habitar. Pela mão de António Reis e Margarida Cordeiro regressamos «lá» onde os olhos de uma criança, o voo de um pássaro, o ondear de uma seara, o calor do lume na lareira podem ter ainda significado.

Não existe continuidade de sequências, mas antes «momentos» que poderão equivaler a impressões fortes deixadas em nós e que não se pautam pela habitual sucessão cronológica. O fogo, o leite, a água, o vento, sentidos de uma maneira nova, são alguns dos tais elementos que mergulham nas raízes e a partir dos quais se constrói um universo de reminiscências e de anseios. António Reis e Margarida Cordeiro falam também da «dialéctica» da luz e não há dúvida que ela representa também um papel muito importante no olhar do filme, o elemento visual jamais terá sido tão nobre. Aliás, os tais momentos têm sempre um ponto comum e esse ponto comum é um profundo sentido da terra desocupada, neste caso pelos que emigram, mas que através dos olhos das crianças, dos adolescentes, dos velhos, volta a ser povoado pela emoção e pela lembrança. «Ana» confirma a via especial que António Reis e Margarida Cordeiro escolheram e se espera que desenvolvam.

José Vaz Pereira

Jornal A Capital, pág. 23, de 9 de Maio de 1985.