terça-feira, fevereiro 28, 2006

138. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Lauro António

[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]

OS POETAS E AS CRIANÇAS

O cinema português parece irremediavelmente atirado para uma fogueira de incompreensão e tristeza sem par. Quando envergonha a nossa cultura e a inteligência mediana do espectador encontra, na maioria dos casos, público em número bastante para prolongar as semanas de estreia. Quando se afirma íntegro, digno de qualidade estética e humana indiscutível, escasseia o público de forma aterradora. Entre 1975 e 1976 este facto já se verificou por vezes demasiadas: “Brandos Costumes”, “Benilde”, a recente retrospectiva da obra de Manuel Guimarães, a estreia de “Trás-os-Montes”. Mas o caso mais gritante será o deste último. Rodado durante dois anos por entre as aldeias e o povo transmontano por um poeta que já o era no livro antes de o ser na imagem, "Trás-os-Montes" representa o trabalho de síntese e rigor que a montagem de vinte duas horas de imagens recolhidas só raramente deixa supor. Um trabalho que se pressente, visto hoje, como roteiro de memória apaixonada por uma região e os homens que nela nasceram.
Quis o destino (!) que ao amor de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, abundantemente testemunhado ao longo das duas horas de projecção de “Trás-os-Montes”, correspondesse um qualquer grupo de transmontanos com artigos e comunicados, cartas e telegramas de irada fúria agressiva, acusando os autores de tudo e mais alguma coisa. Choveram cartas nos departamentos oficiais, nos órgãos da comunicação social, um pouco por todo o lado. Que não se viam as barragens, que não se vislumbravam as obras do Estado Novo, que Trás-os-Montes não é só miséria, nem só ignorância, nem só falta de higiene, que faltam os monumentos e as estradas, que faltam as aldeias com luz, que falta o sol, que faltam os petiscos da sua cozinha “que a agrura do clima exige que seja substancial” (esperemos que para todos!), que falta a obra do engenheiro tal, que faltam as paisagens, enfim, que falta tudo o que importante era para dar a conhecer Trás-os-Montes. Efectivamente, cremos que o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro é incompleto e omisso em relação a Trás-os-Montes: no povo que retrata com tanto amor e paixão falta na realidade uma referência a esses transmontanos boçais e rudes de entendimento que escreveram o que atrás se cita. Falta a imbecilidade e a brutalidade desses que ousaram levantar o seu sujo olhar para uma obra de uma pureza que desconhecem. Mas fiquem tranquilos os restantes transmontanos: esses conterrâneos (sê-lo-ão mesmo?) de caneta afiada e entendimento curto existem um pouco por todo o lado. Não são prerrogativa desse distrito. E movimentam-se sob o comando sábio de “quem de direito”. Por detrás deles outros valores mais altos se levantam. Que quase todos sabemos quem são e eles próprios confessam no seu infeliz arrazoado.
É triste, portanto, macular um filme como “Trás-os-Montes” com considerações deste tipo. Mas a repulsa é grande e a revolta um facto que se não pode calar.
“Trás-os-Montes” é um filme difícil. Estamos de acordo. É diferente do que é usual ver-se em cinema. Não é nem um documentário “turístico”, nem um testemunho meramente etnográfico. Não é também um filme de ficção, ainda que jogue com imagens criadas. Vamos mesmo mais longe: aceitamos que o título possa criar equívocos, preparar o público para um tipo de espectáculo que não é aquele que efectivamente lhe é oferecido. Mas nada disso retira legitimidade à proposta dos autores. Muito pelo contrário.
