quinta-feira, setembro 30, 2004

036. "JAIME" - Entrevista por João César Monteiro - 1

"JAIME" DE ANTÓNIO REIS - O INESPERADO NO CINEMA PORTUGUÊS

J.C.M - Não te pergunto já quando começaste a interessar-te por cinema, mas quando pudeste começar a trabalhar no cinema?
A.R. - Começámos, no Cineclube do Porto, investigando um pouco a teoria do cinema e tentando, com a ajuda de alguns amigos, fundar a secção de cinema experimental, embora o cinema já anteriormente, me interessasse, como forma de expressão estética.
J.C.M. - E, na prática, esse empenho, digamos assim, viria a traduzir-se concretamente em quê?
A.R. – Limitámo-nos a arranjar uma câmara de 16 mm, a planificar colectivamente um determinado assunto, a ensaiar os primeiros passos na execução de um filme, mas sem responsabilidade perante ninguém, a não ser perante um espírito de grupo de trabalho. Estávamos desprotegidos. Não tínhamos incentivo nenhum. Nada. No entanto, foi uma experiência que considero decisiva.
J.C.M. – Chegaram a concluir algum filme?
A.R. - Depois de uma acção de grupo, acabou por se concretizar no Auto de Floripes. Fez-se um trabalho de recolha na região de Barroselas (Viana do Castelo).
J.C.M. – Como é que o trabalho de grupo era organizado?
A.R. – Tínhamos, como material de base, o texto do Auto, que havia sido publicado, na revista Vértice. A partir daí, fizemos uma adaptação do texto, em função do que nos parecia essencial para o seu aproveitamento cinematográfico, sem alienar o carácter da sua expressão teatral, por lado e, por outro, levando em linha de conta que a filmagem ficaria sujeita à contingência de o Auto se representar uma só vez, pela última vez, o que excluía toda e qualquer hipótese de repetição de planos. Isso implicou que a equipa fizesse algumas deslocações, a fim de se proceder a um minucioso reconhecimento geográfico da zona. Chegámos, por exemplo, a tirar medidas no terreno e a estudar o problema da colocação das câmaras de filmar, visando, um pouco como na televisão, a obtenção de uma multiplicidade de tomadas de vista e, efectivamente, trabalhámos com quatro câmaras.
Depois desses «raids» de reconhecimento, reestruturávamos todo o trabalho previamente elaborado e, um belo dia, fez-se o Auto de Floripes. A equipa partiu de véspera para Viana, tomaram-se posições estratégicas, usando duas câmaras fixas para os planos gerais e duas câmaras móveis, ao nível do estrado do palco, para não incomodar o público que assistia à representação, e para seguir os actores que se iam deslocando, o que pressupunha um conhecimento prévio do Auto e do espaço cénico e, portanto, uma montagem «a priori» que, todavia, acabou por não ser a montagem final do filme mas, de qualquer modo, era uma espécie de montagem de referência.
Não houve propriamente um criador, houve, sim um verdadeiro trabalho de equipa, com maior ou menor participação de cada um. Como te disse, foi uma experiência decisiva e bastante importante, embora, hoje em dia, não possa avaliar o resultado estético do filme. Todavia, como espírito de amor ao trabalho, como sacrifício e desinteresse de toda a gente, foi inesquecível. Foram noites e noites. Os rapazes saíam dos empregos, de actividades profissionais muito duras, e concentravam-se, até altas horas naquele trabalho. Talvez isso hoje faça rir um cineasta profissional, ou até os cineastas de Lisboa, mas eu creio que tudo se começa assim a sério na vida.
J.C.M. - Eu não sou de Lisboa e, por isso, desculpa a minha insistência, mas gostaria que detalhasses um pouco mais o que foi o vosso trabalho de reconhecimento geográfico, no que toca ao Auto de Floripes.
A.R. - Da mesma forma que nós, hoje, fazemos um trabalho de ambiências de luz, de campos focais, por exemplo, sabíamos que o tempo de representação teatral constituía um grande entrave para o tempo da «découpage» cinematográfica, sabíamos também que o Auto tinha pontos quentes, pontos fulcrais, tanto do ponto de vista teatral, como do ponto de vista de uma eventual transposição cinematográfica isenta, quanto possível, de quaisquer ambiguidades de linguagem. Isso pôs-nos quase a obrigatoriedade apriorística de não perder aquela peça de caça que era vital. Aqueles grandes movimentos coreográficos, aqueles meios planos de actores ou conjuntos de actores a considerar, já não eram, em determinados momentos, teatrais, mas cinematográficos. Nós não éramos ingénuos, já íamos a contar com um ror de problemas e, por isso o reconhecimento que fizemos foi de uma extrema utilidade. Contactámos, de igual modo, com as figuras que iam representar o Auto vimo-las no seu quotidiano. Uma era alfaiate, outra agricultor... É claro que o filme teve uma recolha muito elementar de aspectos etnográficos, podemos rir-nos com uma certa bonomia, mas isso é secundário.
J.C.M. - De qualquer forma, essa experiência deve ter sido de grande utilidade para a tua colaboração no Acto da Primavera do Manuel de Oliveira.
A.R. - Em certa medida. Algum tempo depois do nosso trabalho, na secção de cinema experimental do Cineclube do Porto, o Oliveira convidou-me para seu assistente. Fiquei um bocado espantado, mas lá fui trabalhar com ele. Contudo, sou mais tributário, aprendi mais vendo cinema e artes plásticas, do que propriamente com esse trabalho, ressalvado todo o respeito que me merece. As artes plásticas, a própria música, a própria poesia, é que me foram fundamentais. O cinema é uma arte que toca as outras artes, sem que seja uma soma delas. Há, no entanto, implicações muito grandes, e acaba por se adquirir um espírito cinematográfico que, depois, se torna independente, mas que, de facto, se apreende no comércio com as outras artes.

