terça-feira, janeiro 30, 2007

154. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de F. Gonçalves Lavrador

Duas palavras a propósito de «Trás-os-Montes»
de António Reis e Margarida Cordeiro


por F. Gonçalves Lavrador

Aproveito algum tempo vago das minhas ocupações obrigatórias para escrever rapidamente duas palavras a propósito do filme de António Reis e Margarida Cordeiro «Trás-os-Montes», que tive a feliz oportunidade de ver, em ante-estreia na cidade do Porto, graças à iniciativa de «Moviola, Cooperativa de Acção Cinematográfica». Duas palavra escritas rapidamente, ao correr da pena, sem preocupações de forma, para chamar a atenção dos meus leitores para esta obra notável no panorama do cinema português contemporâneo.
Esclareço o seguinte: sempre procurei fugir à tendência, que tantas vezes se encontra, de apreciar o cinema e os filmes portugueses de um ponto de vista pouco «crítico», pouco «analítico», isto é, sem uma perspectiva axiológica, sem uma clara e conveniente hierarquização, digamos assim, das obras e das diferentes (apesar da pequenez e da insipiência cultural deste cinema, julgo que nele poderemos distinguir algumas «correntes» e até uma ou outra obra solitária que, só por si, definiria uma «corrente» se, por acaso, tivesse continuidade). Evito sempre a citação de longas listas de filmes e de factos, sem qualquer visão crítica, sem qualquer juízo de valor solidamente fundamentado ou com alguns juízo de valor mas dispersos, isolados, injustificados, muitas vezes arbitrários ou desintegrados duma concepção teórica global, sem qualquer fundamento objectivo numa análise semiótica, numa integração sociológica ou numa explicação psicológica. Temos à roda um magote de factos e de películas que sempre procuraremos ordenar e escalonar segundo um critério axiológico bem definido e fundamentado, de modo a que sobressaia o principal, o determinante, o mais significativo e o mais expressivo, e se apague, ou até se anule, o acessório, o insignificante, o inexpressivo e o inútil.
Espero ainda um dia escrever desenvolvidamente sobre a obra de António Reis. Para isso, precisava, aliás, de assistir pela segunda vez, à projecção de «Trás-os-Montes». De qualquer modo, posso desde já dizer que, na minha opinião, há, no cinema português, três momentos de grande significado, quer dum ponte de vista estético, quer dum ponto de vista histórico e sociológico. Três momentos, três filmes, três obras de arte que apresentam atitudes corajosas e bem lúcidas dos seus autores num meio hostil. Esses momentos, esses pontos mais altos e mais significativos da arte cinematográfica portuguesa são, por ordem cronológica, «Douro, Faina Fluvial» de Manuel de Oliveira, «O Recado» de José Fonseca e Costa e «Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro.
A intuição fílmica de Manuel de Oliveira (que, infelizmente, e apesar de se manter ainda bem activo, se tem orientado, nos últimos tempos, para um certo «academismo») e à coragem moral e cívica, à espontaneidade e ao profundo desespero dum artista que sofre na sua própria carne e no próprio espírito toda a angústia de um país oprimido e humilhado, à coragem de um realizador antifascista como José Fonseca e Costa, corresponde agora a força poética, a sensibilidade humana e estética, a espontânea visão simultaneamente camponesa e infantil de António Reis, com a novidade de um cineasta que descobre, maravilhado, o seu próprio povo no que este tem de mais profundo, de mais específico e de mais verdadeiro, através duma obra surpreendentemente híbrida, de estilo bastante original, ao mesmo tempo documentário e ficção, realidade e sonho captação inocente e representação, simultaneamente cénica e serial, pois constituída por pequenas estruturas cénicas que se articulam dum modo serial. O serialismo de Reis não recusa, no pormenor, na sequência elementar ou na pequena secção narrativa, o dramatismo pontual ou o cenismo segmentar.
Por enquanto uma certeza: um filme como «Trás-os-Montes», de António Reis e Margarida Cordeiro, marca uma data no cinema português. Esperemos que tenha continuidade, que não fique obra isolada. Que se não reduza ao papel de obra-prima indiscutivelmente aceite como tal por toda a crítica especializada, mas no panorama triste duma cinematografia pobre e impotente (como é o caso de «Douro, Faina Fluvial»). Que não lhe esteja reservada (e pelas reacções até agora verificadas julgo quer não) a sorte madrasta dum filme de valor incontestável e de altíssima significação no momento histórico em que se insere (caso de «O Recado»), mas ostensivamente ignorado por uma crítica que tantas vezes desperdiça os seus louvores em obras de bem menor importância e alcance, por vezes mesmo medíocres. Esperemos que nada disto, nem nada de semelhante se passe com «Trás-os-Montes».

