sábado, março 21, 2009

187. ANTÓNIO REIS NO ALENTEJO



O poeta António Reis em pleno Alentejo.

Jornal de Notícias, Suplemento Literário, pág. 5, de 4 de Agosto de 1957.

quinta-feira, março 19, 2009

186. OUVINDO ANTÓNIO REIS

[Recolhas]



OUVINDO ANTÓNIO REIS
o poeta do Porto
que foi ao Alentejo


Os poetas da cidade passam a vida às mesas dos «cafés», ouvindo-se uns aos outros, com aquela «pose» mais ou menos estudada e solene, que os botequins do Chiado tornaram tradicional.
Por ser assim, mais extraordinária se torna a aventura de António Reis, o poeta que foi à procura de Poesia viva e humana, autêntica e verdadeira, até à Província do Alentejo.
Foi e trouxe toda a poesia que encontrou, em flagrante, saindo da sua verdadeira fonte: a boca do Povo.
Admirável missão que um poeta podia propor a si mesmo, para a cumprir da melhor maneira: aderindo à mais pura essência da realidade humana, social e lírica.
Por isso o procuramos para lhe perguntarmos:

- Quais as poderosas razões que o levaram ao Alentejo?

Conhecer na intimidade o seu povo e a sua terra... Razões propriamente mais humanas e telúricas que artísticas - uma espécie de pudor e de respeito pelo sofrimento não me consentiam outros projectos. Mas afinal, conhecer na intimidade o Alentejo implicaria dominar essa atitude sentimental e tornar a comoção mais útil e mais digna. Assim me vi envolvido subitamente por rostos, corações, lágrimas, nomes, factos, ais, pragas, objectos, poemas e música. Assim me vi subitamente subjugado pelas formas da vida e da arte, registando amarguras e esperanças, desespero e sonho, beleza e morte... - dia e noite quase alucinado, incontido, com medo dos próprios sentidos esfolando-se como a pele...

- O que pensa fazer do precioso material que recolheu?

Entregá-lo a quem amar os homens e a beleza, para meditação, fruição e dor. Para tornar o Alentejo mais próximo de nós e nós dele. Para tornar mais consciente o nosso gosto pelo seu trigo, que na realidade não é como na cidade o comemos, branco, leve e fresco! Os poemas serão publicados em livro; a música será transmitida pela rádio e gravada em discos, possivelmente; quanto ao material de artesanato e humano, conjugado com a poesia e a música, constituirá assunto duma série de palestras que tenciono efectuar sobre o Alentejo em diferentes localidades.

- Acha o folclore e a etnografia alentejanos ricos de conteúdo e forma?

Receio responder porque sou apenas um amador e porque a minha aproximação do Alentejo foi sobretudo um acto de amor. Acto de amor que me fez sofrer e deslumbrar por grandes e pequenas coisas - talvez consideradas por terceiros sem interesse dentro do âmbito das especialidade apontadas. Ocorre-me, por exemplo, a importância que dei ao lume feito ateando uma bolota seca pousada num vidrito por meio de atrito duma pedra de isqueiro cravada num taco de madeira ($30 para um camponês era uma importância diferente que para um etnógrafo); ocorre-me também a importância que dei às brasas que iam pedir à forneira dum povo para o ferro de passar a roupa ou aos tabuleiros de carapaus pequeninos que ela assava, por favor, no forno do pão; ou às ovelhas morrendo com o volvo, de fartas, ao lado de homens secos; ou ainda aos cardos beija-mão que não deixavam as camponesas lavarem-se sequer ou pontear; ocorre-me, por exemplo, ainda, a importância que dei às crianças dançando agora uma moda em cadeia e logo um mambo; a um rádio numa praça pública semeando joio e propaganda diversa pelas almas; ao cartaz e ao plano do filme chamado «O Tesouro do Templo»; às expressões como «um homem escuro», «uma mulher ocupada», «sovar a massa», «brandura», para significar: um homem triste, uma mulher grávida, amassar, orvalho, que registei ternamente como um poema rico de invenção, metáforas e vivências populares...

- E a música e a poesia popular alentejana?

Sobre a música do Alentejo, Fernando Lopes Graça já tem dito, apaixonada e objectivamente, qual o seu valor e qual a tarefa a que seria necessário dar início sem demora, metodicamente, cientificamente, para recolher, proteger e vivificar um dos nossos patrimónios artísticos mais excepcionais. Escutar as suas palavras e os seus conselhos é o único caminho a seguir e o único juízo de valor seguro sobre este assunto. Sobre a poesia, espero dar uma resposta com as largas centenas de poemas recolhidos, abrangendo modas, cantigas, quadras, versos de pé quebrado e despiques. Mas podem servir de testemunho alguns dos exemplos coligidos para esta página.

- Têm recebido influências para bem ou para mal?

Evidentemente, que para bem. Para mal, só o meu desespero de apenas em condições dificílimas poder efectuar estes contactos (são 1.000 quilómetros ida e volta), tão necessários para os que conseguem levá-los a cabo, para os que ficam e para os que encontrámos.

Mais nada. Apenas uma quadra para os artistas portugueses, que ouvi cantar a um camponês do Baixo-Alentejo e que cito sem humor, antes solenemente:

«Ajudem-me que eu não posso
Cantar a moda sozinho
A moda está muito alta
E o meu cantar é baixinho.»


Jornal de Notícias, Suplemento Literário, pág. 5, de 4 de Agosto de 1957.

Nota: Na mesma página do Jornal de Notícias encontra-se um pequeno texto de Fernando Lopes Graça, "Versos de pé quebrado" de Joana Palma Neves (de 78 anos, camponesa), fotografias e um texto sobre os ceifeiros, "Líricas alentejanas" de António Joaquim Lança (cabreiro analfabeto, de 75 anos e nascido em Cuba) e ainda a "Oração das trovoadas" de Teófilo Alexandre (camponês).

segunda-feira, março 16, 2009

185. QUE FOI FEITO DE NÓS

Que foi feito de nós
Ah Clara nada invejes

todos mais ou menos
ficamos tolerados
e aguardando

receando como tu
o desemprego e a velhice

vendo
crescer
os nossos filhos sem sorrir


António Reis - Poemas Quotidianos, pág. 12, Porto, [1957].