sexta-feira, setembro 30, 2005

112. FALECIMENTO - Texto de Carlos M. Ferreira

UMA POÉTICA DO ESPAÇO E DA PALAVRA

Para quem foi poeta antes de cineasta, a poética do cinema não só terá sido coisa estranha, como terá sido necessária. Não uma poética feita de rimas formais apenas, de repetições rimadas, mas uma poética como tratamento intensivo do espaço e da palavra.
António Reis é parte integrante da cultura portuguesa da segunda metade do século e, a esse título, tudo aquilo que fez, escreveu ou filmou, como a sua própria vida, está imbuído do seu pensamento, do seu ser emocional e intelectual, da sua existência como da sua consciência, da sua afectividade como do seu conhecimento.
Num tempo de indecisões cinematográficas, de repetição experimental de percursos estéticos, de aflitiva escassez de veros valores no cinema português, ele, com Margarida Cordeiro, fez o cinema que a mais ninguém passaria pela cabeça fazer. E, no entanto, os seus filmes vão ao encontro dos grandes autores de uma poética cinematográfica do homem e da natureza, como Alexandr Dovjenko, o mais puro e despojado de todos.
JAIME é um breve poema sobre um pintor marginalizado e desconhecido, um filme sempre mantido no limiar do insustentável, percorrido pela solidão dos desterrados que, antes de o serem, já eram discriminados pela forma de vida que eram forçados a levar. É um poema sobre as manifestas a mas ignoradas agruras da vida que levam a que seja nas circunstâncias mais insólitas que o homem encontra a sua voz interior, a paz de espírito que lhe permite escutá-la. Filme de uma delicadeza visual e cromática espantosa, JAIME prolonga a inspiração poética de António Reis e anuncia a sua chegada ao cinema.
Em TRÁS-OS-MONTES aquilo que fora fechado, circunscrito no espaço, encarcerada procura do infinito em si próprio, abre-se para o exterior. A memória e o imaginário de um homem transforma-se na memória e no imaginário colectivos de uma região esquecida, depauperada, e a visita a um espaço interior transforma-se em viagem de reconhecimento aos diversos tempos e às diversas actividades dessa mesma região. Aí o maravilhoso encontra a tradição e esta aquele, a actualidade fere pela distância a que continua a forçar os indivíduos, as famílias, a comunidade. A uma ideia de continuidade vem juntar-se uma outra, a da fatalidade da separação.
A poética volta a ser da palavra mas, mais extensivamente e com forte apoio no tempo, é também a do espaço físico: o espaço da natureza em que se inscrevem as figuras humanas, como que intemporais de tão violentamente actuais.
O tratamento do tempo sofre uma precisa interpretação poética, que assume foros de decantação da imagem, de depuração dos seres, das palavras, da paisagem. Cada plano, cada movimento de câmara tem que ter aquela duração precisa, e não outra, para que o filme em nós persista, com as suas imagens obsidiantes.
ANA é um decisivo passo em frente, com a ligação de tempos cronológicos de forma mais estreita, com o espaço mais cerradamente definido em função dos personagens, com os seres mais angustiadamente presos das noções de destino e de predestinação. Como se enunciado no feminino, este é mais deliberadamente o filme da terra-mãe, da matriz da vida, da fonte do conhecimento como do mistério, da tentativa de chegar a compreender e a explicar ciente de que se fica sempre inexoravelmente aquém.
Há alguma coisa de fluido, de fugidio em ANA que o aproxima dessas grandes visões quase místicas da natureza em que se confundem espaços e tempos, em que se fundem gerações. Mas este é também o filme da evidência do corpo, em que Reis e Margarida Cordeiro se confessam estarrecidamente solitários num mundo sulcado por sinais dificilmente reconhecíveis de tão evidentes que são. Ninguém parece reparar no que eles aí anotam porque todos ou o sabem, ou o souberam e já esqueceram. A evidência é a da natureza, que tanto pode chocar como deixar indiferente quem dela julga viver alheado ou prefere fazer de conta que a ignora.
ROSA DE AREIA faz aquilo que não devia fazer, isto é, coroa antes de tempo a obra dos dois autores num alargamento cosmogónico de visão do mundo e consuma uma viagem pelo seio da natureza de que participamos como se fosse uma viagem interior, a de JAIME, por exemplo.
Não sei dizer mais do que a enorme pena que me causa esta obra tão apaixonadamente partilhada a dois ter sido interrompida pela morte de um dos autores. Dói-me, em qualquer caso, mais a morte de António Reis do que esse outro motivo de lamento que decorre de saber que filmes projectados ficaram pelo caminho, irremediavelmente.
Com cada cineasta que morre, morre um pouco do cinema. Com António Reis morreu a tensão poética entre o ser e o mundo, entre o universo físico e o universo, paradoxalmente inominável, da palavra.
Ficam-nos os filmes que fez com Margarida Cordeiro e a saudade dele. Fica-nos a obra insubstituível de um homem de grande sensibilidade que soube partilhadamente transmitir, como que em surdina, toda a pujança da natureza e toda a vitalidade, mesmo se precária, do humano, ao mesmo tempo que a angústia do homem por dificilomente subsistir a si mesmo e por se compreender uma pequena parte do universo de que participa, que procura decifrar e em cujo regaço acaba por encontrar apaziguamento final, depois de escassamente o poder ter visto reflectido em si mesmo.
O António morreu. Carinho para a Margarida.

Carlos Melo Ferreira

Revista A Grande Ilusão, n.º 13/14, págs. 11-12, Outubro de 1991 a Maio de 1992, Edições Afrontamento, Porto, 1992

quinta-feira, setembro 29, 2005

111. FALECIMENTO - Texto de João Lopes

Contracampo

António Reis, formalmente

Como todos os guardiões das formas, António Reis era um homem difícil. Numa imagem de cinema, tanto quanto num encontro casual - e, com ele, os encontros casuais podiam transformar-se em capítulos de romance -, ele via o trabalho das formas, quer dizer, a pulsação da vida.
Era difícil porque as formas são difíceis e não admitem as traições mesquinhas dos homens. Devolvem-nos tudo o que somos, sem que adiante desculparmo-nos ou culpabilizarmo-nos.
Sem dúvida, por isso, ele tinha uma relação com o cinema que não necessitava das ostentações de qualquer saber enciclopédico. Creio mesmo que Reis não conhecia muitos filmes. Mas não haverá muita gente que saiba, como ele sabia, expor-se, disponível e cândido, ao que, em qualquer «reprodução» (e o cinema é, talvez, a mais ilusória), já é forma. Ele sabia que o labor das formas começa ou, pelo menos, revela-se a partir do momento em que as coisas passam a ser mais do que a simples condição do seu ser e ganham um nome. Isto é, sempre.
Daí o seu combate pela simples afirmação do nome que ele desenvolveu, precisamente, em torno do nome de Margarida Cordeiro, que com ele partilhou os filmes e a vida que só a eles pertence. Vezes sem conta, Reis indignou-se contra a falta de rigor ou, pior do que isso, a indiferença das prosas de imprensa que omitiam o nome de Margarida na realização dos seus filmes. Não era um combate por nenhum valor ideológico, nenhum feminismo, nenhuma imagem de marca. Era uma revolta contra a incapacidade de respeitar os nomes. Logo, as coisas. Logo, todas as galáxias da existência. Reis revoltar-se-ia contra Deus, se Deus não soubesse ser digno dos nomes das suas criaturas.
Um pouco abaixo de Deus, as entidades oficiais do nosso país deram provas de uma indiferença gelada perante o nome de Reis e a palavra morte com que, agora, nas biografias deveremos recobri-lo. Em momentos de galas e funções da Europália, nenhum governante com o peso, o poder e o valor simbólico necessários para a ocasião veio dizer ao povo essa coisa simples que, como eleito da colectividade, lhe competia dizer: que, com a morte de António Reis, desapareceu uma das grandes figuras da cultura portuguesa contemporânea. Aliás, foi toda a classe política a dar de um escandaloso alheamento que define bem a vacuidade da sua relação com o universo cultural e, sobretudo, a sua incapacidade para se pensar também como sujeito cultural. Todos os discursos remendados que vierem a seguir não passarão de patéticas confirmações dessa incapacidade.
No fundo, tudo isso está certo, revoltantemente certo. Tem a ver com esse «morrer sozinho» de que João Mário Grilo falava no último EXPRESSO (14/9) ou o viver com os filmes em «autismo obstinado», para utilizar as palavras que, com tocante justeza, Eduardo Prado Coelho escreveu num texto publicado no «JL» (17/9).
É por isso também que a herança de Reis é tão difícil como ele era. E tanto mais quanto a obra de Reis e Margarida está por cumprir na sua relação com o público: Rosa da Areia, o seu derradeiro e belíssimo filme, permanece quase invisível entre nós. Não por acaso, é um filme que redobra as dificuldades, sendo, como é, um objecto de radical exterioridade até ao próprio cinema - existe, apenas, como se fosse o primeiro filme do mundo. Resiste também através dessa rede de afectividades que Reis parecia estar incessantemente a refazer, como quem produz cenas de um outro filme envolvido com o próprio quotidiano. Daí nasceram muitos dos seus amigos - somos poucos, mas bons.

João Lopes

Jornal Expresso, 21 de Setembro de 1991

quarta-feira, setembro 28, 2005

110. FALECIMENTO - Texto de António Cabrita



António Reis

Uma morte não anunciada

«Como quem entra por engano morte dentro». Este verso de Ruy Belo devia ocupar o pensamento de todos os presentes no Cemitério de Benfica, quarta-feira onze, quando se realizava o funeral de António Reis, 64 anos de idade, poeta, cineasta e professor da Escola de Cinema do Conservatório Nacional. A consternação matizava o rosto e os sussurros dos presentes, todos eles indefesos perante esta morte não anunciada. João Mário Grilo, João Botelho, Paulo Rocha, Pedro Costa ou João Bénard da Costa, de entre um punhado mais de amigos, não escondiam a surpresa e à vez relatavam encontros com o cineasta, aparentemente saudável, nas vésperas de uma gripe, rapidamente, o ter vitimado.
O inesperado da sua morte o facto de ter sido omitida no próprio dia pelos órgãos de informação (só no dia seguinte sairia no «Público» uma pequena notícia) foi um dos factores adiantados para explicar tantas ausências no funeral de uma das maiores figuras da cultura portuguesa pós-25 de Abril.
Mas João Mário Grilo iria mais longe: «Chocou-me ver como é que se morre tão sozinho. Foi a enterrar com os amigos, o que também é bonito, mas não sei... o Reis merecia mais, foi alguém de quem todos nós fomos testemunhas. Acho que o país lhe deve muito mais do que ontem lhe pagou. O mundo da cultura esteve um bocadinho ausente e não senti a presença dos órgãos de representação pública».
Originário de uma aldeia próxima do Porto e de origens muito humildes, António Reis passou a sua infância e adolescência junto de camponeses, operários e pescadores; experiência que lhe seria essencial para a justeza dos diálogos que escreveria mais tarde em Mudar de Vida, de Paulo Rocha.
Ainda operário fabril começa a escrever poemas, prática que o levaria nos anos 57 e 60 a duas recolhas, Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos, com que marcaria uma diferença em relação às linhas de força que tenderiam a sufragar o veio lírico dos anos sessenta.
Entretanto, frequentava o Cine-Clube do Porto, decisivo para a sua formação, onde, integrado na Secção de Cinema Experimental do Cine-Clube, participou na feitura de Auto de Floripes (59); tendo colaborado também em dois documentários pouco vistos, Painéis do Porto (63) e Do Rio Ao Céu (64).
Mas seria em 73 que a sua carreira conheceria o balanceamento decisivo com Jaime, retrato de um louco que se revelava um génio plástico, que João César Monteiro classificaria como «um dos mais belos filmes da história do cinema».
Seguiram-se Trás-os-Montes (74-75), Ana (81) e Rosa de Areia (88), os três co-realizados com Margarida Cordeiro, que cimentaram um cinema poético, não narrativo, que surpreendeu a Europa e constituía um exemplo contra a ditadura do cinema comercial. João Mário Grilo: «António Reis e Margarida Gil experimentaram o cinema como uma arte e foram os últimos a fazê-lo em liberdade radical».

