segunda-feira, novembro 09, 2009

190. ANTÓNIO REIS - Postura cívica



O CASO DOS 5 REALIZADORES DESPEDIDOS

No dia 20 do passado mês de Abril, João Lima, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Emigração, após um visionamento sumário da cópia de montagem do filme "Lisboa, 1.ª Página", resolveu ordenar diversos cortes, supressões e alterações, quer da banda de imagem, quer da banda do som. Pedro Amorim, José Bogalheiro, Rosa Coutinho Cabral, José Alves Pereira e José Lã Correia, autores do referido filme, recusaram-se a fazer as alterações ordenadas, já que, no seu entender, essas alterações iriam deturpar completamente o projecto inicial do filme (que havia sido anteriormente aprovado pelo secretário de Estado) e representavam uma ingerência intolerável na liberdade de expressão artística e uma violação dos direitos de autor.
Na sequência desta recusa, o dr. João Lima, procedeu ao despedimento dos cinco autores do filme.
Hoje, mais do que o relato dos acontecimentos, por várias vezes focados na Imprensa, interessa-nos a opinião polémica e o debate de ideias sobre este caso que, de forma alguma, se encontra concluído.

Um acto condenável
sob todos os aspectos

por António Reis*

Ao despedir, com uma "Shifer" (marca de caneta) os autores de "Lisboa 1.ª Página", penso que o dr. João Lima cometeu um acto condenável sob todos os aspectos. Precisará o seu Ministério, para subsistir, de mais emigrantes? Ou joga já com o desemprego para ter servos de confiança?
As vítimas de políticos prepotentes foram constituindo um povo marginalizado, lançado - pela borda fora - gota a gota, em torrente - a diáspora não é uma fatalidade lusíada: explica-se pelo fascismo.
Qual será a cultura cinematográfica do dr. Lima para não ter percebido o que pode afinal ser moeda corrente de expressão em cinema?
Outra pergunta: o dr. Lima, zeloso tecnocrata, censura alguns dos ignóbeis filmes que exporta para os emigrantes? Importa-se, porventura, do que representam e da alienação que disseminam? Ou convém-lhe a droga dessas imbecilidades para que os emigrantes não retirem o lastro ao barco com o qual lhe garantem o seu ordenado e o seu posto, que não é o de tarefeiro?
E é preciso que aqui fique, incontroversamente testemunhado: cinco dos camaradas despedidos, por brio picado, não têm, de facto, outras ocupações: têm sim, dr. Lima, dramáticas preocupações... históricas, por exemplo, económicas, culturais, portuguesas.
Um castigozinho para o dr. Lima: 8 dias apenas na Renault, na produção em cadeia...
Para um tecnocrata, é suficiente a lição.
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* Cineasta, professor da Escola Superior de Cinema


Boletim da FAPIR (Frente dos Artistas Populares e Intelectuais Revolucionários), N.º 7, pág. 15, Ano II, Junho/Julho de 1978.

AGRADECIMENTO: Obrigado Professor José Alves Pereira por nos ter enviado este texto e nos dar a conhecer uma outra faceta de António Reis.

terça-feira, novembro 03, 2009

189. ANTÓNIO REIS E HOKUSAI

[Ensaios]

Apresentação de Hokusai
e um novo triunfo da “Guilde du Livre”
por António Reis

Há artistas tão necessários à minha vida, como a ternura humana, como o ar, como a água. Não ter ao alcance as suas obras, quando mo exige o coração e mo exigem os olhos (e tantas são as vezes), é sentir subitamente a vida suspensa (estado que a memória, como pode, vai iludindo e só atenuado pela certeza de saber que apenas me basta aguardar algum tempo para rever essas obras).

«O velho tolo do desenho», Hokusai, desde que o livro da «Guilde» me chegou às mãos, faz parte desses artistas. Obsessivamente. Tem razão Roy quando afirma ser a arte o caminho mais curto de um homem até outro... Para além do nome havia um país; um país com teatro, poesia, música, filósofos, vendedores ambulantes, lutadores de feira, samurais, violências – e o Yoshiwaras; um país com rios, aves, quedas-de-água e Sol... Para além do nome havia uma vida, vida cuja finalidade era o trabalho e o amor; objectos desse amor tu e eu; tu e eu bastava que amássemos a paz; paz para contemplar o Fuji-Yama ou para lançar, sem temor, as redes ao mar...

E já no tempo de Hokusai a arte era o caminho mais curto de um homem até outro: porque quando Hokusai chegava a qualquer reunião de artistas, de sandálias e envolto numa humilde capa de palha (como um camponês de Katsoushika), vencia o menosprezo geral com a sua arte; pois, a todos maravilhando, no papel em pousio, de súbito fazia nascer uma planta, uma ave cruzar o espaço, crescer uma vaga, a neve fluir, paira a lua, abrir uma flor, baloiçar um barco, rugir a tempestade, reflectir-se num lago o Fuji, um actor representar, pastar um cavalo, ou um gafanhoto deliciar-se com um fruto.

