domingo, dezembro 31, 2006

150. "TRÁS-OS-MONTES" - Textos do filme

...a nossa pequena aldeia natal não fica tão perto da fronteira, pelo contrário! A distância é tão grande que sem dúvidas jamais lá foi algum de nós: tantos são os altos planaltos desertos, tantas as vastas planícies férteis a atravessar!

E no entanto, bem mais longe que a fronteira, se é possivel comparar tais distâncias, bem mais longínqua ainda que a fronteira, ergue-se a Capital.

Dos combates da fronteira recebemos, por vezes, algumas notícias da Capital, quase nada praticamente.
Quero dizer, nós, homens do povo, porque os funcxionários do governo têm excelentes comunicações com a capital. Em dois ou três meses, somente, eles podem receber uma mensagem de lá de baixo; pelo menos a crer no que eles dizem.

É pois estranho e ainda agora me espanto de nos ver, na nossa pequena aldeia, dobrar-nos tão passivamente a todas as medidas na capital.

Para as pessoas da aldeia, a capital é ainda mais desconhecida que o próprio outro mundo! Existirá verdadeiramente uma vila a perder de vista uma casa toque noutra casa numa extenção mais vastas ainda que aquela que do alto das nossas colinas não se pode alcançar o nosso olhar, e onde entre essas casas os homens se apressem, noite e dia, cabeça contra cabeça?

Na capital, grandes reis se sucederam, dinastias inteiras se extinguiram ou ruiram, outras foram depois fundadas.
No século passado, a própria capital foi destruída; longe dela criou-se uma nova capital, depois esta foi destruída por sua veze a antiga foi reconstruída, sem que tudo tenha tido a menor repercussão sobre a nossa vida de pequena aldeia.
A nossa administração não mudou: os mais altos funcionários vêm sempre da capital, os médios, se não são de lá, pelo menos de fora; os subalternos, são conterrâneos nossos.
Nada mudou.
E nós disso nos contentávamos.

Tal é a visão que tem este povo do seu rei. Ele não sabe que rei reina agora, e mesmo o nome da dinastia permanece incerto. Nas nossas aldeias, reis há muito falecidos sobem ao trono, e aquele rei que já não vive senão na lenda, acaba por promulgar um decreto de que o padre faz a leitura aos pés do altar.
As rainhas deitadas nas suas almofadas de seda, rodeadas de cortesãos manhosos, ambiciosas e mergulhadas na lúxuria, perpretam sem cessar a mesma traição. E com o tempo que passa as suas cores avivam-se cada vez mais.

Eis o que este povo faz das suas memórias do passado; quanto às de hoje, ele confunde-as com os mortos!

O povo, no seu conjunto, ignora tudo das leis; ela ssão o segredo do pequeno grupo de nobres que nos governam.
Que suplício ser governado por leis que desconhecemos! Já não falo agora, nas diferentes interpretações que delas fazem, nem, também, nos inconvenientes da sua interpretação apenas pelo pequeno número de privilegiados e não pelo país inteiro.
A tradição diz que as leis existem, e que tenham sempre existido como um segredo confiado aos poderosos e aos nobres, apenas para seu proveito.
Mas isso não é, não pode ser senão uma velha tradição; quando muito, a sua antiguidade conferir-lhe-ia alguma autenticidade.

Essas leis que desconhecemos e que pacientemente procuramos adivinhar, desde o fundo dos tempos não são, não podem ser senhão puras imaginações.
Talvez não existam mesmo, na realidade.


Excerto da Muralha da China de Franz Kafka dito em Mirandês no filme "Trás-os-Montes". Texto retirado de M - Revista de Cinema, págs. 33-35, 4 de Junho de 1977.