Aveiro, 27-2-1977
F. Gonçalves Lavrador

Revista Celulóide, págs. 242-243, Julho de 1977 (Dir. Fernando Duarte)

domingo, janeiro 28, 2007

153. EU NÃO VOO

Eu não voo
ando

quero que me oiçam

mas também não sou
das rãs que coaxam


António Reis - Novos Poemas Quotidianos, pág. 11, Porto, [1959].

sábado, janeiro 27, 2007

152. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de João Botelho

3 NOTAS SOBRE TRÁS-OS-MONTES

«Um dia, tendo alcançado o nosso fim, só com orgulho falaremos das longas peregrinações que fomos obrigados a fazer. Mas na realidade não nos tínhamos apercebido da viagem. Se chegámos tão longe foi precisamente porque em todos os lugares nos parecia estarmos em nossa casa».

A ORDEM, O AFASTAMENTO. CONSEQUÊNCIAS

Num encadeamento flutuante de imagens e de sons um «leitor» pode escolher uma parte e ignorar os restantes. Defendendo sobretudo a atribuição de lugar de afirmação às imagens e aos sons que nos importam mas é necessário também tentar perceber os conflitos que se estabelecem pela divisão decidida.

Nota 1. MITOS PESSOAIS E RITOS COLECTIVOS

«Por vezes um poeta encontra a sua justeza em prosa».
Deixando para um lugar à parte (Nota 3) a abertura e o fecho(?), podemos marcar em Trás-os-Montes a existência de dois tempos distintos: no primeiro tempo, alguma coisa insiste continuamente em se dar a ver: o efeito-criança, o espaço privilegiado em demasia, local puro, «esperança» protegida. Tempo lírico, como diz Reis, mas que se alinha nas imagens marcantes dos «meninos de Trás-os-Montes». (Parêntesis espectacular de uma suposta realidade – parêntesis ideal das fábulas da infância e sobretudo dos mitos dos autores do filmes). Neste espaço perfeitamente controlado podemos arriscar uma equação hierarquizada: dominantes – as crianças (Luís mais do que Armando, e ambos mais do que os outros); segundos planos - mulheres e alguns velhos (Ilda mais do que a mãe de Armando e ambas do que os outros); como décor – espaços interiores e a natureza.
Ligações principais – o racord de olhar (ainda que subvertido para um outro espaço, diferente do off do enquadramento, por exemplo: simulações de «flash-backs»).

Um segundo tempo de prosa, «água-forte», como diz Reis. Aqui nenhuma hierarquia, igualização de importâncias, a natureza surge com estatuto de personagem, o racord sem margens, com o máximo de amplitude, estilhaça-se. Figuras, homens e pedras, que se deslocam, transformam e substituem para pôr em jogo a mobilidade e a ressonância da violência. Cada personagem é um exemplo. Os ritos colectivos comandam. Ligação dominantes? – nenhumas. Modernidade sem concessões.
Destes dois tempos, um só consegue libertar todas a razão da sua causa porque se insufla suficiente identificação entre a rudeza das pedras e das gentes, suficiente abandono de regras narrativas (cada vez mais se prova que o povo subjugado não necessita de narrativas, experimentem olhar o seu olhar inequívoco, ou a trágica natureza que o acolhe) suficiente atenção aos elementos que o fustigam, ao desespero que depois fica.