Cinema de reflexão,
contemplativo

Esta última questão, a da sobrevivência de uma diferença genuína do cinema português em relação aos modelos narrativos dominantes, é uma questão que preocupa agora ainda mais os últimos defensores de um cinema mais reflexão, contemplativo, que tinha em Reis uma das suas figuras tutelares. «O cinema português está de luto e vejo com grade inquietação o seu futuro, porque as novas regras de produção, industrializando-o, tenderão a neutralizar o que lhe era específico», frisou Acácio de Almeida, que assinou a fotografia de todos os filmes de Reis e que é de momento um dos técnicos mais prestigiados da Europa.
Opinião que é corroborada por José Bogalheiro, chefe de produção e também ele professor da Escola de Cinema: «No panorama do cinema português, vai abrir-se uma brecha. O silêncio dos meios de comunicação sobre a morte do Reis é um sintoma das novas maiorias. Mesmo em termos de vazio que ele deixa na Escola é um lugar impreenchível. O Reis era um representante de um cinema minoritário e tinha uma poética que entre os alunos provocava adesões».
Serão, doravante, sempre póstumas as homenagens.

António Cabrita

Jornal Expresso, 21 de Setembro de 1991

domingo, setembro 25, 2005

109. FALECIMENTO - Texto de José Bogalheiro

António Reis, nosso mestre

«Dans mon pays, on ne questionne pas un homme ému» (René Char)

Não pode ser. Os telejornais nossos de cada dia dar-nos-ão, sem pedirmos, insistentes apontamentos necrológicos relativos aos seus incontáveis amanuenses e outros mangas-de-alpaca que, apesar de tudo, por lá vão batendo a bota e, a nós, ser-nos-á cada vez mais difícil saber quem são e aprender a estimar os nossos cineastas, os nossos artistas, os nossos homens de cultura.
Como erguer então, em lugar à prova desta brutal barragem, a memória do nosso convívio com eles, se tivermos tido esse privilégio, senão partilhando o que foram os nossos segredos, afirmando algumas nossas íntimas convicções, arriscando indemonstráveis hipóteses?
Trago para aqui três.
A primeira. António Reis, nos últimos quinze anos, foi acima de tudo, um mestre.
Quando, em Fevereiro de 1977, nos encontrámos pela primeira vez, na Cantina do Conservatório Nacional, para acertar pormenores da sua vinda para a Escola de Cinema (onde inicialmente vinha substituir Seixas Santos, que temporariamente se afastara da Escola), pude desde logo aperceber-me de um traço fundamental que o caracterizaria nesta sua nova actividade: o seu radical antiacademismo.
Bem vistas as coisas, o António Reis, que enunciava o seu programa para a cadeira de Espaço Fílmico e desde logo manifestava a sua firme aversão ao título de professor reivindicando manter-se exclusivamente afeiçoado à designação de mestre, era afinal o autor que para mim fora uma revelação absoluta na inesquecível sessão de 14 de Maio de 1974, no Centro Cultural de St. Gilles, em Bruxelas, onde pela primeira vez vi o seu belíssimo e devastador «Jaime».
E porventura também ele terá intuído que para além do aluno, membro do Conselho Directivo da Escola, estava diante dele alguém que o admirava profundamente, ao ponto de me ter afirmado, no jeito da sua amabilidade, que já me conhecia muito bem.
A segunda. Pode haver quem não tenha sido definitivamente marcado por todos os seus filmes mas não haverá nenhum cineasta importante da «nova geração» que possa ter dispensado ou ter a leviandade de ignorar o magistério de António Reis.
É evidente que a sua poética, assente na vida das formas, se encontra mais do que nunca ameaçada pelos «fautores do entrecho» que António Reis tanto criticava.
E os cinemas dominantes encaram, talvez com complacência, a sua defesa cerrada dos valores formais, as suas invectivas a «cortar franco» com tudo o que é academismo, com as formas de produção standardizada, com a normalização narrativa.
E no entanto, quem pode ter dúvidas que o seu foi como o de René Char un métier de pointe e que também ele acreditava que il faut souffler sur quelques leurs pour faire de la bonne lumière?
A terceira. A posição privilegiada em que me encontrei durante este convívio, como aluno à sua chegada, como colega, responsável pela direcção da Escola, no momento da sua partida, permite-me ainda afirmar outra convicção: é que contrariamente ao que em tais circunstâncias se diz e regra geral é verdade, o António Reis é insubstituível na Escola do Cinema.
A sua dedicação incondicional que exigia como contrapartida uma relação afectiva dos alunos, porventura uma adesão indefectível ao que era seguramente a sua maior paixão - a (sua) poesia.
A sua erudição imensa que não o impedia de ser uma força divergente e o levaria talvez até a defender também que as escolas de cinema são precisas para proteger o cinema da televisão.
Coisas tão precisas.
«Se precisares de alguma coisa...» costumava dizer-me o António Reis quando se despedia. Como da última vez.
Precisamos absolutamente.
Nós - sabes quem somos? - que te dizemos:
- Ne te plains pas de vivre plus près de la morte que les mortels.
- Não pode ser.

José Bogalheiro

Jornal JL, pág. 7, 17 de Setembro de 1991

NOTA: Substituímos "Nós - sabemos quem somos?", como se encontra no jornal, por "Nós - sabes quem somos?", como se encontra em "António Reis e Margarida Cordeiro - a poesia da terra", org. Anabela Moutinho e Maria da Graça Lobo. Na mesma página do "Público", Fernando J. B. Martinho publica Pequenos dramas e alegrias discretas, sobre a poesia de António Reis.

sábado, setembro 24, 2005

108. FALECIMENTO - Texto de Eduardo Prado Coelho

Um autismo obstinado

Pensava-o imortal, não sei bem porquê. Talvez porque nunca o vi envelhecer. Entrou em minha casa há vinte anos – uma casa onde morei alguns meses, ali para os lados da Avenida de Roma. Uma casa que nem me chegou a ser casa, a não ser por duas ou três coisas muito nítidas que nela aconteceram. Uma delas foi o António Reis. Ele vinha do Porto, não sei se naquele dia ou no meu imaginário, e era alguém que tinha escrito uns poemas de uma extrema simplicidade, rasantes ao solo, de uma sensibilidade minimalista, a que chamara Poemas Quotidianos. O meu mérito estava em ter gostado daqueles versos; o erro seria complicá-los demasiado. Desde esse dia que me ligou ao António Reis uma enorme cumplicidade. E isso transbordou para o cinema. Para o Jaime, primeiro. E depois para o Trás-os-Montes. Nessa altura eu estava na Direcção-Geral de Acção Cultural, e o António Reis vinha ver-me quase todos os dias. Primeiro, foi que os jornais não diziam que o filme era tanto dele como da Margarida Martins Cordeiro. Eu explicava que não mandava nos jornalistas, ele queria que se fizesse qualquer coisa. Depois, porque o público não aparecia. Fizemos publicidade na televisão, arranjámos descontos para estudantes, aumentou-se a promoção, o público veio. Então, o António Reis chegava todos os dias de manhã e dizia «eles ontem riam nos momentos certos, choraram nos momentos certos, e à saída alguém disse…», e contava uma história.
Era admirável ouvir o António Reis falar dos seus filmes. A sua força está em ter vivido sempre no interior deles, numa espécie de autismo obstinado. A sua fraqueza está também nesse mesmo autismo. Mas era uma fraqueza como a das crianças que são por natureza fracas e implacáveis – por isso nos sentíamos seduzidos e comovidos quando ele nos explicava o filme que rodava incessantemente dentro da sua cabeça, circular perfeito. E ele explicava: aquele vermelho, procurámos a aldeia toda para encontrar aquela lã vermelha que ali estava certa. E aqui era preciso que o olhar se prolongasse porque a despedida era imensa. E contava, contava sempre, o seu filme infinitamente outro em si mesmo.
Se o pensava imortal, é porque sempre vi António Reis fora do tempo – isto é, dentro do seu filme. Recentemente, ele tentou filmar, já numa espécie de desespero-limite, uma «rosa de areia». As crianças gostam de brincar com a areia. O seu filme é agora uma areia mais pura. Na fronteira do ouro.

Eduardo Prado Coelho

Jornal JL, pág. 7, 17 de Setembro de 1991

quinta-feira, setembro 22, 2005

107. FALECIMENTO - Texto de Jorge Listopad

«Quando parto fico»

"Sobretudo poeta.
Como esse pequeno homem de boné, imagem de um operário anónimo na rua da cidade que não era sua, na mão o saco das compras com os mantimentos apenas necessários, a cara chupada, mas os olhos, olhos brilhantes alimentados de todas as meteorologias, pois, como esse «fora de jogo», levantava o mundo para ser visto, para nosso conhecimento.
Poeta sobretudo.
Poeta em tudo: de poesia escrita (pouco se sabe, hoje, até entre os poetas), poeta de cinema, em múltiplas funções, poeta da sua resistência (Pide, no Porto), libertado, vítima da «baixa calúnia» de que fala Dostoievski; poeta do comportamento.
O que pouco se sabe, hoje, os versos de António Reis. Os Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos, nos princípios dos anos sessenta, de mapa antidescritivo, mas factológico, sem retórica de persuasão («...enquanto estudo/ouço-te na cozinha...»), lembrando vagamente o longínquo Jessenin ao voltar de Moscovo à aldeia («Com que mão/a ferro/passas a minha roupa//viagens/sem erro//Qual o sonho/amor/no barco de prata//Acalma o coração/só batem à porta»); versos de observação naturalmente antropológicos, puros, de pureza naïf, ninguém se lembrou de os pôr em música...