Aos que nunca ouviram falar de Hokusai e lhes estranharem o nome (como os artistas do seu tempo, a capa de palha e as sandálias), Hokusai já não poderá dar a conhecer-se desenhando, desenhando no seu belo jeito de semear – morreu a 10 de Maio de 1849 -: mas como os seus trabalhos se não perderam e este livro de «Guilde» reúne alguns dos mais significativos, a revelação, o diálogo e o encanto são na mesma possíveis.

Desta modesta apresentação não poderiam dispensar-se alguns elementos sobre o artista e a sua vida (só alguns elementos mesmo, porque embora o artista quase não tivesse abandonado o quarteirão de Honjo, não mais se terminaria); condensando Focillon, apontaremos alguns:

«Pelas suas origens e pela sua própria vida, Hokusai é um homem do povo. Por indiferença e talvez por gosto foi sempre pobre. Ele sabe o que vale a sua arte... Socialmente, seja qual for a sua fama, é o companheiro e o semelhante das pessoas simples. Ama os seus prazeres, participa das suas crenças e da simplicidade dos seus costumes. Numa época em que os artistas e os letrados vulgarmente se deixavam arrastar pela doçura de viver e pelas volúpias refinadas da raça mais refinada em prazeres que nenhuma outra. Então, as reuniões nocturnas, acompanhadas a vinho e a saké, prolongavam até de manhã a excitação de uma felicidade febril. Os mestres do Ukiyo-ye são parentes dos elegantes taikomati, homens de alta cultura e dum perfeito saber-viver que, por ofício, guiavam o estrangeiro pelo Yoshiwara e lhe diziam qual o preço e as virtudes profissionais das cortesãs célebres. A obra dos artistas dos Ukiyo-ye é uma longa exaltação dos prazeres permitidos – e dos outros. É invadida pela mulher, pelo seu perfume, pelas suas graças, os seus caprichos, os seus ardores, pela sua indumentária e pela sua nudez. Eles amam o luxo, porque envolve a volúpia de acessórios e raridades. E amam-no, porque o sabem fruir e dosear com rara medida. Sentado no meio das suas preferidas, Outamaro diz que tudo é vão, salvo a alegria das carícias e a curva dum seio belo. O príncipe dá o exemplo da dissolução mais delicada. Os escritores propagam-lhe o gosto e as receitas. A embriaguez dos sentidos é solicitada por uma obscenidade sedutora, e que se esconde apenas. No entanto, o camponês de Katsoushika, o homem da capa de palha, toda eriçada sob a chuva, passa com uma espécie de rudeza precoce. É casto, sóbrio, e os seus amigos verberam-lhe isso, como uma singularidade de mau tom. Mas ele não tem necessidade de se abandonar ao prazer. Não sendo nem um epicurista refinado, nem um mundano vulgar, nega-se a engordar ou a esgotar-se.

Homem do povo, pela sua capacidade de resistência e a expressão quotidiana da sua produção (que lhe permitiria legar à posteridade mais de mil pinturas, mais de quinhentos livros ilustrados e trinta mil xilogravuras, aproximadamente), é ao povo que ele se dirige sem vergonha, quando a miséria o expulsa de sua casa, e tem e fazer, por umas mãos-cheias de arroz, sobre o papel ou a seda que lhe estendam, prodigiosos esforços de desenhador ao vento. É que às pessoas da sua raça e da sua classe, ele não deve apenas as sãs virtudes, o equilíbrio moral e a coragem no trabalho, mas qualquer coisa desta destreza de artífice, desta virtuosidade manual, que lhe permitiam passar, sem fadiga, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, dos Dharmas gigantescos de Honjo e de Nagoya aos pardais microscópicos pintados num grão de trigo. Não são os passatempos de um Miguel Ângelo, mas golpes de destreza dum operário heróico e jovial que sabe sensibilizar o seu público da maneira mais própria e que lhe sabe agradar, porque a ele pertence. Hokusai conheceu o entusiasmo pelos estilos nobres, porém, não ficou por aí. Como os grandes artistas do Ocidente, consagrou-se às procuras técnicas, mas, cada vez que encontrou, não se fechou num contentamento egoísta, apressou-se a prodigalizar e a divulgar: daí os seus tratados e os seus métodos. O grande animador da multidão que passa é também o professor de todos. O homem que desenha com o dedo molhado em tinta, com um ovo, com tudo o que se queira, não acredita, sem dúvida, que o acúmen da arte seja a extrema dificuldade vencida, mas acredita que a arte é o triunfo sobre a matéria e que tudo é bom ao bom artista para exprimir a vida. Ideia muito popular e muito japonesa se nos lembrarmos dos engenhosos operários que fabricam, de nada, brinquedos encantadores e que, com um mínimo de elementos, conseguem as surpresas mais atraentes e mais raras, se nos lembrarmos dos oleiros que, colaborando com um deus, segundo a expressão de William Lee, põem ao fogo pequenas quantidades de lama amassadas com um polegar indolente e de lá retiram obras-primas.»

