036. "JAIME" - Entrevista por João César Monteiro - 1
"JAIME" DE ANTÓNIO REIS - O INESPERADO NO CINEMA PORTUGUÊS
J.C.M - Não te pergunto já quando começaste a interessar-te por cinema, mas quando pudeste começar a trabalhar no cinema?
A.R. - Começámos, no Cineclube do Porto, investigando um pouco a teoria do cinema e tentando, com a ajuda de alguns amigos, fundar a secção de cinema experimental, embora o cinema já anteriormente, me interessasse, como forma de expressão estética.
J.C.M. - E, na prática, esse empenho, digamos assim, viria a traduzir-se concretamente em quê?
A.R. – Limitámo-nos a arranjar uma câmara de 16 mm, a planificar colectivamente um determinado assunto, a ensaiar os primeiros passos na execução de um filme, mas sem responsabilidade perante ninguém, a não ser perante um espírito de grupo de trabalho. Estávamos desprotegidos. Não tínhamos incentivo nenhum. Nada. No entanto, foi uma experiência que considero decisiva.
J.C.M. – Chegaram a concluir algum filme?
A.R. - Depois de uma acção de grupo, acabou por se concretizar no Auto de Floripes. Fez-se um trabalho de recolha na região de Barroselas (Viana do Castelo).
J.C.M. – Como é que o trabalho de grupo era organizado?
A.R. – Tínhamos, como material de base, o texto do Auto, que havia sido publicado, na revista Vértice. A partir daí, fizemos uma adaptação do texto, em função do que nos parecia essencial para o seu aproveitamento cinematográfico, sem alienar o carácter da sua expressão teatral, por lado e, por outro, levando em linha de conta que a filmagem ficaria sujeita à contingência de o Auto se representar uma só vez, pela última vez, o que excluía toda e qualquer hipótese de repetição de planos. Isso implicou que a equipa fizesse algumas deslocações, a fim de se proceder a um minucioso reconhecimento geográfico da zona. Chegámos, por exemplo, a tirar medidas no terreno e a estudar o problema da colocação das câmaras de filmar, visando, um pouco como na televisão, a obtenção de uma multiplicidade de tomadas de vista e, efectivamente, trabalhámos com quatro câmaras.
Depois desses «raids» de reconhecimento, reestruturávamos todo o trabalho previamente elaborado e, um belo dia, fez-se o Auto de Floripes. A equipa partiu de véspera para Viana, tomaram-se posições estratégicas, usando duas câmaras fixas para os planos gerais e duas câmaras móveis, ao nível do estrado do palco, para não incomodar o público que assistia à representação, e para seguir os actores que se iam deslocando, o que pressupunha um conhecimento prévio do Auto e do espaço cénico e, portanto, uma montagem «a priori» que, todavia, acabou por não ser a montagem final do filme mas, de qualquer modo, era uma espécie de montagem de referência.
Não houve propriamente um criador, houve, sim um verdadeiro trabalho de equipa, com maior ou menor participação de cada um. Como te disse, foi uma experiência decisiva e bastante importante, embora, hoje em dia, não possa avaliar o resultado estético do filme. Todavia, como espírito de amor ao trabalho, como sacrifício e desinteresse de toda a gente, foi inesquecível. Foram noites e noites. Os rapazes saíam dos empregos, de actividades profissionais muito duras, e concentravam-se, até altas horas naquele trabalho. Talvez isso hoje faça rir um cineasta profissional, ou até os cineastas de Lisboa, mas eu creio que tudo se começa assim a sério na vida.
J.C.M. - Eu não sou de Lisboa e, por isso, desculpa a minha insistência, mas gostaria que detalhasses um pouco mais o que foi o vosso trabalho de reconhecimento geográfico, no que toca ao Auto de Floripes.
A.R. - Da mesma forma que nós, hoje, fazemos um trabalho de ambiências de luz, de campos focais, por exemplo, sabíamos que o tempo de representação teatral constituía um grande entrave para o tempo da «découpage» cinematográfica, sabíamos também que o Auto tinha pontos quentes, pontos fulcrais, tanto do ponto de vista teatral, como do ponto de vista de uma eventual transposição cinematográfica isenta, quanto possível, de quaisquer ambiguidades de linguagem. Isso pôs-nos quase a obrigatoriedade apriorística de não perder aquela peça de caça que era vital. Aqueles grandes movimentos coreográficos, aqueles meios planos de actores ou conjuntos de actores a considerar, já não eram, em determinados momentos, teatrais, mas cinematográficos. Nós não éramos ingénuos, já íamos a contar com um ror de problemas e, por isso o reconhecimento que fizemos foi de uma extrema utilidade. Contactámos, de igual modo, com as figuras que iam representar o Auto vimo-las no seu quotidiano. Uma era alfaiate, outra agricultor... É claro que o filme teve uma recolha muito elementar de aspectos etnográficos, podemos rir-nos com uma certa bonomia, mas isso é secundário.