Dois soldados
passam
de mãos dadas

como amantes

Não tardará
a ronda
a procurá-los

como cães

Soldados
de mãos dadas
têm nome

Não chegarão a ver as montras
e o rio
os dois soldados

e a sentar-se
num banco
de jardim

A ronda
não tardará
a alcançá-los


Canção de poucas palavras, poemas exactos, por detrás desvendando-se o mundo bachelardiano, dos centros vitais, da água, do fogo, dos cantos de casa. Aliás, Bachelard leu os seus poemas, sim, em português, numa das manhãs de Paris.
Embora a sua criação poética só raramente se encontre fora das bibliotecas dos amigos, à excepção, talvez de edição, mais recente, creio com o prefácio de Eduardo Prado Coelho (aquele que não me devolveu o livro, já não o devolve) publico o poema-manuscrito, certamente ainda menos conhecido, escrito em 1962, em momentos muito particulares, suponho, nunca impresso.

Mudamos esta noite

E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões

onde levar as plantas

e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos
ainda aqui viviam

e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu

Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias


«Eu não voo, ando...» Adeus, anjo pedestre, anjo autodidacta".


Jorge Listopad

Jornal JL, pág. 6, 17 de Setembro de 1991

terça-feira, setembro 20, 2005

106. FALECIMENTO - Texto do cineasta Paulo Rocha

Uma figura luminosa

Quando voltei de Locarno, em 63, trazia já a ideia do «Mudar de Vida». Pedi ajuda ao Bragança para os diálogos, mas ele não sabia nada de pescadores, e mandou-me para o Cardoso Pires. O C. P. gostava de cinema, e estava no auge da fama: acabara de adaptar «As Ilhas Encantadas» do Melvile para a fita do Vilardebó. O C.P. também sabia pouco de gente do mar, e mandou-me para a minha terra, o Porto, falar com o António Reis. Pouco conhecido cá em baixo, o António era uma figura muito activa na cena portuense.
Fazia trabalhos de campo, estudava a poesia popular do Alentejo e as falas dos pescadores da costa norte. Tinha sido um dos autores da «Arquitectura Popular Portuguesa», um livro muito citado pelos arquitectos da escola do Porto. Era amigo do Lixa Filgueiras, a grande autoridade sobre arquitectura naval tradicional, e planeava fazer um filme sobre o barco rabelo do Douro. L. Filgueiras seria mais tarde um personagem inesquecível num dos seus filmes de fundo. Para o Cine Clube do Porto ajudara a rodar o «Auto de Floripes», e tinha sido assistente do M. de Oliveira para o «Auto da Primavera». Estava a preparar uma tese de doutoramento numa universidade suíça sobre questões de cultura popular.
E era sobretudo um grande poeta, de poucas palavras, que dizia o essencial através da experiência das coisas banais. Na cultura portuense de esquerda daquela época, o A. R. era uma figura luminosa. Humilde, humilhado, secreto, vegetava nos escritórios da Vista Alegre, em Gaia. Odiava a arrogância de um patrão marialva e acompanhava de perto o fluir da vida comum. À primeira vista parecia um operário. Morava num apartamento em Gaia com vista para o rio. As paredes estavam cobertas com bonecos de pano de todas as cores, feitos pelos loucos de um asilo. Os bonecos eram monstros de várias cabeças e muitas pernas, e anunciavam já os desenhos de Jaime. Naquelas janelas que davam para o nevoeiro do rio havia uma energia irracional, um sopro vital à beira do abismo.
Com os meus complexos de meninote afortunado, fiquei rendido… E o António deu-me uma grande lição. Trabalhou nos diálogos durante seis meses, riscando e deitando fora. Cada dia mais magro, sempre em suores frios, à procura da vírgula, da pausa, da assonância secreta e expressiva. Os diálogos, arrancados a ferros, chegavam às filmagens à última hora, e não havia tempo para reflectir sobre eles. Só anos mais tarde, quando o «Mudar» se estreou comercialmente em Tóquio, é que tive oportunidade de os estudar. O trabalho de os traduzir para japonês era muito lento, e só assim pude descobrir a concisão musical, a riqueza secreta daquelas frases escritas com um ouvido infalível. Quantos diálogos haverá na nossa língua que se lhe possam comparar?
Mais tarde, quando traduzi do japonês uma série de 50 Haiku que foram publicados em álbum pela Moraes, pedi-lhe ajuda para «limpar» o texto. Não sei escrever em português, caio sempre em literatices falsas. Foi um trabalho de meses, as melhores aulas que tive na minha vida. O António sentia o peso de cada palavra, de cada sílaba, fugia aos efeitos. Por influência dos haiku o António recomeçou a escrever poesia, lembro-me de ele me recitar um quase haiku belíssimo, uma cena de matança. Era sobre a neve a cair no prato, onde coalhava o sangue do porco. Onde estará este poema? Havia outro, misterioso, dedicado a um olmo. Perdido também? Começou a estudar chinês, apaixonou-se pelo Tufu, de quem eu lhe emprestei uma edição bilingue, comentada. Acabou por pôr o nome de Tufu a um grande mocho que vivia lá por casa em liberdade. O poeta chinês deve ter ficado encantado, lá no assento etéreo.

Cinema profissional em Lisboa

Quando o C.P.C. se criou em Lisboa o António veio trabalhar para a Guérin em Lisboa, decidido a tentar a sua sorte no cinema profissional, onde ele não conhecia ninguém. A Margarida Cordeiro descobriu no hospital os desenhos do Jaime, e o António explicou aos sócios o que queria fazer, com aquele calor humano que só ele tinha. As pessoas ficaram apaixonadas pelo projecto, e como eu era presidente do centro aproveitei para pedinchar a ajuda de todos. Uns deram restos de película, o Acácio trouxe a equipa de imagem e o material, o filme foi nascendo numa atmosfera extraordinária de camaradagem. O resultado causou uma emoção considerável, e o António ganhou com ele na Alemanha o primeiro dos três grandes prémios internacionais que os seus filmes viriam a obter.
Quando veio o 25 de Abril o C.P.C. estremeceu. Os sócios acabaram por formar cooperativas independentes, já não precisavam do apoio de um órgão unitário coeso. Eu aproveitei a confusão para lançar o «Trás-os-Montes» como um projecto piloto de um futuro Museu da Imagem e do Som, um título populista grato ao poder revolucionário, e que eu tinha trazido do Rio de Janeiro. Lembro-me das salas vazias do centro, enquanto que os meus colegas andavam pelas ruas a filmar.
Eu e o António Reis ficámos sozinhos na sede a preparar os dossiers, a apresentar o museu e a pedir o dinheiro, que acabou por vir. Quase todas as fitas revolucionárias estão hoje esquecidas, mas o filme do António e da Margarida foi uma obra-prima que lhes deu fama europeia. Quando o filme estreou em Paris, no «Le Monde» saiu uma ordem terrorista assinada pelo Joris Ivens e pelo Jean Rouch, os dois mestres supremos do cinema documental: «Allez voir, toutes affaires cessantes, "Trás-os-Montes"!».
Durante dez anos o casal foi o ai-Jesus de uma certa crítica de vanguarda. A Kristeva correspondia-se com o António, e as pessoas que o encontravam nos festivais lá fora falavam dele mais tarde com a voz a tremer como se tivessem encontrado um profeta. Para esta aura ajudava o estranho magnetismo do António, e o trabalho incansável do António Pedro de Vasconcelos, que foi, à sua custa, e durante anos e anos, o melhor dos embaixadores do nosso cinema.
Já não acompanhei tão de perto a «Ana» e a «Rosa de Areia», filmes de que o Fernando Lopes poderá falar muito melhor do que eu. Nos últimos anos, com o novo-riquismo cavaquista, o ambiente era já muito desfavorável para os filmes de «poesia». O António deixou de ter apoio no I.P.C., e a «Rosa de Areia», produzida pela RTP, está ainda por estrear. O António passou por um período de solidão e de desânimo. Recentemente tinha sucedido um milagre. Um produtor suíço tinha-se apaixonado pelos seus filmes, e queria financiar o seu próximo projecto, uma adaptação de «Pedro Páramo», o maior dos romances mexicanos deste século. Era um projecto ambicioso, a filmar lá fora, com grandes meios... O António aparecia na escola de cinema contentíssimo, com uma alma nova. É um filme que nunca veremos, não me consigo conformar.

Paulo Rocha [cineasta]


Jornal JL, pág. 6, 17 de Setembro de 1991

domingo, setembro 18, 2005

105. ANTÓNIO REIS, POETA DO CINEMA

[Falecimento]

Morreu de súbito, na passada terça-feira, com 64 anos, um homem que era - que é - ao mesmo tempo um grande poeta e um grande cineasta. António Reis, natural do Porto e de há largo tempo para cá radicado em Lisboa, afirmou-se como poeta original em finais da década de 50 e princípios da de 60, com os seus «Poemas do Quotidiano» e «Novos Poemas do Quotidiano», alguns dos quais inicialmente divulgados nas «Notícias do Bloqueio». Depois de ter escrito os magistrais diálogos do filme de Paulo Rocha «Mudar de Vida» dedicou-se ele próprio ao cinema numa actividade de tempo inteiro (embora tivesse até dada altura empregos de subsistência), de que o primeiro fruto foi a longa-metragem «Jaime» (1972). Seguiram-se «Trás-os-Montes» (1976), excelentemente acolhida tanto aquém como além-fronteiras, «Ana» (1982) e «Rosa de Areia» (1989), ainda por estrear entre nós. Há muito que deixara de publicar poemas, mas nunca deixou de ser poeta. Alguns dos que o conheceram de perto e amaram evocam-no nestas páginas.