NOTA 2. O OLMO E O RIO

«Apanhei essa ideia no ar e, com receio que me fugisse, fixei-a com as primeiras palavras que me ocorreram...»

Quero marcar duas cenas entre algumas outras possíveis, que se equivalem apesar de se situarem nos tempos distintos: no primeiro tempo a cena do olmo (ver fotografias que ladeiam o texto de J. A. S.); no segundo tempo, a cena do rio (que Serge Daney trata para designar a a-hierarquização do off)
a) em ambas as cenas, o silêncio. Na primeira, após o chamamento inicial, redobrado pela marcação Ilda-mãe, um silêncio de memória. Na segunda, após o ensinamento da pesca, o silêncio do rio.
b) em ambas a rara presença do pai adulto no mesmo enquadramento do (tocando o) filho.
c) em ambas ainda o tema da imaginação em «suspenso», ao contrário do resto do filme: memória do afastamento do pai de Ilda na primeira, e situação do rio instável de fronteira ameaçando com a Espanha (e a Alemanha) por detrás das montanhas.
d) por último a luz e a duração das cenas: fim da tarde, longo plano fixo sobre a estrada de macadame por onde o pai se afasta e Ilda acena; e fim da tarde, longo travelling a rasar as águas.

NOTA 3. ABERTURAS SINGULARES

Cena inaugural: sinais majestosos, travessia sem mistério, segurança espacial, nenhuma suspense, drama da natureza, montanhas-portas, bordos a ultrapassar, ofertas de conhecimento que certificam o espectador, off de som que engendra o fim da travessia e anuncia a saída (entrada no) enquadramento do pequeno pastor mestre das suas ovelhas, veloz. Sinais evidentes de abertura de filme, para lá dos montes. Acentuemos: um décor e um personagem fora do campo, invisível; um som estranho (vários sons agudos, linguagem de pastor) que o introduz. Cena final: a célebre cena do comboio – o que faz ver e ouvir? Um estudo rigoroso das atmosferas oxidantes e redutoras possibilita ver o fumo serpentear no amanhecer ainda negro; e como se a limitação do enquadramento fosse insuficiente, encontramos um prolongamento de duração necessário para que o silvo se transforme em grito, e depois mais do que metáfora, em desespero branco. Mas este signo trágico de fechamento abre de novo, ainda mais trágico: a natureza/fumo grita e o vento fustiga um personagem em silêncio: um novo pastor e um novo rebanho – cabras em vez de ovelhas.
Corte a pique. Trás-os-Montes por fechar. Nenhum descanso.

J. B.

Revista M - Revista de Cinema, págs. 42-44, 4 de Junho de 1977.

sexta-feira, janeiro 26, 2007

151. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Jorge Alves da Silva

CONTRA O CÉU

O OLMO

Reparte uma das figuras do nosso saber a possibilidade de existências do humano, por uma original e funda censura entre a Natureza e a Cultura. Por essa separação terá o humano encontra do abrigo. Assim passou a nossa convivência com a antiga e desencontrada harmonia, a ser medida pelo olhar e pela palavra.
Trás-os-Montes existe na procura de um espaço-pátria, não no sentido de uma unidade política ou da sobrevivência de uma memória de lutas, mas de um espaço morada, de um espaço onde antes de mais foi possível a constituição de um viver, de um habitar fundo. E que foi feito dele? Por que margens da terra se dividiu a sua unidade, a morosa e imemorial sedimentação? Pelos quatros cantos do mundo?