Que literatura seja o romance inglês do século XIX ou o “nouveau roman”, que seja a poesia de Camões ou de Baudelaire, que seja o ensaio ou o livro de memórias, as “viagens” ou a aventura, de Daniel Defoe a Jean Ray, que nela caiba a história, a psicologia, a etnologia, a crítica; que literatura seja tudo, eis o que hoje em dia poucos contestarão. O cinema, porém, aceita com mau grado a diferença de tom. Quem se comove com “E Tudo o Vento Levou” dificilmente aceitará Bresson: quem a todos sobrepõe Straub recusará, por óbvio, “A Laranja Mecânica”. Entre nós, para complicar as coisas, até certa crítica se deixa enredar neste sectarismo vesgo, reduzindo o mundo ao seu clube. Paga depois o justo pelo pecador. Neste caso, “Trás-os-Montes” que, numa semana de estreia no Satélite, pouco público movimentou, ainda que, posteriormente, mas numa única sessão (às 19 horas), se tenha mantido ao longo de algumas mais. E, todavia, o filme é desde já um marco na nossa cinematografia. Uma obra pessoalíssima, uma viagem íntima por uma terra que se conhece bem e dela se amam os rostos e as pedras, os silêncios e as sombras, os gestos e a angústia da noite. Viagem pessoal e intimista. Convém frisar: “Trás-os-Montes” não é um filme virado para o exterior de uma região, para o postal turístico, para o registo impessoal da máquina fotográfica. É um filme voltado para a emoção, para o interior das pessoas e das coisas, um ritual pagão que revela a fragilidade e a aspereza, a ternura e a dureza da terra, da pedra, do homem.
Um filme que procura reencontrar o olhar de uma criança.
Através dele a alma de um povo. O que não tem nada a ver com barragens ou estradas, electricidade ou higiene, “Trás-os-Montes” não procura enumerar, mas aprofundar. Não coloca imagem atrás de imagem para cobrir um território determinado. Diríamos antes que é uma imagem inicial que continuamente se amplia, para dessa ampliação resultar o conhecimento íntimo dos pormenores. Imagem essa que é simultanemente real e imaginada, presente e passada. Isto é: o “Trás-os-Montes” de António Reis parte de uma realidade (Trás-os-Montes) vista e sentida através de um poeta. Vista e sentida hoje e ontem. Viagem que é na superfície e também na memória. O silvo de um comboio tanto poderá ser o espaço geográfico que se percorre (e que de nós se afasta) como a memória que se rasga e se recupera.
A simplicidade é aparente, mas “Trás-os-Montes” é um filme simples, quase diríamos linear. Uma viagem: a recolha subjectiva-objectiva de notas que esse percurso justificou. Encadeadas segundo uma certa lógica interna que o espectador tenta descortinar, mas não será por vezes essencial descobrir. Importante será a disponibilidade perante as imagens, os sons, o ritmo. Poeta do “quotidiano”, não se peça a António Reis relato ou testemunho do evento grandioso ou sobre-humano. Ele só sabe falar desse dia-a-dia que é o nosso. “Trás-os-Montes” em 16 milímetros, cor, é o retrato de um quotidiano em várias dimensões. As várias vezes que se entrecruzam, ora convergindo ora divergindo. Uma cultura que se recupera: a história que se reexamina; a língua que se reescuta; as origens. E daqui parte-se para o futuro que nos espera: a forma de combater uma certa miséria, um certo subdesenvolvimento. Preservando valores essenciais. Um filme que alguns transmontanos não souberam (ou não quiseram) compreender, mas que esperamos todos os outros estendam como a mais bela homenagem. Para que todos os emigrants que partem por entre as sombras da noite e o silvo agudo da angústia sintam saudades da terra que para trás-os-montes foram deixando.