Introdução ao dossier elaborado pelo jornal JL, pág. 6, de 17 de Setembro de 1991, aquando da morte do cineasta.

sexta-feira, setembro 16, 2005

104. FALECIMENTO - Texto de Rodrigues da Silva

A morte de António Reis

Um adeus português

Inesperadamente, na terça-feira, morreu-nos um grande cineasta: António Reis. A dolorosa estupefacção permite mesmo assim dizer que ninguém como ele sabia evocar o espírito das coisas, o espírito dos lugares. Deste país. O nosso.
«O Trás-os-Montes do Reis já só existia na cabeça dele» - dizia alguém, há tempos. Seria verdade, se tivesse dito que o cinema de António Reis no coração lhe nascia, do olhar lhe brotava. Assim era. Por isso os seus filmes transfiguraram o real, dele partindo embora. O que deles fica não é, pois, a imagem fiel da realidade, mas a captação de algo que lhe é interior – «o espírito», apetece dizer. O espírito de uma realidade histórica e etnograficamente em vias de total desaparecimento, que nos filmes de António Reis se salvaguarda como o mais fiel, o mais poético, o mais autêntico dos patrimónios.
Se me é permitida uma evocação pessoal, direi que um dia, há anos, passava em Paris, no Action République, a primeira longa-metragem de António Reis: «Trás-os-Montes», justamente. Eu vira já o filme em Lisboa e amava-o. Quis revê-lo e deu-se o inesperado: quando, às tantas, a câmara, parada – totalmente parada, como que a querer suster o efémero de um instante – quando essa câmara fixa a noite transmontana, banhada por uma luz quase irreal, e se ouve, muito ao longe, o apitar do comboio, senti Portugal por inteiro, como nunca o cinema mo fizera sentir.
O comboio não se vê, apenas se ouve, como se fora a sua voz, e é ela que se transforma na própria câmara em «travelling», um «travelling» interminável. E, ouvindo-a – ouvindo essa tão solitária voz – compreendi que um certo Portugal mais e melhor do que ninguém Reis o conseguira captar. Como se, afinal, a realidade só de longe se possa estender. Só perdida se possa amar. Amar em nostalgia.
O universo cinematográfico de António Reis revela isto mesmo: não é a realidade, é a sua evocação. Ou antes, a evocação do espírito dela, feita por um poeta do olhar que, nostálgico, vê – ama – o real desaparecido.
O apito do combóio em «Trás–os–Montes» só tem correspondência no que o cinema português de mais belo nos tem dado com o longo «travelling», de «Ana», quando Ana, a personagem, do filme, caminha pelos campos sem fim, ouvindo–se em fundo o «Magnificat» de Bach.
Mais uma vez não é, obviamente, o real, nem tinha que ser, mas se isto se diz é para desfazer equívocos. Equívocos de que tem sido vítima o cinema de António Reis. Fora ele um outro cinema e suportar–se–ia a ficção, porque, sabe–se, a arte não tem que imitar a vida. O cinema de Reis, porém, é, num certo sentido, quase documental e aí as «infidelidades» ao realismo são imperdoáveis.
Ora é justamente neste ponto que importa realçar a importância excepcional do cinema de António Reis: é que o seu «documentalismo» (um documentalismo ficcionado e duplamente ficcionado, porque poético) capta realmente o real – não o visível, mas o espírito dele. Arrisco: a alma.
Assim em todos os três filmes de fundo. E se «Rosa de Areia» é já quase a abstracção – belíssima, sublime abstracção – não o será por acaso. É que, cada vez mais, o que nos resta de uma cultura, o que nos sobra da espiritualidade de um povo, de tudo isso que o cinema de António Reis tornou imortal – cada vez mais o que nos chega já o é só por uma memória. Uma memória tão frágil quanto indelével.
Um poeta se diz de António Reis. E é-o. É-o pelos seus filmes, foi-o pelos seus «Poemas Quotidianos», a última edição dos quais (na Portugália) data de 1967. O poeta que pela escrita se exprimira contém já em gérmen o poeta que pelo olhar haveria de consagrar-se.
Mais uma vez é uma poesia do real e do real quotidiano. Mas uma vez mais, também, essa realidade surge transmutada numa evocação que o espírito das coisas, o espírito dos lugares celebra. E o dos corpos ou a saudade deles: «Já não sei / onde / começa e acaba / a tua face» - escreve Reis poeta, com a mesma suave nostalgia com que muito mais tarde haveria de filmar essa outra face, a de um país – um certo país que se fora, por entre os dedos se nos escapara e a ele também. «Já não sei / onde são dedos / ou gestos / as minhas mãos» – escreve Reis poeta da escrita. Se o realço, é porque o cinema de Reis – tão irreal, tão abstracto – era, apesar disso ou por isso mesmo, um cinema, antes de mais, profundamente físico, profundamente sensorial.
Como se vê-lo – vê-lo na sua irrealidade – exigisse uma concentração dos nossos sentidos todos.
Disse do cinema de António Reis e, no entanto, não é possível falar desse cinema sem associar ao nome de Reis o de sua mulher, a psiquiatra Margarida Cordeiro, co-autora praticamente da obra toda. Em «Jaime» surge já como assistente para o som e a montagem. Depois, assina com Reis conjuntamente a realização das três longas-metragens. Apesar disto, foi Reis sempre o cineasta, pelo menos para aqueles que, como eu, dele se tornaram amigos por um conhecimento no real.
Sabia-se que Margarida existia, viamo-la, falavamos com ela, mas a uma certa distância. Com Reis - com o querido António, agora falecido, tão jovem nos seus 64 anos - com ele a gente vivia.
Assim, em Julho ainda, na Cinemateca, quando ele me disse dos sonhos do seu próximo filme, como me recordou como escrevera os diálogos de «Mudar de Vida», de Paulo Rocha. Assim, há uma semana ainda, com João Botelho, seu vizinho e amigo que fizera de Reis actor em «Um Adeus Português». «Nunca o vi tão bem, tão sereno e tão feliz» - confessaria Botelho, desfeito, no dia do funeral.
Fora uma morte absurda. Em escassos dias, Reis morria, em casa (!), vitimado por uma gripe (!). Não se acredita, mas foi o que aconteceu, deixando-nos estupefactos de dor e impotentes, deixando o cinema português (passe o lugar comum) mais pobre, muito mais pobre. É que se há coisas que defina um autor - e Reis era-o, indubitavelmente - é a impossibilidade de ter a sua obra continuidade. A dele não terá continuidade, nem epígonos.
Fica assim – quatro filmes apenas – tal como Reis se fixou no último poema do seu livro: «Bate coração / no peito que te guarda / lâmpada suspensa»...

Rodrigues da Silva

Jornal O Jornal, pág. 31, 13 de Setembro de 1991

quarta-feira, setembro 14, 2005

103. FALECIMENTO - Texto de Augusto M. Seabra

Comentário

No rasto do cometa

Em 1976, um cometa atravessou o cinema português, então em céu particularmente escuro. Chamava-se "Trás-os-Montes" e os autores eram António Reis e Margarida Cordeiro.
O tempo subsequente ao 25 de Abril, tinha sido o da "descoberta do povo", em perspectiva ideológica-militante ou etnográfica. A segunda dava mesmo origem a um vasto projecto em que o filme se integrou: Museu da Imagem e Som. Contudo, não é sem reservas que a caução etnográfica se aplica a "Trás-os-Montes"; a descoberta de um particular território cinematográfico não produzia uma sensação de reconhecimento mas a estranheza perante um objecto que se diria vindo não se sabe de onde.
Já em "Jaime", uma média-metragem anterior (formalmente assinada só por Reis), a visibilidade do objecto escapava às categorias racionalizáveis do conhecimento; Jaime, o pintor, estava em "des-razão" ("doente mental" como se diz), e na ausência de uma lógica racional recriava pictoricamente o universo.
Em "Trás-os-Montes", que restará o seu mais belo filme, como depois em "Ana" e "Rosa de Areia", as transfigurações do tempo e do espaço fazem com que o espectador se sentisse fascinado e desamparado, solicitado a um caminho de direcção desconhecida – um estado onírico (como no belíssimo plano de "Ana" em que se ouve um poema de Rilke enquanto a criança dorme), em que se reencontram sensações primordiais, em que fisicamente se volta ao contacto com a água ou com o sangue, se fica banhado na luz em que não se toca, mas se sente na pele. Para "entrar" nesses filmes (porque de um convite à viagem se tratava) era preciso primeiro esquecer, deixar-se hipnotizar para depois reaprender.
"Aprender", termo que recorda outra face de Reis, a do pedagogo. Na Escola de Cinema, a sua presença foi a mais marcante para alguns dos que agora são novos realizadores no cinema português. Não era modelo passível de reprodução, mas referência. Mesmo quando a "entrada" se relevava difícil ("Rosa de Areia" sobretudo, o mais problemático dos seus filmes), havia uma promessa de beleza, quantas vezes fulgurante. Era isso, retomar as imagens e os sons para os sentir, aprender a experiência da beleza ou a alucinação.

Augusto M. Seabra

Jornal Público, pág. 27, Quinta-feira, 12 de Setembro de 1991.

NOTA: Na mesma página do Público, Nuno Júdice escreveu A Coerência da Solidão.

terça-feira, setembro 13, 2005

102. FUNERAL DE ANTÓNIO REIS REALIZOU-SE ONTEM

O poeta do cinema português

Realizou-se ontem à tarde, no Cemitério de Benfica, em Lisboa, o funeral do cineasta António Reis, falecido na passada terça-feira. Presentes estiveram muitos amigos do realizador e gente do cinema português, como João Botelho – com quem António Reis trabalhou como actor no filme "Um Adeus Português" -, João Mário Grilo, Paulo Rocha e Pedro Costa, João Bénard da Costa, director da Cinemateca Portuguesa, e José Manuel Costa, do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento.
Paulo Rocha, para quem António Reis escreveu os diálogos de "Mudar de Vida" em 1966, definiu-o antes de tudo como um poeta. "Um poeta que a certa altura começou a fazer filmes" e cujo início de carreira, "Jaime", em 1973, é um marco no cinema português.
"Era uma espécie de visionário cientista", disse Paulo Rocha. "Olhava para o mundo, para as pedras, para a natureza, com os olhos de um sábio e de um poeta. Encontrava-lhes o lado mágico e o lado geológico." Para a cineasta Margarida Gil, Reis, "um sedutor, cativante e muito discreto" era "um talento muito ligado à literatura. Se se pode falar em poeta da natureza, da energia, então é o Reis", disse a realizadora de "Relação Fiel e Verdadeira".
Fernando Lopes, que tinha com António Reis uma relação muito intensa desde "Jaime" e que participou como actor em "Rosa de Areia", afirmou ao PÚBLICO: "Não vejo ninguém no panorama actual do cinema português capaz de fornecer o imaginário poético que Reis lhe conferia." Em Cabo Verde, onde Fernando Lopes participa no Encontro de Televisões de Língua Portuguesa, a notícia do desaparecimento de Reis foi motivo de uma moção de pesar.
O realizador de "Trás-os-Montes" esteve muito ligado à rodagem de "Matar Saudades", de Fernando Lopes, filme que também tinha por cenário aquela região portuguesa. "Trás-os-Montes foi um território trazido para o cinema português por António Reis com grande poética."
"Como realizador – diz Paulo Rocha – António Reis tem um lugar insubstituível no cinema português. Teve um papel importante na carreira de Manoel de Oliveira. Mais: foi uma influência na sua obra", salientando a sua importância no meio cultural do Porto nos anos 40 e 50. "Escreveu um livro que marcou o meio cultural na época, A Arquitectura Popular Portuguesa, uma obra que vai fazer escola" e foi o autor dos diálogos – "dos mais belos alguma vez escritos em língua portuguesa" – para "Mudar de Vida".
"São diálogos de um grande rigor etnológico – ele também era etnólogo e fazia trabalho de campo – e duma concisão poética extraordinária." Conta Paulo Rocha que António Reis trabalhou mais de seis meses nos diálogos. "E só descobri a qualidade deles anos mais tarde, quando os traduzi para japonês". "Era um homem insatisfeito", concluiu Paulo Rocha

Carla Castelo

Jornal Público, pág. 27, Quinta-feira, 12 de Setembro de 1991

segunda-feira, setembro 12, 2005

101. FALECIMENTO - Texto de José Vaz Pereira

Morreu ontem, aos 64 anos, o cineasta português António Reis.
O cineasta era casado com Margarida Cordeiro, e na sua carreira de realizador
contam-se filmes como "Jaime", "Ana" e "Rosa de Areia", que assinou em parceria
com a cineasta Margarida Cordeiro. O corpo de António Reis encontra-se na Igreja
de São Mamede, em Lisboa, onde hoje se celebra missa, às 14 e 45, seguindo o
funeral para o cemitério de Benfica.


