terça-feira, agosto 31, 2004

005. VEM ALMA ERRANTE

""Vem alma errante.
Volta dos montes,
Da floresta,
Dos caminhos
Ou das fontes,
Das sombras
Ou das névoas,
Dos lodos
Ou do fundo do mar.
Por onde quer que tu vagueies,
Aqui nada te faltará.
Vem comigo alma,
Para tua casa, ao abrigo das tempestades,
Do vento
E da noite escura".


António Reis declama este seu poema no filme "Rosa de Areia", dirigindo-se para os horizonte infindos.

segunda-feira, agosto 30, 2004

004. "JAIME"- Crítica de Eduardo Prado Coelho

O filme parte de uma descoberta: a da obra de artista plástico de Jaime Fernandes, internado num Hospital Psiquiátrico. O material encontrado é de facto fascinante: toda uma galeria, monótona e obsessiva, de corpos de homens, e, sobretudo, de animais, traçada numa rede densíssima de linhas, num grafismo simultaneamente nítido e emaranhado. É claro que o cineasta nos obriga a passar os olhos repetidas vezes por estas figuras compactas e esmagadas, e se interroga sobre a forma de apelo que se desprende desta actividade desesperada e insistente. Ao mesmo tempo, são postos em relevo certos fragmentos de cartas com frases aparentemente desconexas. Percebemos que Jaime nos quer dizer qualquer coisa, e que essa qualquer coisa lhe escapa, e daí a repetição, a monotonia referida, a evidência incontrolável desse ensinamento – qualquer coisa que, para nós, espectadores, surge como definitivamente perdida. O filme joga-se por inteiro no segredo desta dor irrecuperável: por isso podemos dizer que Jaime, sendo uma obra sobre a loucura e a criação, sobre o atroz vazio dos gestos no recinto de um asilo para loucos, sobre a nostalgia muito funda de uma harmonia apagada, é, acima de tudo, uma espécie de reflexão rasante à superfície das imagens onde nos é dado pensar a solidão imensa em que cada destino se configura.

Alguns poderão supor que esta primeira obra de António Reis (que, muito embora contando com a colaboração de Margarida Martins Cordeiro, não a promove ainda ao papel de autora) é algo de consideravelmente diferente daquilo que nos virá a surgir com Trás-os-Montes e Ana. É lícito supor o contrário: que é precisamente aqui que se inscreve todo o espaço em que se vai desenrolar o trabalho artístico de António Reis – na medida em que o eixo caos-cosmos, loucura-serenidade, se afirma desde logo com uma precisão iniludível. De certo modo, todo o cinema de António Reis repete o gesto de Jaime: é uma vitória precária do cosmos sobre o caos, da harmonia sobre as trevas, da arte sobre a loucura. Se há qualquer coisa que explica a minuciosa e insensata obsessão de António Reis e Margarida Martins Cordeiro em relação aos seus filmes, isso passa seguramente por uma exigência, sempre sentida com particular acuidade, de travar o passo à desordem e à turbulência que a cada instante se insinuam ao longo das noites de cada dia.

Jaime constrói-se a partir de imagens do hospital onde Jaime Fernandes viveu grande parte da sua vida. Essas primeiras sequências são envolvidas na espessura de um silêncio sem tréguas: é a inutilidade dos passos que se dão, é a desmesura dos gestos face à paralisia do mundo, é a rotina dos dias sempre iguais acumulada no mais fundo e entranhado dos objectos de uso comum, é a tentativa de nos aproximar (cautelosamente, numa espécie de pudor e reticência) de um mundo que, por definição, se coloca sempre no interior da própria separação irredutível. Depois a música entra na imagem – e deparamos com uma constelação de referências que determina a problemática do filme: por um lado, o canto de Armstrong, interminável modulação da dor; por outro, Telleman e a recuperação de uma natureza cada vez mais vivida numa espécie de assombro (é espantoso o modo como António Reis, ao restituir o espaço rural da primeira vida de Jaime, lhe confere uma espécie de vibração alucinatória e de violência mágica); por fim, Stockhausen, através do qual se opera o cálculo do caos. É este tecido subtil, e discretamente trabalhado, que impede o filme de deslizar para qualquer das suas eventuais perversões: fosse, talvez a mais óbvia, a de uma denúncia das condições hospitalares (que está presente, mas rasurada como formulação ideológica); ou então a de uma possível tendência para equacionar em termos pesadamente teóricos a relação entre a arte, o espaço da criação e a loucura; ou ainda, embora num plano mais recuado, a possível metáfora de um destino português de clausura e impotência: louco, sim, porque «quis grandeza qual a sorte a não dá». Mas a sorte é aqui uma palavra fundamental: digamos que toda a sorte do filme se concentra na relação que Jaime teve com a sua sorte, e por isso o filme desaba sobre nós próprios e a nossa inevitável relação com a sorte que nos cabe. Como diria Maria Velho da Costa, num pequeno livro com o qual Jaime tem muito a ver, Português, trabalhador, doente mental, «o que o louco reivindica é o privilégio total que, de facto, alguns detêm, sem nenhuma razão – o psicótico é aquele que delira grandezas e bens como um direito próprio ou que se arroga poderes de crítica radicais a todo o sistema social em que está inserido – ou que desiste totalmente se não possui tudo. Por só ser e possuir demasiado pouco». Donde, «o psicótico é o indivíduo cuja consciência de estar no mundo não suporta a excessiva diferença e distanciação entre os homens (que lhe é feita)». Toda a beleza deste filme admirável de António Reis resulta de uma colocação do olhar, não num lugar de saber teórico ou num posto de combate ideológico, mas nesse interior ilimitado que é o cerne da própria distanciação entre os homens.