Quando num momento em que uma das muitas microficções (que constituem o ponteado do filme) vacila (a memória da mãe na memória do filho), numa incerteza de atribuição, de saber em quem se está, abre-se uma muito bela panorâmica vertical, que desce do topo à base de um olmo. E o espaço flúi à volta dessa força.
Não será esta majestade vegetal, uma das fugas nucleares deste filme? Ou seja não exige ela, pelo tempo em que está presente, que se adivinhe do raso da nossa memória que o olmo, silencioso ideograma, condensa a dispersão de um saber, de uma aprendizagem da terra, do dia, do tempo e da estação que revém. Que perdida esta contiguidade, os pontos cardeais do tempo da vida, errarão os que lhe sobrevivam por um deserto. E não é essa experiência da errância, a experiência contemporânea? Da convulsão planetária, de uma crise de norte a sul, pouco se fala em directo. Antes, do tempo aparentemente recuado que faz recuar o nosso, se interroga, se convoca a lei, se suspende o correr normal do mundo, o olhar devolvido ou revolvido, como se paradoxalmente (não falo de referente, o filme não o tem) o filme nos olhasse.
Aquilo a que por convenção ou necessidade de arquivo se chamou de gesto etnológico no cinema, redução que transportou do mesmo movimento o trabalho de Flaherty, a Índia de Rosselini, os filmes do Rouch (quase que é possível perguntar porque não The River do Renoir e o Tabou de Murnau), consistiu num tempo em que esse gesto de olhar parecia ainda puro de cargas adicionais, em fazer ler a partir da nossa (Ocidental) sã constituição, a impureza, o acidente, o acidente de atraso, a estranheza como possíveis retratos da nossa primitividade, vestígios que a nossa memória só transversalmente reteve.
Agora mesmo sabendo que o olhar do etnólogo não é um saber inocente, não constitui a lei do Outro a partir de um normal sem questão, como conseguir reduzir, para nossa calma, essa proximidade e distância em que o filme fala, esclarecendo melhor, não digo de que fala o filme ou sobre que fala o filme, digo que o filme fala aí no espaço reserva do nosso espaço. E dizer, que o atraso é herança e descuido ou desprezo do fascismo, de que vimos, que adianta, que esclarece? Nada.

Trás-os-Montes, província. Trás-os-Montes ao abrigo de um turismo, pátria de segredos a recuperar, a colocar em museu, a rapidamente colonizar, por em cachão (ou caixão) – as figuras do nosso presente contra a memória, contra o presente de raiz. Princípio do colonial: contra estas vozes do silêncio, um silêncio sem voz.

Sabes o que é um olmo?

TURVOS DIZERES

Muitos são os planos em que o raccord se segura, (talvez como armadilha) pelo olhar. Mas qual o espaço, paredes, vertentes, horizontes, que está um contra outro. Define-se alguma vez o fecho de um quarto, o lado de um desses olhares? Mesmo no título o que se diz é todo um espaço, todo um continente. Tal como numa das mais belas obras modernas, violenta e sacra, Eden, Eden, Eden de Pierre Guyotat, o funcionamento geral é a frase sem interrupção, sem começo e sem fim, apenas destacada de um outro corpo de obra, que é o balbuciar ininterrupto do dizer.
Histórias, lendas, cenas, memórias, citações num único movimento, numa única panorâmica de todos os solos históricos, de todo o tempo num só momento. Assim pode-se dizer que cada um dos personagens que aparecem, não vêm a constituir múltiplos aspectos, sinais de variedade e riqueza de diverso, antes são não uma soma, mas uma montagem, como dissemos, um ideograma.

Wordloosed over seven seas, James Joyce, Finnegans Wake.

A memória desta terra estaria assim latente, pronta a dizer-se, se o olho que escuta, como dizia Claudel, lhe desse tempo, atenção. Seria menos uma rememorização dos mortos, mais o leque de forças vivas, de informações fundamentais, de culturas, de gestos e dizeres que estão a um tempo presentes e ocultos numa ganga, numa casca de urbanidade e contingência. A obra aqui feita, continuada noutros, seria essa escuta que olha os vários acessos a esse núcleo do ser.
Trás-os-Montes é um objecto privilegiado não pela salvaguarda que o tempo e o abandono da «capital» lhe teria dado, mantendo a sua «pureza original», a sua «imaculada concepção», mas porque aí existe precisamente um menos de dissimulação, um combate de forças, para que todos têm tempo.
Porque falamos? Que dizemos? Que ouvimos? Que fazemos? Todo um certo cinema (para nos reduzirmos a ele) procura aí uma razão de trabalho.
Qual a circulação de nós pelos corredores do Capital, quais as respostas que damos a perguntas que não ouvimos, mas às quais damos livre trânsito. Que desliza pelo nosso olhar que não vemos?