António Reis morre aos 64 anos

SUBIR ÀS MONTANHAS

António Reis era um homem diferente e desprovido da «mise-en-scène» que por vezes os realizadores utilizam na vida real para o filme não parar. Abrupto mas sempre gentil, directo e intenso gostava das suas obras que realizava em conjunto com Margarida Martins Cordeiro com amor de pai. Esta força instintiva disfarçava um poeta e um homem determinado. Para tentar que os seus filmes chegassem ao público através de um caminho que se revelava sempre doloroso e desgastante, António Reis, o autodidacta feito cineasta, «batia-se como um leão».
Ele gosta de olhar as coisas, os homens, as montanhas, os campos e as nuvens de outra maneira. «Trás-os-Montes» seguido depois por longas-metragens como «Ana» e «Rosa de Areia» (este até agora nunca exibido no circuito de distribuição) são etapas diferentes de uma extraordinária jornada. Num cinema tantas vezes virado para a literatura ou para a construção literária das suas intrigas, os filmes de António Reis (em colaboração com Margarida Martins Cordeiro) eram o regresso a qualquer coisa de essencial e íntimo que não sabíamos explicar. Uma obra como «Ana» está ao mesmo tempo dentro de nós e para lá de nós.
Estes filmes belos tinham sempre uma gestação difícil. António Reis contou-me que passara horrores para pôr de pé «Rosa de Areia», lutando com imensas dificuldades e debatendo-se com todo o tipo de dificuldades. Mas, eterno optimista torturado, animava-se quando, ao mesmo tempo, falava do prazer que o filme lhe dera, dos cenários que escolhera, das personagens que descobrira, das lendas que reencontrava. «Rosa de Areia» era uma obra mais elaborada do que «Trás-os-Montes” ou «Ana» e pela primeira vez descobria-se aí uma presença urbana. Mas, quanto a inspiração poética, os seus filmes tem a mesma forte unidade. Portugal passou ao lado de um artista, com algo de mágico e que dera sinal de presença com o extraordinário «Jaime» (1974).
Foi uma estreia notável. Trata-se do retrato de um homem, Jaime, internado aos 38 anos no Hospital Miguel Bombarda do Porto e que, três anos antes da sua morte em 1965 começou a escrever e a pintar. O filme só encontra na interioridade a sua liberdade, não vemos a vida de Jaime antes o seu sonho e angústia e recriação do seu universo pictórico e do ambiente em que a sua sensibilidade encontrava inesperadas formas de expressão.
O cineclube do Porto foi a escola de António Reis, a fonte do seu desmedido e nem sempre compreendido amor pelo cinema. Tido como um homem que apreciava a via experimental, era mestre em compreender a natureza e a sua influência nos ciclos de vida e da cultura dos homens. Gostava de nos convidar a olhar de uma maneira especial «Trás-os-Montes» que surpreendeu toda a gente, tirava o filme dos estúdios e voltava à montanha, à nuvem, ao rio, à voz do vento, a uma lenda contada a uma lareira. Quando muitas vezes o cinema português vivia de pequenos ódios pequenas ideologias que, dez anos depois, não teriam sentido nenhum «Trás-os-Montes» trazia-nos de volta outra mundo respiração outra maneira de olhar as coisas [sic]. Se era preciso ficar na floresta ficávamos na floresta, se era preciso sonhar nas montanhas subíamos às montanhas, se era preciso descer ao vale para ouvir uma canção ao longe lá encetávamos essa jornada. Um panteísmo transfigurado e tranfigurador, um eterno retorno às raízes. «Ana» que, como sempre, realizou em colaboração com Margarida Martins Cordeiro, é o mais puro dos filmes. Apetece saltar da cadeira para pará-lo, agarrar certos momentos que ora são poderosos ora subtis mas que deixam uma sensação de beleza que já não é deste mundo. Mas «you can’t stop the movie», não se pode parar o filme, em que as nuvens deslizam no céu e a próxima imagem já não é a mesma imagem. «Ana» é o mundo a mover não o mundo a parar. Adeus, António, teremos sempre os filmes.

José Vaz Pereira

Jornal Diário Popular, pág. 7, 11 de Setembro de 1991

domingo, setembro 11, 2005

100. MORREU O REALIZADOR ANTÓNIO REIS

O realizador António Reis, 64 anos, autor de filmes como "Jaime", "Ana" e "Rosa de Areia", morreu ontem em Lisboa. O cineasta foi assistente de realização de Manoel de Oliveira em "Acto de Primavera" e escreveu os diálogos de "Mudar de Vida" de Paulo Rocha. "Jaime", um filme de 1973 sobre um trabalhor rural que morreu num hospital psiquiátrico após 31 anos de internamento, e aí, com mais de 60 anos, começou a pintar, foi o primeiro que realizou e é considerado um marco do cinema português. «Desde o "Jaime" que os planos do Reis explodem, com todo o som e a fúria», disse ao PÚBLICO a realizadora Margarida Gil. "Jaime" assinala o início da parceria do realizador com Margarida Cordeiro, que se manteve até ao fim da sua vida. «Falar só no Reis é esconder um par», disse ainda Margarida Gil.
António Reis era natural de Valadares. Foi sócio do Cineclube do Porto, onde fez a sua aprendizagem de cinema. Era professor da Escola Superior de Cinema do Conservatório e, ocasionalmente, participava em filmes como actor. Sucedeu com "Um Adeus Português", de João Botelho, e "Matar Saudades", de Fernando Lopes. O corpo de António Reis encontra-se na Igreja de São Mamede, em Lisboa, onde hoje, pelas 14h45, se celebra missa, seguindo-se o funeral para o cemitério de Benfica.

Jornal Público, pág. 40, Quarta-feira, 11 de Setembro de 1991

sábado, setembro 10, 2005

099. MORTE QUOTIDIANA



António Reis faleceu em Lisboa, a 10 de Setembro de 1991, Terça-feira. Faz hoje 14 anos. O poema de Eugénio de Andrade foi escrito na altura do falecimento do cineasta e foi cedido em 12 de Setembro de 1997 para a obra António Reis e Margarida Cordeiro - a poesia da terra, de Anabela Moutinho e Maria da Graça Lobo. Nos próximos posts faremos uma recolha de notícias sobre o falecimento de António Reis.

quinta-feira, setembro 08, 2005

098. A POESIA DE ANTÓNIO REIS - Texto de Eduardo Prado Coelho (completo)

[Poesia] 

A poesia de António Reis

«Tout poète des meubles – fût-ce un poète en sa mansarde, un poète sans meubles – sait d’instinct que l’espace intérieur à la vieille armoire est profund. L’espace intérieur à l’armoire est un espace d’intimité, un espace qui ne s’ouvre pás à tout venant…» 
Gaston Bachelard - La poétique de l’espace.

O que de mais desagradável se encontra naquela muita poesia incipiente que habitualmente lemos talvez seja o gosto que ela tem de se qualificar como poesia, de descaradamente proclamar que é poesia, e, mesmo, que é a poesia. Muito simplesmente – não é. Ou melhor, se toda a linguagem em arte é linguagem qualificada, e, portanto, qualitativamente diferente da linguagem comum, o certo é que a poesia que, logo de entrada, se afirma como sendo o que pretende ser, a poesia que duplamente se qualifica, quase sempre acaba por se perder. Servirá talvez como promoção social (e, por conseguinte, como factor de estabilidade dum qualquer sistema inaceitável de promoção social), como forma de habitar os privilégios de um mundo de cultura; servirá certamente, como manifestação frustrada dum desejo de comunicar, estabelecendo, no anonimato do papel, os laços duma cumplicidade possível. Mas não é poesia – e isso custa. Nada de mais desolador do que a mediocridade literária, cumpridora, modesta e submissa, derramando-se em aluviões de palavras perdidas, incapaz de exprimir com autenticidade um grito ou aventura e repetindo, como quem usa um manual de cartas de amor, fórmulas duma sensibilidade entorpecida. Porque essa poesia – a que o não é – tem o mais grave dos defeitos literários: acredita até à imbecilidade no valor das palavras. Embebe-se delas como quem ainda quer viver – e não vive.

Demasiadamente vivemos entre palavras. Com elas discutimos, ainda húmidas e ensanguentadas, com elas escrevemos o que tantas vezes apenas é mentira e inutilidade. Com elas percorremos, em prodigiosa erudição, labirínticas investigações sem limites (datas, fontes, influências) até depararmos com o vazio das pequenas verdades: inventários de poeira. Quem permanece dentro das palavras a todas justifica: nenhuma se perde, nenhuma se ganha, e somam-se apenas. Por isso se repete: consideremos a especificidade da literatura, as suas leis inalienáveis, a sua força pura e livre. O que está certo, o que é verdade. O que não está certo, o que não é verdade. Ou melhor: o que está certo e é verdade apenas porque se escreve e lê, apenas quando se escreve e lê. Só quando chegares ao outro lado, ao lado de fora, a essa mudez de alarme onde se apaga ainda a nitidez dos rostos e se enlouquece por entre gestos cicatrizados, aí descobrirás as razões: só em função do silêncio existe uma ética da palavra.

Atravessamos nós uma rua e quantas vezes um poeta nos espera, ansioso e feliz. Agressivamente, autoritariamente, é como fere este orgulho de escrever. Não se assiste a um recital de poesia, onde os poetas se lêem e ouvem aplaudir, sem um iniludível mal-estar, um insuportável constrangimento. E se me dizem «não posso viver sem escrever» ou «a literatura é a minha vida», e nos dizem tudo isto no tom engomado das palavras decisivas, apetece perguntar, raivosamente perguntar, como podemos julgar possível, simplesmente possível – habitável, aceitável, suportável – a vida dos outros: dos que não escrevem nem mesmo sabem o que para nós é a literatura.

Falemos pois de António Reis. O que atrás ficou dito é muito importante para lermos a sua poesia e não a recusarmos numa primeira abordagem. António Reis é um poeta para quem a poesia nada tem de privilégio: é apenas aquele mínimo que permite existir, sobreviver, com esperança e dignidade. E por isso a sua poesia quase não chega a aparecer, a ser, quase se reduz a um murmurar sem voz. Para António Reis, toda a poesia emerge do silêncio, do silêncio que antecede o poema, do silêncio que o envolve, do silêncio da morte.

Alguém tem de morrer
(sente-se)
Ah
mas uma criança não
nem um homem
Pense-se
ouvindo o rumor
do coração.

É isto: só este silêncio desolador consegue revelar ao homem o bater do coração – a vida irredutível. Há sempre um esforço para quebrar o silêncio no mundo poético de António Reis. E quebrar o silêncio não é apenas dizer palavras, é sobretudo fazer da palavra-que-é-falada uma palavra-que-fale, é sobretudo des-emudecer a banalidade dum quotidiano exangue.