J.C.M. - De qualquer forma, essa experiência deve ter sido de grande utilidade para a tua colaboração no Acto da Primavera do Manuel de Oliveira.
A.R. - Em certa medida. Algum tempo depois do nosso trabalho, na secção de cinema experimental do Cineclube do Porto, o Oliveira convidou-me para seu assistente. Fiquei um bocado espantado, mas lá fui trabalhar com ele. Contudo, sou mais tributário, aprendi mais vendo cinema e artes plásticas, do que propriamente com esse trabalho, ressalvado todo o respeito que me merece. As artes plásticas, a própria música, a própria poesia, é que me foram fundamentais. O cinema é uma arte que toca as outras artes, sem que seja uma soma delas. Há, no entanto, implicações muito grandes, e acaba por se adquirir um espírito cinematográfico que, depois, se torna independente, mas que, de facto, se apreende no comércio com as outras artes.
FALAM COM GRANDE GRAVIDADE E APENAS O ESTRITAMENTE NECESSÁRIO
J.C.M. - Os diálogos que escreveste para o Mudar de Vida do Paulo Rocha também são resultantes de uma investigação prévia?
A.R. - Nesse caso, a natureza dos diálogos deve-se primeiro, a um espírito muito conciso que tenho na poesia: o seu aspecto descarnado é também peculiar à região dos vareiros da Aforada, que eu conhecia. Havia uma certa afinidade com a maneira de falar da região porque eles falam com grande gravidade e, apenas, o estritamente necessário. Para além disso, o Paulo Rocha ia tratar um tema que eu estudara na adolescência, e isso foi determinante. Praticamente, vi sempre o diálogo na boca das pessoas. Por isso, tem muitos silêncios, muitos staccatos, uma pontuação cinematográfica. Na verdade, julgo que criei um diálogo para cinema. Com esta sorte também: é que, na expressão poética eu era muito económico e conhecedor dos vícios em que se incorreu ao utilizar o diálogo como suporte de muitos filmes e estava, por assim dizer, alertado contra esse tipo de perigos. Escrevi, porém, os diálogos com grande espontaneidade, quase sem ter tido necessidade de os retocar. Foi como se tivesse reconhecido uma disciplina, absorvido essa disciplina e sido capaz de escrever sem que ela me coarctasse. Respeitei, inclusive, o tempo que uma imagem iria ter, o espaço que envolveria, etc. Intuitivamente. Mas, por estranho que pareça, via o filme do Paulo. Com certeza, o filme que via nada tinha que ver com o filme que vi, mas esse trabalho deu-me uma grande disciplina visual.
J.C.M. - Houve algum trabalho de pesquisa de vocábulos e expressões de raiz popular?
A.R. - Não. Na Torreira não houve, mas não há diferenças de dialecto entre os habitantes da Aforada, que vieram de toda esta corda atlântica, e os da Torreira, onde o filme do Paulo se passa. Haverá, evidentemente, diferenças íntimas, mas não são do mesmo tipo que as que há, por exemplo, entre um transmontano e um alentejano. São mais do que primos; são coirmãos. E havendo, contudo, certas diferenças no campo dos instrumentos técnicos, por exemplo - não posso avaliar bem - há uma grande afinidade vocabular. E há a presença do mar. São os mesmos gestos largos, a mesma violência da vida, a mesma contingência, o mesmo furor na paixão. Quando o Paulo me falou, aceitei redigir o diálogo, porque ia falar de uma coisa que tinha vivido, nesse período disponível do sonho que a adolescência é. Andei com os vareiros durante muitos anos, no mar, nas bateiras, nas traineiras, e isso deu-me uma experiência muito fecunda. Falava como eles. Ainda hoje sou capaz de lhes imitar a fala e, sobre eles, escrevi um livro que nunca publiquei e suponho que está destruído. Foi uma grande lição para mim. Se o Paulo me tivesse pedido o diálogo de um filme passado em Lisboa, certamente eu não lho faria. Nessa altura, pelo menos. Havia uma realidade humana fundamental e, na medida em que a linguística nos trouxe, hoje em dia, uma tão grande responsabilidade acho que, mais do que nunca, é preciso ser-se profundamente sério na adesão a um diálogo. Não só por respeito pela linguística como por respeito pelo cinema. Tem-se sido profundamente gratuito nisso. Eu próprio gostaria de voltar a repensar todo o diálogo que escrevi, em função do filme. Gostaria de aprender com os erros que cometi.
ESTÁ LÁ O MESMO «QUE», O MESMO «SE», MAS...
J.C.M. - O que é que pensas do português que se fala no Acto da Primavera?
