224. "TRÁS-OS-MONTES" na "Isto é cinema"
Acontecimento
cultural em Paris
TRÁS-OS-MONTES
visto por franceses
O êxito em Paris deste filme motivou, aliás, um convite para uma manifestação cinematográfica de grande relevo nos Estados Unidos - o Seminário Flaherty. Uma delegação deste viu Trás-os-Montes na sala do Action e solicitou a sua participação no seminário, que se realiza em Agosto próximo, sendo igualmente convidados os seus autores. No Seminário Flaherty tomam parte alguns dos mais importantes cineastas de todo o mundo, tendo um dos convites sido dirigido a Jean Rouch - por sinal um dos entusiastas de Trás-os-Montes, que já viu repetidamente e de que falou na "France-Culture", além de uma crítica no Pariscope. Interrogado sobre o convite norte-americano, António Reis considerou que o filme entra por uma via extremamente honrosa nos Estados Unidos.
Em França, Trás-os-Montes está a defender um milhão de emigrantes - é o que pensa Reis, e não é difícil estar de acordo com ele. Impossível, depois de ver estes rostos imersos na distância e contudo tão próximos, tão pessoais (como falar em personagens nesta ficção?), continuar a pensar em termos de "povo anónimo" ou de "massas". Agora trata-se da vida irrepetível de cada um desses seres de que por vezes nos é dito o nome ou ouvimos a fala, ou dos lugares de ressonâncias estranhas que logo se nos tornam familiares - sem no entanto perderem uma "estranheza", uma certa irredutibilidade secreta, que lhes vem de termos transposto o limiar do território poético - o que bem compreendeu Claude-Jean Philippe (artigo em Le Matin, de Paris, 24-3-78), escrevendo sobre "a poesia no cinema" a propósito do filme de Reis e Margarida Cordeiro e de La Chambre Verte, de François Truffaut:
Há um arrepio que não engana. É a emoção da descolagem, da partida. Algo semelhante à passagem de uma fronteira. A paisagem permanece a mesma de um e do outro lado da linha misteriosa, e todavia eis-nos algures, em terra estranha. Os fantasmas vêm ao nosso encontro.
Entrámos já sem o saber em território de poesia. (...) Filmes de amor um e outro, levados a cada momento da sua elaboração e da sua execução pelo fervor, a ternura, a paixão, a paciência. Foram precisos seis anos a François Truffaut e a Jean Gruault para encontrar "a linha dramática ascendente do seu filme". António Reis e Margarida Martins Cordeiro familiarizaram-se muito longamente com as personagens de "Trás-os-Montes". "Nunca filmámos um camponês, uma criança ou um velho - dizem - sem nos termos primeiro tornados seus amigos" (entrevista aos "Cahiers du Cinéma", Maio de 1977). "Só o amor fornece a energia vital que permite passar a fronteira. António Reis e François Truffaut sabem-no, como bons poetas que são ambos. Mas sabem ao mesmo tempo que esse amor não poderia de nenhum modo iludir-se no nebuloso, no indeciso, no vago desejo de evasão a que geralmente é reduzida a aspiração poética."
Em Trás-os-Montes não é pois a evasão que conta, mas a invasão da alma pelos objectos da sua paixão e do seu conhecimento profundo, interpelando a nossa parte de segredo. As críticas e comentários (nenhum desfavorável, até agora) afluem, repetindo-se mesmo. Le Monde, depois de um texto de Jacques Siclier - 25 de Março - fez-lhe já quatro referências na selecção semanal de filmes; Le Matin, duas críticas; duas também em Libération (25 de Março e 4 de Abril), críticas ainda nos jornais France-Soir, Rouge, Politique-Hebdo, L'Humanité, Telerama, Pariscope... e outras deverão ter saído por este dias em Écran e Positif, para além dos Cahiers que se têm interessado muito particularmente pelo filme. E ao mesmo tempo chegam pedidos da província para a exibição (comercial) de Trás-os-Montes: Toulouse, Lyon, Marselha, Lille...
Linguagem poética, cineasta-poeta, documentário poético de combate, realismo poético, são expressões que surgem nas críticas, aliás diversas - para além de algumas linhas de força quase constantes, e que resultam das próprias "evidências" da obra; um crítico diz mesmo que Trás-os-Montes é um poema sobre um mundo, sobre sensibilidades que se lembram, um poema de ontem e de hoje (...). O estilo contemplativo do filme é também certamente testemunho de uma vontade de reflexão, de uma vontade de retomar a respiração, de respirar a plenos pulmões o ar do tempo, o ar das recordações antes do ar do futuro (Albert Cervoni, L'Humanité, 22 de Março); acentua depois como este filme seria diferente se realizado sob o salazarismo e como ele é diferente da produção fascista e diferente do mercantilismo. A discussão apaixonante de Trás-os-Montes (que hoje faz carreira sem precedentes no estrangeiro no que respeita à produção portuguesa - incluindo a "mercantilista") justificaria um ensaio, entre outras razões porque este filme desorganiza saudavelmente as chavetas em que se arrumavam tranquilamente coisas como "ficção" e "documentário", e conceitos como espectáculo, filme narrativo, etc. Essa inovação, que já Rouch lhe apontara, é reconhecida agora, entre outras, por Jean Duflot (Politique-Hebdo, 1-9 de Abril). Mas deve dizer-se que a crítica portuguesa, por vezes distraída, foi em geral capaz, ainda em 1976, de descobrir muitas das pistas do filme e compreendeu a sua importância - que só não dizemos revolucionária porque a palavra tem sido gasta com algumas coisas menos sérias. A repetida referência à poesia a propósito deste filme prova-o; é a gazua que se invoca na falência das chaves comuns, mas é também o signo amoroso de uma revelação maior. Trás-os-Montes é um filme sem fim, sempre a rever, como acontece nos poemas. Com que olhar e quando o reveremos na volta de terras de França para cá dos montes?
Francisco Belard
Revista Isto é cinema, n.º 16, pág. 32-34, 12 de Maio de 1978, 20 esc., semanal, sai às 6.ªs feiras.
AGRADECIMENTO: Ao Professor José Alves Pereira por nos ter enviado este artigo da revista "Isto é cinema". Muito obrigado!
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