E as palavras
o que são
de
quem
são
de livros
quotidianas
mudas
As palavras que
se erguemos os olhos
matizadas
ou livres
já no ar
posam
e levantam.

É estilhaçando o silêncio das palavras faladas em vozes impessoais que a comunicação se faz:

Chamaste António
e eu não senti
não tem som
o nome
se outra voz ouvi
Que tenho
Estou longe
e estou perto de ti.

Há portanto uma desesperada exigência de som:

Ah
um
som
qualquer
na toalha branca
no vinho na água
na colher.

Que nos diz este não-dizer das palavras emudecidas? Alienação (Nota de rodapé: O conceito de alienação, de raiz filosófica, não tem ainda um significado rigoroso nas ciências humanas. Utilizamo-lo aqui para designar os processos em que se exteriorizam as energias históricas dos indivíduos e dos grupos sociais de forma a se autodestruírem (cf. Claude Lefort, "L'aliénation comme concept sociologique", in Cahiers internationaux de Sociologie, n.º XIX). Alienação total em certos momentos humilhantes:

Todos os meses
te escondes
na tua própria casa
e o cobrador sabe sempre
quando o silêncio tem pó
e é perfeito.

Que nos diz este silêncio? Fala-nos da mutilação do homem numa dimensão essencial da sua existência: a palavra.

Não podemos iludir a dificuldade: não há uma poesia do silêncio. Apenas há uma poesia que se opõe ao silêncio, uma poesia como antítese (porque a síntese seria uma palavra restituída à sua dignidade quotidiana). Mas, se à fala transbordante que caracteriza o mundo dos privilégios corresponde uma poesia palavrosa e tagarela, à palavra-apenas-falada na mudez do dia-a-dia corresponde uma poesia muito próxima do silêncio – é fácil reconhecê-la na obra de António Reis. E não podemos também ignorar que esta poesia tão pouco poética (e por isso pouco acessível na sua simplicidade) põe em causa o mundo da cultura. «A cultura é culpada na medida em que é, directa ou indirectamente, um meio de explorar o trabalho: são aqueles que sabem e que falam bem que ordenam, que empreendem, que correm riscos (porque uma economia de mercado é uma economia de cálculos e de riscos); são precisos "intelectuais" para fazer a teoria do sistema, ensiná-la, justificá-la aos olhos das próprias vítimas», escreve o filósofo Paul Ricoeur. E acrescenta: «Qualquer homem que pensa e escreve, sem se sentir incomodado no seu estudo ou investigação por um regime em que o seu trabalho é negociado como mercadoria, deve descobrir que a sua liberdade, que a sua alegria estão apodrecidas, porque são a contrapartida e, de longe ou de perto, a condição e o meio dum trabalho que outros fazem sem liberdade nem alegria, porque o sabem e sentem tratado como coisa» (Nota de rodapé: Paul Ricoeur, Histoire et Vérité, Ed. du Seuil, Paris, pp. 211-212).

É isso que explica, creio, essa redução da poesia na obra de António Reis – tentativa de desmistificação e denúncia, portanto.

Na cidade onde envelheço
não há brisa
há vento
A brisa é para o amor
e para os cabelos
Na cidade onde envelheço
a roupa tem de secar
durante a noite
os operários levantam-se cedo
e o seu amor é simples
e no trabalho.

Em António Reis, toda a poesia emerge do silêncio – processo difícil, lento, convulsivo. Porque se trata dum silêncio tenebroso, feito de cegueira e rouquidão, feito de dias alucinadamente repetidos, feito de esgares apenas – esse silêncio de pedra que é o quotidiano de muitos.

E cumpre-nos apontar a coragem de António Reis. Porque há coragem em suportar e assumir a ambiguidade da poesia quando tudo a torna impossível: poesia é sempre sinal de que há algo de supérfluo (e por isso é natural, é natural uma palavra desviada da sua utilidade imediata) e sinal de que algo nos falta (e por isso não nos basta, ainda nos não basta a palavra essencial, reduzida ao seu valor prático). Ora a poesia a que estamos acostumados, reconhecendo embora a existência desta tensão inevitável, acaba sempre por escolher o pólo do supérfluo (mesmo que seja para declarar o seu remorso): é poesia feita de palavras escolhidas entre palavras, é poesia da fala humana e criadora.

A grande coragem de António Reis consiste em escolher o pólo oposto, e dar-nos uma poesia feita de palavras arrancadas à mudez, uma poesia de silêncio esgarçado. Talvez seja por isso que o leitor se sente, de quando em quando, desiludido. António Reis é um poeta corajoso porque continuamente afronta o risco de ver a sua poesia diluir-se em palavras esboroadas, em silêncio asfixiante, em vazio. Uma luta se trava em cada poema, dolorosa e decisiva. E note-se: porque a sua poesia não é expressão de privilégio nem gratuitidade, o que em cada poema de António Reis se joga não é apenas a poesia, mas a dignidade e o sentido duma existência. Liberdade ou morte (dilema forçoso, como adiante se refere).

António Reis escreveu até hoje dois livros: Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos. É pouco. Talvez monótono? O quotidiano, o insignificante, o homem comum, a vida vivida hora a hora: isto constitui a preocupação obsessiva do poeta.

Vejamos. O que é o quotidiano? Quem o vive? Quem o conhece? Onde se encontra? Em todo o lado e em parte alguma. O que precisamente caracteriza o quotidiano é não ser localizável num determinado nível ou área de existência, continuamente oscilando entre o informal (a espontaneidade criadora irredutível a esquema) e o amorfo (a banalidade mecânica), continuamente evitando cristalizar-se e ganhar contornos visíveis. O quotidiano é o gesto sem futuro, a conversa inútil, a claridade breve dum sorriso. Vivemos o quotidiano sem o sentirmos e só da sua presença tomamos consciência quando o vivemos como tédio e fadiga (Nota de rodapé: Esta análise baseia-se no artigo de Maurice Blanchot, "L'homme de la rue", publicado em La Nouvelle Revue Française, n.º 114, Junho de 1962).

António Reis, ao escolher o quotidiano como seu tema fulcral e dominante, aceitou para a sua poesia uma atmosfera de cansaço e rotina, que de uma ponta a outra a percorre. Poesia lenta, sonolenta, arrastada, ferida. Poesia de indiferença e de repetição (alguns poemas iniciam-se por versos idênticos). Perguntará o leitor: poesia?

Quem vive o quotidiano é o home comum, aquele que é igual a todos os outros. O quotidiano é uma acção sem sujeito: vai-se para o trabalho, passeia-se aos domingos. Toda a obra de António Reis denota esse interesse me reduzir a voz que fala às dimensões mais discretas. Mas haverá poesia sem uma presença original, algo que distinga e singularize? Não creio. O que sucede com Poemas Quotidianos é apenas isto: o seu autor revela-se tão igual aos outros, tão vulgar, tão invulgarmente igual aos outros, que se torna diferente deles. A poesia de António Reis não vive de abstracções nem de médias estatísticas. Dá-nos somente a existência exemplar de alguém que profundamente assume toda a mediocridade dum quotidiano insípido.

Devemos evitar um perigo, que seria o de considerar o "homem comum como categoria imutável. O homem comum é apenas aquele que é mais comum em determinado período histórico e em determinada sociedade. E não podemos esquecer que avaliar qual é aquele-que-é-mais-comum só se pode fazer a partir das perspectivas ideológicas desta ou daquela classe. O leitor, por exemplo, sente-se um homem comum? E que é para si um homem comum? É evidente que a noção de homem comum é uma norma (ou normas) estabelecida(s) em função dum contexto sócio-económico. O que é importante.

Devemos averiguar, portanto, qual é o homem comum destes Poemas Quotidianos. Desde já podemos afirmar o seguinte: é um homem que vive muito mais (em qualidade e não em quantidade, é claro) fora do tempo de trabalho. Os poemas que vão ler situam-se explicitamente em domingos ou feriados, à noite ou no regresso a casa ao fim da tarde. Paradoxalmente, este poeta do quotidiano ignora uma das estruturas fundamentais do quotidiano, que é o trabalho. Ignorar, ignorar, não é bem assim. Episodicamente, o poeta diz-nos:

Na cidade onde envelheço
(...)
os operários levantam-se cedo
e o seu amor é simples
e no trabalho.

e:

Passam ainda operários
abelha branca

(Mas o poema continua: "Fica na cama hoje").

Portanto, António Reis, sem desconhecer a realidade do trabalho, conhece-a, na sua poesia, apenas na medida em que a pretende esquecer. O primeiro poema do livro logo nos diz:

Deu meia-noite
és livre

Livre, porquê? Porque pode agora possuir o tempo, modelá-lo à sua vontade, gastá-lo como entender, sem estar submetido a ritmos estereotipados. E prossegue:

Não mais se lembrarão de ti
Só se o luar nascer
ou a manhã
ou se gritares

Este verso final dá o tom de todo o livro: o de um grito contido, refreado e exausto. Porque a liberdade da noite ("és livre") é ilusória, é liberdade negativa de não fazer o que os outros querem, mas não liberdade criadora de poder fazer. É apenas abrigo, refúgio contra o tempo de alienação - é alienação do tempo, tentativa irreal e absurda de o dominar: "só na cama/o tempo/ainda é meu//como a palavra".

Mas nenhum tempo se possui, porque só existe como medida da nossa capacidade de agir. Em António Reis, ele funciona como espaço de passividade, onde nada se faz para reagir ao ter de fazer do trabalho quotidiano. Saboreia-se o tempo, reduzindo-o ao valor de um objecto:

Só o barbeiro
julga que adormeço
saboreio
o tempo

Mas saboreá-lo, coisificando-o, é, no fim de contas, perdê-lo, gastá-lo inutilmente. Ora o tempo, segundo o poeta, deve-se poupar. São várias as composições de António Reis que exprimem esta avareza do tempo:

É domingo hoje
mas nós não saímos
é o único dia
que não repetimos 
e que dura menos

E:

Aos domingos
aos domingos o golo nos estádios
chega até minha casa
e até ao mar
(...)
Ah que fazer
senão esperar pela semana
dormindo

Podemos agora entender melhor um dos elementos fundamentais do mundo poético de António Reis: a obsessão da imobilidade. É preciso deter as coisas, fixável-las, emoldurado-las. É preciso que desse afundamento no vazio que é o quotidiano fiquem imagens muito nítidas do que foram os rostos e as coisas. Muitos poemas de António Reis são enumerações de objectos, porque é nomeando-os que o poeta os completa, recupera e cristaliza. no interior da casa, não há propriamente actividade, mas apenas quadros, cenas imóveis, um silêncio de intemporalidade.