Quando os gravadores, na passagem para os blocos de madeira (e algumas vezes Hokusai se queixou disso) não comprometiam o espírito e a qualidade do trabalho do artista Ukiyo-ye, e não lhe alteravam as próprias formas, a impressão, como o fogo, também realizava o seu milagre; basta folhear atentamente o álbum publicado pela «Guilde», basta pôr de parte preconceitos e vícios (concretizados nas aberrações académicas), autênticos tabus de gostos e juízos, e estar atento a algumas das características técnicas da arte japonesa (como: arabesco decorativo, coloração pura sem modelo, perspectiva a duas dimensões, prática das cores planas, elevação das linhas do horizonte, enquadramento em ângulos emergentes, limite da escala de valores (utilizados como efeito e não como relevo), apontamento do modulado dos volumes por meios lineares ou por modelados breves degradados sem sombra, sugestão e não representação naturalista da terceira dimensão, predominância gráfica, aplicação de meios limitados... – fenómenos plásticos e técnicos tão importantes para a compreensão dos mestres do Ukiyo-ye (1), como Harunobu, Shunsho, Kiyonaga, Outamuro, Hokusai e escolas tradicionais de Tosa e Kano, como para a compreensão da arte moderna, de Manet aos abstractos, particularmente devedora à arte japonesa.

Conscientes da falta que é falar de Hokusai sem dar elementos pormenorizados acerca das causas que originaram a criação da estampa a cores (profundas transformações económicas e sociais, difusão da cultura pela burguesia e pelo o povo, difusão da Imprensa, paixão vivíssima pelo Kabuki), e bem assim de toda a apaixonante evolução do estilo Ukiyo-ye, desde Matahei e Moronubu a Harunobu,desde meados do século XVII a 1764, desde o estilo pintado, o sumy-ye (estampa monocroma, a tinta), o beni-ye (estampa a duas cores) ao nishiki-ye (estampa policromada), que prometemos tratar oportunamente, terminamos esta apresentação de Hokusai com um precioso depoimento seu, escrito aos 75 anos, a que a perspectiva do tempo sobre a sua morte e a sua arte, nos permite dar uma resposta:

«Desde os 6 anos, eu tinha a mania de desenhar a forma dos objectos. Pelos 50, tinha publicado uma infinidade de desenhos, todavia, tudo o que fiz antes dos 70 não merece ser considerado. Foi pela altura dos 73 anos que eu compreendi razoavelmente a estrutura da natureza verdadeira, dos animais, das ervas, das árvores, dos pássaros, dos peixes e dos insectos. – Por isso, lá pelos 80, terei feito mais progressos ainda; aos 90, penetrarei o mistério das coisas; aos 100 terei decididamente chegado a um estado de maravilha e quando tiver 110 anos, em mim, tudo será vivo. Peço àqueles que viverem tanto como eu, que vigiem se eu cumprirei a minha palavra. – Escrito com a idade de 75 anos por mim, outrora Hokusai, hoje Gwakio Rojin, o velho tolo do desenho.»

Hokusai morreu com 89 anos, perto da idade em que, segundo ele, penetraria o mistério das coisas... Sem atingir os 90, consegui-o Hokusai? Muito mais cedo ainda, mesmo? Não é inconsequência e generosidade responder afirmativamente e que os objectivos dos 100 e 110 anos também foram alcançados nas suas obras de arte essenciais, mas o «velho tolo do desenho» é que não concorda com isso; sempre, até morrer, severo ao extremo com o seu labor:

«Se o céu me concedesse ainda 10 anos...» «Se o céu me concedesse somente mais 5 anos de vida, eu poderia tornar-me um verdadeiro grande pintor» (último olhar do camponês de Katsoushika sobre a sua seara imensa – que não lhe importava imensa, mas viva, viva, para que as mãos dos homens a acariciassem com amor e com amor espalhassem, a seu tempo, as melhores sementes pelo coração de todos!).

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(1) Ukiyo-ye, significa «imagem do mundo transitório, em movimento». A arte do estilo Ukiyo-ye, de temática quotidiana, actual, opunha-se à arte pictórica clássica, «que se inspirando da doutrina Zen, portanto centrada sobre o eterno, não se impunha por tarefa representar as coisas deste mundo, mas visava perscrutar as realidades últimas (arte de carácter filosófico e profundamente religiosa)».

NOTA: Ilustram o ensaio de António Reis as seguintes obras de Hokusai: "A «Touribashi» (ponte suspensa) na fronteira das províncias nipónicas de Ettohu e Hida"; "O Fuji em Aoyama"; "Hokusai".

Jornal Comércio do Porto, Cultura e Arte - Orientação de Costa Barreto, Ano V, Suplemento n.º 6, págs. 5 e 6, de 14 de Fevereiro de 1956.