FALAM COM GRANDE GRAVIDADE E APENAS O ESTRITAMENTE NECESSÁRIO

J.C.M. - Os diálogos que escreveste para o Mudar de Vida do Paulo Rocha também são resultantes de uma investigação prévia?
A.R. - Nesse caso, a natureza dos diálogos deve-se primeiro, a um espírito muito conciso que tenho na poesia: o seu aspecto descarnado é também peculiar à região dos vareiros da Aforada, que eu conhecia. Havia uma certa afinidade com a maneira de falar da região porque eles falam com grande gravidade e, apenas, o estritamente necessário. Para além disso, o Paulo Rocha ia tratar um tema que eu estudara na adolescência, e isso foi determinante. Praticamente, vi sempre o diálogo na boca das pessoas. Por isso, tem muitos silêncios, muitos staccatos, uma pontuação cinematográfica. Na verdade, julgo que criei um diálogo para cinema. Com esta sorte também: é que, na expressão poética eu era muito económico e conhecedor dos vícios em que se incorreu ao utilizar o diálogo como suporte de muitos filmes e estava, por assim dizer, alertado contra esse tipo de perigos. Escrevi, porém, os diálogos com grande espontaneidade, quase sem ter tido necessidade de os retocar. Foi como se tivesse reconhecido uma disciplina, absorvido essa disciplina e sido capaz de escrever sem que ela me coarctasse. Respeitei, inclusive, o tempo que uma imagem iria ter, o espaço que envolveria, etc. Intuitivamente. Mas, por estranho que pareça, via o filme do Paulo. Com certeza, o filme que via nada tinha que ver com o filme que vi, mas esse trabalho deu-me uma grande disciplina visual.
J.C.M. - Houve algum trabalho de pesquisa de vocábulos e expressões de raiz popular?
A.R. - Não. Na Torreira não houve, mas não há diferenças de dialecto entre os habitantes da Aforada, que vieram de toda esta corda atlântica, e os da Torreira, onde o filme do Paulo se passa. Haverá, evidentemente, diferenças íntimas, mas não são do mesmo tipo que as que há, por exemplo, entre um transmontano e um alentejano. São mais do que primos; são coirmãos. E havendo, contudo, certas diferenças no campo dos instrumentos técnicos, por exemplo - não posso avaliar bem - há uma grande afinidade vocabular. E há a presença do mar. São os mesmos gestos largos, a mesma violência da vida, a mesma contingência, o mesmo furor na paixão. Quando o Paulo me falou, aceitei redigir o diálogo, porque ia falar de uma coisa que tinha vivido, nesse período disponível do sonho que a adolescência é. Andei com os vareiros durante muitos anos, no mar, nas bateiras, nas traineiras, e isso deu-me uma experiência muito fecunda. Falava como eles. Ainda hoje sou capaz de lhes imitar a fala e, sobre eles, escrevi um livro que nunca publiquei e suponho que está destruído. Foi uma grande lição para mim. Se o Paulo me tivesse pedido o diálogo de um filme passado em Lisboa, certamente eu não lho faria. Nessa altura, pelo menos. Havia uma realidade humana fundamental e, na medida em que a linguística nos trouxe, hoje em dia, uma tão grande responsabilidade acho que, mais do que nunca, é preciso ser-se profundamente sério na adesão a um diálogo. Não só por respeito pela linguística como por respeito pelo cinema. Tem-se sido profundamente gratuito nisso. Eu próprio gostaria de voltar a repensar todo o diálogo que escrevi, em função do filme. Gostaria de aprender com os erros que cometi.

ESTÁ LÁ O MESMO «QUE», O MESMO «SE», MAS...