Lauro António

Revista ISTO É ESPECTÁCULO, n.º 1, pág. 40-41, Setembro de 1976 (Director e proprietário: Lauro António)

NOTA: No verso da capa noticiava-se: "trás-os-montes, um filme a cores de António Reis e Margarida Cordeiro, interpretado pelos habitantes de trás-os-montes; 50% de desconto para estudantes; apoiado pela Direcção Geral de Acção Cultural; agora em 4.º mês de 2.ª a 6.ª-feira, às 19 horas no SATÉLITE".

sábado, fevereiro 04, 2006

137. "TRÁS-OS-MONTES" - Carta de Luís Machado

[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]

Carta aberta a um poeta-cineasta chamado António Reis

Meu caro António Reis:

Foi com emoção que vi este teu segundo filme (teu e da Margarida Martins Cordeiro). Acredita que a sensação que tive foi a de ter visto uma das mais bela obras que o cinema português produziu até hoje. O esforço de dois anos, empreendido por vocês, valeu realmente a pena. Devo confessar-te, antes de mais, que quando me decidi a escrever-te esta carta aberta o fiz não por qualquer obrigação crítica, mas apenas porque senti que o devia fazer. Porquê? Fundamentalmente por considerar que um cinema honesto como o vosso é útil e importante para todos nós portugueses: 1) Porque é genuinamente português. 2) Porque levanta questões que outros filmes portugueses escamoteiam. 3) Porque entendo que a divulgação de um cinema como este é gritantemente necessária. 4) Porque um filme como «Trás-os-Montes» não pode nem deve ser retirado do cartaz sem que uma grande parte dos portugueses tenha tido oportunidade de o ver. Entendi «Trás-os-Montes», para além de uma homenagem, essencialmente como uma defesa corajosa e intransigente de um povo e da sua cultura.
É uma denúncia grave do desinteresse e da apatia a que uma série de governos tem condenado as terras transmontanas e a sua gente. É o retrato de um povo trabalhador que há séculos é permanentemente humilhado e escravizado. Mas é também o sofrimento, a angústia, a frustração, o subdesenvolvimento e o analfabetismo de uma parte do povo português e de uma vasta parcela do território nacional.
É pertinente perguntar: será que Trás-os-Montes não é Portugal? Então para quando a solução dos problemas reais dos transmontanos? Para quando a descentralização cultural e administrativa? Mal conheço Trás-os-Montes e, tal como diria Jean Rouch, não gosto de falar do que conheço mal, mas o tom sincero das imagens deste filme de tal maneira me impressionou que não tive a menor dúvida em aceitá-lo.
No vosso filme há a estranha sensação de que cada sensação de cada minuto que passa é uma espécie de sopro na vida que se vai apagando, tudo isto traduzido numa original linguagem de imagens, sons e silêncio, que só dois poetas com a vossa sensibilidade conseguiriam criar.
«O ritmo é lento» - comentavam alguns espectadores à saída; é evidente que tinha mesmo de ser assim, a vida em Trás-os-Montes também é muito lenta. É um tempo que demora muito a passar, é um tempo de eternidade, é um tempo de sofrimento. É evidente que há muitas pessoas que podem não gostar do vosso filme, o que é legítimo. Todos nós sabemos que nas grandes cidades a mecanização da vida é uma realidade. Quantas vezes o egoísmo dos seres que nelas habitam leva à segregação da nossa população rural e ao implícito alheamento da sua cultura?
Para alguns, pois, a temática no vosso filme pouco interessou, mas não será salutar a existência de pessoas que gostem e rejeitem? Para já é sinal de que foram motivadas a ver «Trás-os-Montes», mas acima de tudo é a confirmação do começo da existência de uma análise crítica por parte dos espectadores portugueses.
Não esqueço o que uma vez disseste – «Em Trás-os-Montes, há nove meses de Inverno e três de inferno» – recordas-te? De facto, a vida em Trás-os-Montes é um autêntico inferno permanente de luta e esquecimento. Nas aldeias transmontanas quase só existem mulheres, crianças e velhos; a culpa é do fenómeno da emigração, que obriga os homens a procurar outros locais de trabalho, nas cidades, na maior parte dos casos estrangeiras, de forma a poderem matar a fome à sua família. Talvez por isso, para aqueles que ficam, exista uma dimensão de solidão terrível, uma espécie de incomunicabilidade permanente com uma civilização que lhes é distante.
A cena do adeus, aquela do pai que parte deixando a filha acenando-lhe durante largos minutos, até desaparecer quase no infinito, é de um simbolismo e de uma beleza estética impressionantes. Os jogos das crianças, a própria rudeza permanente da paisagem transmontana, sendo de salientar em especial aquela cena do comboio perdendo-se na noite, com uma simbólica cortina de fumo branco a envolvê-lo, são realmente inesquecíveis.
Que tipo de cinema nos mostra então o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro? Um levantamento etnográfico, um diário intimo, uma viagem pelo imaginário ou um cinema-poesia? Talvez um pouco de tudo tenha tornado «Trás-os-Montes» num novo tipo de cinema realizado em Portugal. Quer através dos processos, quer através do estilo pessoal dos seus autores, quer pela própria dialéctica que encerra, estamos na verdade perante um acto estético dos mais puros. Para reforçar diria até que este belo filme marca a abertura de um curioso processo dialéctico entre a estética e a técnica do cinema, o que me parece que poderá resultar igualmente em termos de comunicação social se o processo for aprofundado.
A um filme como este, que é um retrato de um cinema directo, pois marca uma decisiva vitória para o nosso cinema, cabe levantar três questões: a primeira está directamente relacionada com o som; eu sei que a culpa não é vossa, mas é uma tristeza que um filme desta qualidade seja sabotado pela péssima banda sonora. Será que os técnicos portugueses são impotentes? Será que não conseguirão realmente resolver o problema do som? Passemos à segunda questão, esta relacionada com os silêncios – são maravilhosos; não há dúvida que as imagens são suficientemente fortes para nos dizerem tudo, mesmo sem o mínimo ruído. A terceira e última questão é relacionada com a não existência de maquilhagem nos rostos das figuras humanas. Alguém criticou a tua teimosia por durante as filmagens teres recusado maquilhar os intérpretes; ora eu concordo inteiramente contigo em não os teres maquilhado, pois se o fizesses decerto destruirias toda a dignidade dos rostos humanos que tão afanosamente escolhestes.
Se aquele desabafo que me confidenciaste se confirmasse, o estrebuchar do nosso cinema far-se-ia sentir (não emigre, agora mais do que nunca é necessário fazer mais cinema como o vosso em Portugal). E que o segundo filme sobre Trás-os-Montes se inicie muito em breve, pois parar é morrer.

Luís Machado

Jornal A Luta, pág. 14, de 11 de Agosto de 1976