Fazer dizer um texto de Kafka a um camponês mirandês, traduzir esse texto, num dialecto, para que finalmente o possamos ouvir. Somente por essa violência brusca, podemos finalmente ouvir. A lei fica suspensa na sua feitura, e é possível então perguntar-lhe.

Este é um país deserto, com uma geração a menos. E como compreendem as crianças que ficam os velhos tão perto da morte como de um obstinado segredo. O tempo de produção está ausente. O trabalho das minas deixou o lugar de um trauma. O trabalho agora, emigrado com os corpos, é noutro país. «Alemanha, Espanha».
Esse exílio formará outras famílias, outras habitações que coexistem, melhor que não existem, lado a lado, como as da aldeia, em que o choro pelos feridos da mina, era um choro colectivo, ligado por proximidades de paredes e de famílias constituídas umas das outras ao longo do tempo. Todos tão perto da lei como do incesto.
O «moderno» formou-se como ruptura contra a gramática de tudo, por intensidades opressivas, por insistências pontuais – assim um Pollock, um Artaud, um Stockausen, um Godard. E um Pessoa e um Sá-Carneiro. Todos rebentaram contra o muro da linguagem, como dizia Eduardo Lourenço de Mário de Sá-Carneiro.

SEQUÊNCIA

E porquê no espaço do filme, privilegiar o alinhamento de alguns raccords, como se fosse aí – nessa escolha – que alguma certeza quanto ao «corte» deste filme, se assegurasse? Ao chegar de fora – Argentina – o pai, e para que este a achasse bem, decora-se a filha de outro vestido e de uma fita nos cabelos. Pouco é o tempo que o pai tem para olhar, como se a razão de toda uma viagem fosse o imperativo de a ver. A filha contra a terra e o pai contra o céu.

RIVERRUN

Deserto o país de gentes, uns mortos e enterrados pela idade, apartados os outros pelas indústrias, sem quem lavre o campo e «pastoreie as serras», quem lhes ocupará o espaço e lhes ouvirá o grito?

Texto lateral com citações de Maurice Blanchot, Georges Duzémil, Edmond Jabés, Jacques Lacan, Teixeira de Pacoaes:

(pensamento ou sentimento)

Um país que já não tem lendas, diz o poeta, está condenado a morrer de frio. É possível. Mas um povo sem mitos está morto.

A função da classe particular de lendas que são os mitos, é a de exprimir dramaticamente a ideologia de que vive a sociedade, de manter na sua consciência não apenas os valores que ela reconhece e os ideais que persegue de geração em geração, mas antes de mais o seu próprio ser e estrutura, os elementos, as ligações, os equilíbrios, as tensões que a constituem, de justificar as regras e as práticas tradicionais sem as quais tudo se dispersaria.

Na nossa relação às coisas, tal como é constituída pela via da visão, e ordenada nas figuras da representação, há algo que desliza, passa, transmite-se, de degrau em degrau, para estar sempre presente num modo elidido - é isto que se chama olhar.

Ó cidade, disse eu rezando, já que em breve eu não poderei mais com a minha linguagem comunicar contigo, deixa-me gozar até ao fim das coisas às quais as palavras respondem se se quebram.

A voz que tem sinais e cicatrizes, dolorosas, profundas, indeléveis, de haver pousado na surdez dos Deuses!

Na palavra olho, há a palavra lei. Todo o olhar contém a lei.


Jorge Alves da Silva

Revista M - Revista de Cinema, págs. 39-42, 4 de Junho de 1977.