Enquanto
em
silêncio
tu
ponteias
escrevo
no tempo
o teu retrato

Ou:

a mão no ombro
ou na cintura
atenta
quente
e quieta
por dentro

Ou:

No espelho
oval
tu e eu
lado a lado
uma cama
ao fundo
juntos respiramos
e não ficou embaçado

Ou ainda:

O eléctrico chegou
e cada passageiro
alheio à janela
um retrato a óleo
para mim ficou

Este gosto pelo tempo congelado exprime-se, muitas vezes, por versos interrompidos ou truncados com que o poema termina. O poema é sempre breve, fugaz, uma iluminação difícil que, significando a imobilidade, se deve reduzir ao mínimo para que a não destrua. O início dos poemas mostra-nos que há sempre algo antes que já era poema (e que funciona como inspiração para o poeta), mas ainda não era palavra, e que o poema é somente um modo de concretizar e objectivar, por alguns instantes, essa tensão intolerável criada por uma imobilidade mais profunda.

A poesia tem portanto um papel bem definido: criar (ou manter) imobilidade. Ou ainda: a poesia é uma forma de não gritar. E não pensemos que tal imobilidade anula os gestos: transforma-os em gestos parados, carrega-os de sonambulismo, desenha-os com límpida serenidade.

O meu repouso és tu
ao fim da tarde
enquanto secas o cabelo
e te penteias
com o sossego de uma asa
e as janelas brilham
como salinas
suspensas

Liberdade ou morte, escrevi. O dilema está posto e é preciso optar. Contudo, a poesia de António Reis é, muito conscientemente aliás, poesia de alienação, porque nela a liberdade é morte (paralisação, imobilidade), é negação do dinamismo criador e construtivo da vida. Poesia de alienação é portanto aquela em que a poesia e a morte convergem num só espaço de existência, conservando-se a vida vivida como morte da liberdade e tornando-se a poesia (não vivida) como liberdade para a morte. (Liberdade que define o homem, sempre que toma consciência de si, mesmo que seja em circunstâncias em que todas as saídas estejam fechadas e apenas reste uma última escolha: aceitar a vida ou morrer).

É por isso talvez que, no interior do quotidiano inteiriçado de que nos fala a poesia de António Reis, a morte pouco mais é do que uma diferença de grau, passagem de um estado a um outro estado qualitativamente igual, simples aprofundamento duma situação, transição quase insensível: “mortas dormindo”.

O pente os ganchos
oferece-os à Madona
todas as filhas geradas
foram mortas
(só as nossas vivem
só as nossas crescem
entre os nossos receios)
mortas
sem os pais à cabeceira
mortas dormindo

Ou:

Arrefecem
entre soluços
os joelhos
na posição de mortos
batendo os pulsos
quentes
os corpos

Falámos já dos poemas de António Reis como enumerações de objectos. Pois bem, retomemos a questão. É evidente que os objectos ocupam um lugar predominante em Poemas Quotidianos e é fácil explicá-lo se lembrarmos que os objectos são o que de mais permanente há que possa fixar o fluir sem contornos do quotidiano. Designando os objectos que o rodeiam, António Reis dá forma, cria sentido, harmoniza o seu pequeno mundo. Trata-se, portanto, de um esforço de ordenação - persistente e obstinado.

O valor dos objectos em Poemas Quotidianos levou alguns críticos a classificar o seu autor de poeta materialista e a associá-lo aos nomes tão conhecidos de Ponge, Guillevic, Follain ou Mello Neto. Seria longo e inoportuno analisar em que medida a poesia de António Reis se diferencia dos poetas citados e se aproxima mais acentuadamente de outros, como, por exemplo, de o de Gabriel Cousin, que escreveu um admirável Ordinaire Amour, em muitos pontos paralelo ao projecto de Poemas Quotidianos. Isto não põe em causa, contudo, a validade da classificação proposta: António Reis é, indiscutivelmente, um poeta materialista. Vários poemas poderiam ilustrar esta tese, mas um só basta:

As minhas mãos
só trabalham
ou adormecem
esfriam
ou aquecem
Não desmaiam
nem têm rios

Têm ossos
músculos
e sangue
poros também
por onde transpiro
mais nada têm

Contudo, estamos ainda numa aproximação superficial, porque materialismo não é a redução de toda a realidade a um dado tipo de matéria. António Reis é um poeta materialista, porque a sua poesia é toda ela regulada por uma concepção materialista do mundo, que não deixa de estar presente (muitas vezes como ausência de) em qualquer dos seus versos.

Que é, pois, ser materialista? É definir o homem por aquele mínimo que permite não excluir da definição nenhum homem nem absolutamente nada do que qualquer homem possa vir a ser. Isto é, definir o homem como necessidade: descer ao nível primordial da necessidade, descobrir a materialidade primeira de todo o homem, revelá-lo como corpo orgânico da matéria, e, portanto, como auto-insuficiência, como matéria de necessidade e necessidade de matéria. Se António Reis é um poeta materialista - e assim o julgo -, o certo é que nos seus poemas o objecto não chega a ter uma função central. Para o poeta, o objecto nunca conta por si só, mas apenas como elemento de uma relação: nenhum vale individualmente, nenhum merece um instante de análise (não seria isso já um luxo?).

Em Poemas Quotidianos, os objectos existem como negação do homem para o revelar a si mesmo (tal como só a partir do conhecimento da morte se pode ter uma consciência responsável e actuante da vida). Os objectos estão diante de nós, desafiam-nos, provocam-nos, para nos poderem dar, através causa resistência, a evidência fulgurante da subjectividade. Os objectos existem para que o homem se lhes oponha e, opondo-se-lhes, se confirme.

É habitual afirmar-se que uma das virtudes da poesia consiste em anular a oposição entre sujeito e objecto: o mundo está em nós e nós no mundo. O que acontece em António Reis é até certo ponto o contrário. A identificação entre o sujeito e o objecto é não-poética e sempre anterior à existência do poema, isto é, mergulha na zona de silêncio e obscuridade que a palavra poética deve romper. Para que haja a fusão entre o sujeito e o objecto que a poesia costuma operar é preciso que antes do poema exista realmente qualquer distância entre o poeta e o mundo. Ora o que a obra de António Reis nos revela é que essa distância é um privilégio. Em determinadas situações, o homem permanece objecto e todo o distanciamento em relação ao mundo é sempre esforço, luta, conquista. Em Poemas Quotidianos, o poeta nega conscientemente o mundo dos objectos para abrir um espaço de liberdade e plenitude possível. Para António Reis, a poesia só pode ser criação de distância: não pode ser ainda fascinação da unidade.

Ignorando em larga medida a dimensão do trabalho, por todas as razões que levaram a falar da sua poesia como poesia de alienação, António Reis nunca estabelece entre o homem e o objecto uma relação positiva. Até certo ponto, os objectos falham, incomodam, desiludem, irritam:

Outra manhã
de olhos vermelhos
e água gelada
de travo na boca
e de toalha molhada

E:

Outra manhã
de olhos vermelhos
e água gelada
de garganta ao espelho
e de gilete arrastada

Será talvez exagerado afirmar que o mundo dos objectos opõe uma resistência hostil. Os objectos desagradam e desiludem, sim, apenas porque neles há passividade, neutralidade. As coisas existem somente como suportes materiais da nossa presença a pouco e pouco transformada em ausência - como sinais de morte, simplesmente.

Ora a relação positiva com os objectos exige uma outra atitude. Através do trabalho, há produção e reprodução da vida: o homem apropria-se da natureza, apropriando-se simultaneamente da sua própria natureza. Nenhum de nós pode limitar-se a ser uma subjectividade que se esboroa em gestos amortalhados. É pelo trabalho que o homem se objectiva, afirma, reconhece. O homem só não se perde no objecto quando este se torna para ele objecto humano ou homem objectivo. Isto só é possível se o objecto se torna para ele um objecto social, se ele se torna a si mesmo um ser social, tal como neste objecto a sociedade se torna um ser para ele. Pelo facto de, na sociedade, a realidade objectiva se tornar para o homem a realidade das forças essenciais do homem, a realidade humana e, por conseguinte, a realidade das suas próprias forças essenciais, todos os objectos passam a existir para ele como objectivação de si mesmo, como objectos que manifestam e realizam a sua individualidade, como seus objectos, isto é, objectos de si mesmo (Nota de rodapé: O leitor poderá reconhecer aqui alguns passos dos Manuscritos de 44 de Marx).

É curioso notar que em António Reis nunca há socialidade concretamente vivida. É verdade que o poeta nos descreve, em versos admiráveis, a convivência modelar entre companheiro e companheira, mas, para além desse espaço circunscrito, os outros surgem-nos extremamente longínquos e esbatidos. A socialidade (que permite a consolidação de um nós dentro de nós próprios) é substituída por uma certa fraternidade difusa (que é exigência dos outros na sua multiplicidade exterior ao nosso projecto mais íntimo de vida).

Já deitado
e pensando no escuro amigos
há um poema de café
que quero escrever ainda
o poema do maço de cigarros
aberto sobre a mesa
e à descrição

E:

Não fumo apenas
ao ver passar os homens pelos passeios
não fumo mesmo
Há uma ternura
que encontro e que possuo
perdida amargamente
por não nos olharmos
sequer

Tentemos resumir o que ficou dito. Uma das principais características de Poemas Quotidianos é a presença dos objectos. esses objectos possuem uma dupla função. Num primeiro momento, têm um papel positivo, porque resistem, e, portanto, limitam, e, portanto, delimitam, e, portanto, definem o homem. Podemos também dizer que os objectos constroem a subjectividade do poeta. Em António Reis, não há vida interior: há um espaço interior. Ele mesmo nos diz:

Um espaço interior
criei
nestes poemas
onde estalam os móveis
e os sentidos
onde as ideias
à meia-luz
respiram
e a vida
as imagens
não se reflectem

nos vidros

E há belíssimas descrições da «vida interior» que nas casas próximas se vive:

Hei-de entrar nas casas
também
Como o silêncio
A ver os retratos dos mortos
nas paredes
um bombeiro um menino
A ver os monogramas bordados nos lençóis
os vestidos virados
os vestidos tingidos
os diplomas de honra
as redomas
E a caderneta de Socorros Mútuos
e Fúnebres
em atraso

Esta é uma das grandes qualidades de António Reis: reduzir a vida interior a uma exteriorização num espaço interior. Num espaço interior?, perguntarão os veneradores do absoluto. Num espaço interior e não exterior? É verdade, é assim: a poesia de António Reis prefere sempre o menos ao mais. Espaço interior, isto é, espaço privado. Mas haverá algum espaço humano que não seja interior a um sujeito (mesmo se esse sujeito é colectivo)? Um espaço que não fosse interior, mas - finalmente - exterior, seria um espaço total onde o homem se diluiria como presença criadora. O espaço é sempre interior. Aos homens cabe alargá-lo, ocupando-o progressivamente pelo seu trabalho e combate.