A.R. - Penso que não é o português de Trás-os-Montes. Tenho uma certa dificuldade em explicar isso, mas é uma espécie de... e, de preferência, gostaria de fazer uma verificação prática. É uma pergunta a que te poderia responder se revisse o filme, se relesse o texto, mas a impressão que tenho é que, embora representado pelo povo - o que não quer dizer nada - é uma representação de coisas que não são populares. Possui uma carga erudita ou pseudo-erudita, uma carga paroquiana e literária que, na dicção, sofre uma transposição em tudo semelhante à que sofre um quadro erudito tratado por um pintor popular, mas aqueles homens não falam o transmontano que, a mim, me interessa. Nem o arcaico, nem o actual. Claro que está lá o mesmo «que», o mesmo «se», estão lá tiradas que o povo dirá hoje quotidianamente, mas...
De resto, basta fazer um contraponto entre o que o texto tem e a maneira como eles falam, e a grande tradição da poesia oral ou escrita da Idade Média, por exemplo, para saber onde está a contrafacção evidente. Terá algumas coisas autênticas, mas não é um castanheiro, nem Terra Alta, nem Terra Baixa. O que estou a dizer é um bocado polémico e talvez faça sorrir, mas presumo que comprovava com segurança o que estou a dizer, se me desafiassem a prová-lo. Isto é um bocadinho improvisado, mas creio que não terá sido por má vontade que o Rodrigues Miguéis atacou o texto, até porque não era questão disso. O Manuel de Oliveira foi profundamente honesto no que fez e lutou muito para poder fazer o filme, como todos nós lutamos por qualquer coisa a sério, mas o texto talvez nos não mereça um respeito por aí além. Nem pelo facto de ser representado pelo povo nem por se integrar numa tradição que se vai mantendo, mais ou menos pseudomisticamente, como uma espécie de quisto cravado na província.
J.C.M. - POis, mas não há dúvida que a influência da Igreja nos meios rurais é avassaladora.
A.R. - Isso é nítido, mas se quisermos ir a raízes muito mais fundas, estou convencido que a influência que tem em «Trás-los-Montes» é, como em qualquer outra parte, episódica. Doa a quem doer.
J.C.M. - Não achas, porém, que o carácter impositivo de uma dada linguagem pode ser subvertido pelo simples facto de a sua representação fonética, gestual, etc. se produzir, ainda que em moldes repressivos, no contexto de uma classe para a qual não era, de início, destinado?
A.R. - Eu diria até que eles vão muitíssimo longe, pronunciando e dizendo aquele texto. De resto, para os que não representvam habitualmente o Auto e que o Oliveira seleccionou para os principais papéis (é, por exemplo, o caso do Nicolau que fazia, no filme, o papel de Cristo) a rodagem foi uma aprendizagem extremamente árdua. Assisti ao esforço dos actores e ao esforço do realizador a exigir-lhes a modelação, a expressão fonética, etc. É obvio que, não obstante esse trabalho sobre os actores, o acento local subsistiu quanto a pronúncia, mas não quanto a construção linguística e atávica.
J.C.M. - Todavia, o plano em que a mãe do Cristo canta, com todo o peso litúrgico da ladainha, aquele canto espantoso «ai dolor», disse-me mais de Trás-os-Montes, deste País inteiro, qua a mais eloquente reportagem tomada «sobre o vivo».
A.R. - Isso é muito bonito. E aquele travelling dos dois Apóstolos, o Pedro e o João, também. Mas repara: já vais buscar um «ai dolor, ai dolor» que nos leva para muito de autêntico, na nossa poesia, e na nossa tradição. Aí com uma carga mística, etc. mas, na realidade, quando a gente fala em «ai dolor», talvez não esteja longe de uma raiz de linguagem autêntica e das cantigas de amigo. Mas quanto à outra carga retórica e essa espécie de paramentos verbais... Claro pode ser aproveitado como um factor de retórica e de eloquência que a arte, noutros tempos, também soube utilizar magnificamente, mas é falível... depende do realizador, e do aproveitamento que le faz.
J.C.M. - O Oliveira deixa-se, por vezes, embalar na fascinação do texto. É atraído por uma certa musicalidade (não confundir com espírito da música), pelo lado bem soante da palavra, e não limpa o texto de elementos espúricos.
A.R. - O texto foi respeitado porque isso lhe interessava para a expressão patética e, até, literária e mística. O filme - que é essencialmente românico - passa de românico a gótico, precisamente nessas fases mais de trombeta e mais eloquentes. Há, no Acto da Primavera, um hibridismo que é jogado nesse sentido. Aliás, falámos uma vez acerca disso e o Oliveira concordou plenamente.
(Continua)
Entrevista de João César Monteiro a António Reis, publicada no Cinéfilo, n.º 29, págs. 23-32, de 20 de Abril de 1974, a propósito da estreia de "Jaime".