Eduardo Prado Coelho – Vinte Anos de Cinema português (1962–1982), 1.ª edição, págs. 62-65, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1983.

003. UM OLHAR RIGOROSO E COMOVENTE...

"(...) Mas antes do 25 de Abril, o acontecimento foi a estreia de António Reis, em Jaime, uma obra admirável que marcava o surpreendente começo de mais um grande cineasta e que viria a obter o grande prémio no Festival de Toulon.
Com Jaime, iniciou-se o prestígio internacional de António Reis que, associado à sua mulher Margarida Cordeiro, conseguiria no fim da década o maior reconhecimento internacional que um cineasta português obtivera, depois de Oliveira. O cinema português descobria o seu cineasta mais panteísta e mais telúrico, e um dos olhares mais rigorosos e comoventes jamais lançados sobre esta pobre terra".


João Bénard da Costa - "Cinema Novo Português: Revolta ou Revolução?", in Cinema Novo Português 1960/1974, págs. 42-43, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1985.

domingo, agosto 29, 2004

002.UMA BIOGRAFIA

António Reis (1927-1991)
Cineasta, poeta, pintor e escultor, foi um dos vultos mais originais e criativos do cinema português. Membro activo do Cineclube do Porto, iniciou-se na actividade cinematográfica como assistente, nomeadamente no filme Acto da Primavera, de Manoel de Oliveira. Um ano depois, em 1963, realizou o seu primeiro documentário, encomendado pela Câmara Municipal do Porto, Painéis do Porto. A Hidro-Eléctrica do Cávado é o tema de Do Rio ao Céu (1964), feito em parceria com César Guerra Leal. É ainda de âmbito meramente documental o trabalho Alto Rabagão, de 1966, ano em que assina o argumento de Mudar de Vida.
Será a média-metragem Jaime (1974) que mais virá a chamar a atenção para a sua actividade de realizador com uma linguagem cinematográfica própria, inconfundível no cinema português. O filme aborda a vida e a pintura de Jaime Fernandes, um camponês da Beira Baixa que, afectado por uma doença do foro psicológico, é internado no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, onde virá a morrer, deixando quadros que são o testemunho dum invulgar espírito criativo.
Enquanto, após Abril de 1974, alguns cineastas optaram por obras de cariz claramente revolucionário, centradas nas alterações registadas essencialmente a nível dos centros urbanos, António Reis e a sua mulher, Margarida Cordeiro, enveredaram por um cinema não-narrativo sobre elementos de cultura popular, ainda presentes (mas em vias de extinção), de locais isolados do interior de Trás-os-Montes. Trás-os-Montes (1975) foi a primeira dessas obras, a que se seguiu, dez anos depois Ana. António Reis e Margarida Cordeiro não pretenderam registar em película, "ad eternum", costumes e tradições, mas fundamentalmente denunciar o seu desaparecimento como consequência de situações que levaram ao despovoamento de certas áreas, à fuga para as cidades, à emigração, num êxodo rural forçado a que as transformações sociais pós-25 de Abril não lograram pôr fim.
Por Rosa de Areia (1989), o seu último filme, com carácter mais ficcional, perpassa uma atmosfera poética, que, embora doutra forma, nunca deixou de estar presente em toda a sua obra cinematográfica.

Autoria: Alcides Murtinheira - Centro de Língua Portuguesa / Instituto Camões - Universidade de Hamburgo.

001. BEM-VINDOS!

Este blogue é dedicado ao cineasta António Reis, à sua vida e obra.
António Reis (1927-1991) é um realizador injustamente desconhecido para muitos dos portugueses.
Foi uma personalidade à margem. Escolheu um percurso próprio, sem concessões.
É difícil falar dele com propriedade. Incomoda... mesmo para os seus admiradores é difícil passar do sentir.
Há muito que desejo reunir e divulgar, num espaço acessível a todos, o que se escreveu sobre este grande realizador do cinema português, com intuito de dar a conhecer a sua obra e despertar novos estudos.
É chegada a hora!
Colabore!

António Nunes da Costa Neves