sábado, maio 16, 2020

230. António Reis, o poeta - por José Carlos de Vasconcelos

[Poesia] 

Editorial

António Reis, o poeta

Entre os muitos livros que recebo, um me acaba de chegar que me deu especial prazer e alegria: Poemas Quotidianos, de António Reis. Porque o António Reis (1927-1991) foi uma rara figura humana, com quem criei uma forte ligação desde que o conheci, em circunstâncias que desde logo me atestaram a sua afetividade e singularidade. Porque estes seus poemas são dos mais singelamente belos, humanos, da nossa lírica do século XX. Porque nunca deixava de os dizer nas numerosas sessões de poesia que fazia antes do 25 de Abril, contrastando eles, na sua fantástica concisão, com muitos outros de "intervenção" que dizia, e sendo particularmente valorizados com a música de Carlos Paredes que, de improviso, os(me) ia acompanhando com a sua guitarra.

Porque, mais, era inadmissível estes poemas estarem há décadas inacessíveis ao público: última edição a da Portugália, em 1967, com prefácio do Eduardo (Prado Coelho). E porque, enfim, por tudo isto eu próprio tive há muito a ideia/intenção de os reeditar, o que por vários motivos acabei lamentavelmente por não fazer. Pretendia eu, aliás, acrescentar aos cem poemas da edição da Portugália - que reunia os dos Poemas Quotidianos, de 1957, e Novos Poemas Quotidianos, de 1960, mais alguns inéditos -, novos poemas inéditos, da mesma linha, que sei entretanto o António Reis (AR) escrevera e alguns dos quais eu publiquei no Diário de Notícias quando estive na sua direção, após o 25 de Abril.

Sem nunca deixar de ser o poeta que sempre foi, a forma de expressão artística privilegiada que ao AR se impôs, a partir de certa altura, deixou de ser a da poesia para passar a ser a do cinema. Cinema que de resto sempre foi uma paixão e atividade sua, e no qual deixou uma obra tão assinalável que para um Pedro Costa representou "a oportunidade de passar a ter um passado no cinema português". Só que, ao contrário do que seria natural e desejável, a obra do cineasta não chamou mais a atenção para o poeta, antes contribuiu para o seu tão injusto esquecimento ou mesmo apagamento.

Quando o poeta não é "menor" que o cineasta e não há nos seus filmes muito do que existe nos seus versos de um "realismo intimista", um lirismo tão comovido como contido, em que as coisas aparentemente "banais" do dia-a-dia ganham uma dimensão e uma beleza, as mais das vezes melancólica, únicas.

Por agora limito-me a chamar a atenção dos leitores para Poemas Quotidianos, (re)lançados com a chancela da Tinta da China, em coleção dirigida por Pedro Mexia - a quem se fica, pois, a dever a escolha e publicação -, com prefácio do excelente prof. e crítico Fernando J. B. Martinho, e posfácio do realizador Joaquim Sapinho. Mas se nestas colunas do JL sempre demos o justo relevo ao trabalho de António Reis, muito gostaria de proximamente a ele voltar como merece, aproveitando esta reedição e, talvez, o facto de se vivo fosse o António Reis fazer 90 anos a 27 de agosto próximo.

José Carlos de Vasconcelos

Jornal JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, p. 3, de 19 de Julho a 1 de Agosto de 2017.