Retomemos o fio da meada: num primeiro momento, os objectos têm, na poesia de António Reis, uma função positiva, mas, num segundo momento, isso já não acontece. Entre o poeta e o mundo há apenas uma relação de afastamento (de redução simultânea à categoria do passado, ao domínio do inerte). Não há transformação recíproca. A dignidade do trabalho (mesmo quando se realiza em moldes de alienação) não chega a aparecer. As relações com o mundo têm sempre uma certa tonalidade de evasão: o tédio, o silêncio, a imobilidade, o sono, o sonho, a fuga («Há sempre um rapaz triste em frente a um barco»). Só de longe a longe, em relâmpagos furtivos, se vislumbra a dimensão anti-natural do homem:

Não amo a cidade
por ser grande
Amo-a
por ter nascido sem mistério
e ter criado
a sua própria natureza

No universo poético de António Reis, que representa o amor? Em primeiro lugar, uma forma de camaradagem inteiramente inédita na nossa poesia. Também neste ponto a obra de António Reis inverte os dados tradicionais: o amor não é considerado nos seus instantes paroxísticos de comunicação, mas apreendido ao longo do tempo que dura, como esforço consciente-inconsciente e desesperado de criar um espaço habitável.

Conheço
entre todas
a jarra que enfeitaste
têm o jeito
com que compões o cabelo
as flores
que tocaste

Ou

Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego
Tu
se o ar é fresco
eu
se deixo de respirar
subitamente

É interessante verificar até que, quando o amor se torna consciente e premeditado, quase parece que falha:

O teu convite
ainda me sabe a incesto
ainda o sinto a furar-me as axilas
 a fazer-me rir
e chorar

E poderíamos talvez concluir: na poesia de António Reis, o amor é tanto maior quanto mais se torna inconsciente, quanto mais se dissolve na poeira ardida dos dias como intenção cega e dispersa, quanto mais se grava e molda na corrente do quotidiano. Não é que este amor seja apenas uma ilusão piedosamente mantida. Pelo contrário, é uma força. Mas, como força e descoberta mútua, não chega a ser nunca (ou quase nunca) uma colaboração estabelecida, um pacto firmado para ir ao encontro do futuro e edificar a esperança. É reduto, defesa, resistência. Não é, pois, uma ilusão: como forma de resistência, é apenas o que alimenta as ilusões:

Não é vento
não
são gritos amiga
como eu
tu sabes
o que é uma ferida
mas é bom sentir
a tua mão na minha
porque
queres 
mentir

Mas - precisamente porque é um modo de cumplicidade e mentira em nome de uma esperança incerta - este amor deve ser, acima de tudo, inconsciente: não perduram as ilusões conscientes. E por isso o amor se objectiva e vive no plano mais impessoal: é esse o seu lado positivo. E por isso se retrai e amargura, quando se torna reconhecimento frontal de duas consciências.

Este amor só se realiza e vence na medida em que, imperceptivelmente, interioriza o espaço e, interiorizando-o, o acresce.

Já não sei
onde
começa e acaba
a tua face
Já não sei
onde são dedos
ou gestos
as minhas mãos

Ou:

Também tu
não amas
as cortinas
e sabes que beijar
é ver um rio
Ambas as margens livres
parte dos olhos
a brisa
e a eles volta 
com aroma

Descobrimos aqui a justaposição de espaços, que se estabelece a partir da simples relação entre dois corpos até ao uso dos objectos, até ao aparecimento do espaço natural, com um sabor de origem que subitamente se anuncia e nos parece esperar. E a poesia surge-nos como comunicação - isto é, esforço para tornar comum - entre os espaços diversos que a prática quotidiana nos revela. (Note-se que a figura de retórica predominante em toda a poesia de António Reis é o zeugma: "passajando a roupa / a dúvida").

A varanda
é só recreio
e altura
para vermos
as pombas
e o céu
para aquecermos os pés
descemos
à rua
e passeamos
com naturalidade

Ou:

As palavras que 
se erguemos os olhos
matizadas
ou livres
já no ar
pousam
e levantam

A intenção última parece ser a recuperação dum imaginário e mítico espaço natural:

Só pelos joelhos
sentimos as estações
com saudades
de água
violeta
com saudades de árvores
velas
a nascer
Ah natureza de sentidos
perdida
e da terra
penso
olhando o trânsito
rápido
da janela

Este espaço natural - horizonte de tranquilidade e plenitude - exprime-se num dos belos poemas do livro:

O outono
ainda tem a cor da areia
e já a luz passa
as folhas no teu rosto
Segues as ramagens
no vestido
e são naturais amor
as sombras inquietas

Essas sombras que percorrem todos os Poemas Quotidianos, enlaçando-os de angústia, tornam-se agora repentinamente sombras naturais, que com serenidade e ternura nos envolvem. Este espaço natural corresponde a uma fusão entre o homem e a natureza que mutuamente se prolongam e complementam. O poema comunica-nos uma alegria solar, enche-nos de confiança. É o contentamento duma circularidade retomada: entre as ramagens das árvores e as ramagens dum vestido não existe separação, porque um só movimento as domina. O fruto aparece como representação simbólica dessa plenitude, dado que nele se condensa e concretiza a esperança irredutível: "Só na cama/o tempo/ainda é dela/como um fruto". E, tal como o coração que só no silêncio se escuta, o fruto é o objecto que se olha no interior dum mundo de objectos imperfeitos (recorde-se a epígrafe: "Les hommes ne savent pas ce que c'est une orange", Saint-Exupéry). Fruto e coração identificam-se, na sua forma circular, como plenitude máxima e plenitude mínima, vida e morte.

Bate coração
no peito que te guarda
lâmpada
suspensa
fruto como cadência
estrela
em rotação pelos telhados
Bate coração
até as sombras se alongarem
pelos braços

Chegados ao termo desta análise, que nos ficou por dizer? Tudo, praticamente. A simplicidade de Poemas Quotidianos é enganadora. É preciso contorná-los pacientemente, repeti-los muitas vezes, procurar enunciar o que nos esconde a sua demasiada evidência. Não tocámos em algumas questões gerais que teriam indiscutível interesse. Por exemplo: onde situar esta poesia na evolução literária portuguesa? Como aprender a lê-la? Como recitá-la? Quais as suas possibilidades de renovação? E ainda: qual é o seu autêntico valor?

Uma qualidade inegável lhe foi apontada pôs Óscar Lopes: "António Reis está contribuindo muito nesta sua fase de poesia quotidiana para arrancar a poesia portuguesa a uma diluição temática, uma desossificação sem futuro". Nisto, todos estamos de acordo, creio. Mas uma dúvida ainda me preocupa: conseguirá o leitor, sem esforço, gostar desta poesia? Poder-se-á apreender com facilidade o que nela há de profundamente diferente?

Para tal, convém que nos ocupemos da sua classificação. É evidente que Poemas Quotidianos se opõem a uma tendência discursiva que se pode encontrar na "Presença", no pouco surrealismo que nos coube e em algum rio-realismo de feição romântica. Há mesmo, em larga medida, uma posição anti-surrealista: basta ter em conta a concepção do quotidiano e a função do objecto na poesia de António Reis. No entanto, poderemos dizer que estamos perante uma obra neo-realista? Em artigo que há anos publiquei no "Diário de Lisboa" respondia que sim. Hoje, tendo-a estudado com mais demora e ponderação, julgo preferível considerado-la tangente ao neo-realismo, mas dele distinta em alguns pontos fulcrais (o que em nada diminui, é bem de ver, a sua qualidade estética e o seu realismo próprio). Quais são esses pontos? Talvez quatro:
a) ausência da realidade prática do trabalho (pelo menos, nas suas implicações positivas);
b) inexistência de um tempo dialéctico que dissolva os momentos de imobilidade numa plenitude dinâmica e criadora. (Recorde-se a noção de tempo dialéctico que nos dá Sartre: "Deve-se compreender que nem os homens nem as suas actividades existem no tempo, mas que o tempo, como característica concreta da história, é feito pelos homens com base na sua temporalização original") (Nota de rodapé: Jean-Paul Sartre, Critique de la Raison Dialectique, Bibl. des Idées, Ed. Gallimard, Paris, 1960, pp. 64);
c) inexistência duma dimensão qualitativamente nova de futuro;
d) ambiguidade não resolvida da relação com os objectos. O homem projecta-se nos objectos, não para neles se recuperar, e, recuperando-se, neles se enriquecer, mas para morrer. Os objectos atenuam a realidade da morte, na medida em que vão acumulando em si uma existência absurda e inútil. Esses objectos - que se transformam em sinais de morte pela vida inerte que neles se foi sedimentando - ocultam a evidência brutal e violenta da morte. Tornam-se assim cúmplices da violência latente (a morte lenta, a fome, a desumanização) que caracteriza o mundo implícito destes poemas. É certo que oa relação com os objectos é de humanização. Mas essa humanização acaba por esconder a realidade desumana e feroz dum mundo onde a morte ainda é mais um assassínio do que morte autêntica. As relações de humanização com os objectos afastam a angústia insuportável da morte que um horizonte deserto nos daria. Concentrando-se nos objectos obsessivamente, o poeta, até certo ponto, aceita um compromisso: reconhece um princípio de realidade que reprime toda a agressividade negativa do desejo (e daí a existência dum amor resignado e defensivo). O mundo de António Reis é horrível, mas é um mundo pacificado. A morte não é uma injustiça, mas uma necessidade natural e irremediável. Ora "o homem que não experimenta a angústia da morte não sabe que o mundo natural dado lhe é hostil, que ele tende a matá-lo, a aniquilá-lo; que ele é essencialmente incapaz de o satisfazer de verdade. Este homem permanece, no fundo, solitário com o Mundo dado. (...) Ora o Mundo dado em que ele vive pertence ao Mestre (humano ou divino) e neste mundo ele é necessariamente Escravo. Não é, portanto, a reforma, mas a supressão dialéctica, mesmo revolucionária do Mundo que o pode libertar e - em seguida - o satisfazer. Ora esta transformação revolucionária do mundo pressupõe a negação, a não-aceitação do Mundo dado no seu conjunto" (A. Kojève) (Nota de rodapé: Alexandre Kojève, Introduction à la lecture de Hegel. Leçons sur la phénoménologie de l'esprit, Col. Classiques de Philosophie, Ed. Gallimard, Paris, 1947, p. 33).

Volto a perguntar: como irá reagir o leitor perante estes poemas? Não podemos esquecer que Poemas Quotidianos nos trazem um universo asfixiante e atrofiado, que impõe uma redução prévia de nós próprios. É fácil apontar a monotonia estilística - e, por conseguinte, um perigo: a repetição (mas não é a repetição um dos elementos do quotidiano?). Os principais efeitos resultam de elipses, de algumas imagens discretas, duma sintaxe de rejeição (frequência do não) e de escolha (predominância de palavras como , apenas), de uma ou outra aliteração (por exemplo: os sons nasais significando os movimentos lentos, a ternura crispada de certos instantes). Poder-se-á pensar que estamos perante um livro onde não há muita "poesia", onde faltam palavras. O que talvez seja verdade. Mas devemos ter presente o que nos diz Baudelaire: "La poésie est ce qu'il y a de plus réel, c'est ce qui n'est complément vrai que dans un autre monde". E é de um mundo ainda nosso que António Reis nos fala.

Eduardo Prado Coelho

António Reis - Poemas Quotidianos, p. IX-XXXVIII, col. Poetas de Hoje, Portugália, 1967

Agradecimento: A Graça Lacerda pelo envio de cópia integral do Prefácio. Muito obrigado!