J.C.M. - O que é que pensas do português que se fala no Acto da Primavera?
A.R. - Penso que não é o português de Trás-os-Montes. Tenho uma certa dificuldade em explicar isso, mas é uma espécie de... e, de preferência, gostaria de fazer uma verificação prática. É uma pergunta a que te poderia responder se revisse o filme, se relesse o texto, mas a impressão que tenho é que, embora representado pelo povo - o que não quer dizer nada - é uma representação de coisas que não são populares. Possui uma carga erudita ou pseudo-erudita, uma carga paroquiana e literária que, na dicção, sofre uma transposição em tudo semelhante à que sofre um quadro erudito tratado por um pintor popular, mas aqueles homens não falam o transmontano que, a mim, me interessa. Nem o arcaico, nem o actual. Claro que está lá o mesmo «que», o mesmo «se», estão lá tiradas que o povo dirá hoje quotidianamente, mas...
De resto, basta fazer um contraponto entre o que o texto tem e a maneira como eles falam, e a grande tradição da poesia oral ou escrita da Idade Média, por exemplo, para saber onde está a contrafacção evidente. Terá algumas coisas autênticas, mas não é um castanheiro, nem Terra Alta, nem Terra Baixa. O que estou a dizer é um bocado polémico e talvez faça sorrir, mas presumo que comprovava com segurança o que estou a dizer, se me desafiassem a prová-lo. Isto é um bocadinho improvisado, mas creio que não terá sido por má vontade que o Rodrigues Miguéis atacou o texto, até porque não era questão disso. O Manuel de Oliveira foi profundamente honesto no que fez e lutou muito para poder fazer o filme, como todos nós lutamos por qualquer coisa a sério, mas o texto talvez nos não mereça um respeito por aí além. Nem pelo facto de ser representado pelo povo nem por se integrar numa tradição que se vai mantendo, mais ou menos pseudomisticamente, como uma espécie de quisto cravado na província.
J.C.M. - POis, mas não há dúvida que a influência da Igreja nos meios rurais é avassaladora.
A.R. - Isso é nítido, mas se quisermos ir a raízes muito mais fundas, estou convencido que a influência que tem em «Trás-los-Montes» é, como em qualquer outra parte, episódica. Doa a quem doer.
J.C.M. - Não achas, porém, que o carácter impositivo de uma dada linguagem pode ser subvertido pelo simples facto de a sua representação fonética, gestual, etc. se produzir, ainda que em moldes repressivos, no contexto de uma classe para a qual não era, de início, destinado?
A.R. - Eu diria até que eles vão muitíssimo longe, pronunciando e dizendo aquele texto. De resto, para os que não representvam habitualmente o Auto e que o Oliveira seleccionou para os principais papéis (é, por exemplo, o caso do Nicolau que fazia, no filme, o papel de Cristo) a rodagem foi uma aprendizagem extremamente árdua. Assisti ao esforço dos actores e ao esforço do realizador a exigir-lhes a modelação, a expressão fonética, etc. É obvio que, não obstante esse trabalho sobre os actores, o acento local subsistiu quanto a pronúncia, mas não quanto a construção linguística e atávica.
J.C.M. - Todavia, o plano em que a mãe do Cristo canta, com todo o peso litúrgico da ladainha, aquele canto espantoso «ai dolor», disse-me mais de Trás-os-Montes, deste País inteiro, qua a mais eloquente reportagem tomada «sobre o vivo».
A.R. - Isso é muito bonito. E aquele travelling dos dois Apóstolos, o Pedro e o João, também. Mas repara: já vais buscar um «ai dolor, ai dolor» que nos leva para muito de autêntico, na nossa poesia, e na nossa tradição. Aí com uma carga mística, etc. mas, na realidade, quando a gente fala em «ai dolor», talvez não esteja longe de uma raiz de linguagem autêntica e das cantigas de amigo. Mas quanto à outra carga retórica e essa espécie de paramentos verbais... Claro pode ser aproveitado como um factor de retórica e de eloquência que a arte, noutros tempos, também soube utilizar magnificamente, mas é falível... depende do realizador, e do aproveitamento que le faz.
J.C.M. - O Oliveira deixa-se, por vezes, embalar na fascinação do texto. É atraído por uma certa musicalidade (não confundir com espírito da música), pelo lado bem soante da palavra, e não limpa o texto de elementos espúricos.
A.R. - O texto foi respeitado porque isso lhe interessava para a expressão patética e, até, literária e mística. O filme - que é essencialmente românico - passa de românico a gótico, precisamente nessas fases mais de trombeta e mais eloquentes. Há, no Acto da Primavera, um hibridismo que é jogado nesse sentido. Aliás, falámos uma vez acerca disso e o Oliveira concordou plenamente.

(Continua)

Entrevista de João César Monteiro a António Reis, publicada no Cinéfilo, n.º 29, págs. 23-32, de 20 de Abril de 1974, a propósito da estreia de "Jaime".

quarta-feira, setembro 29, 2004

035. "JAIME" - Texto de João César Monteiro

[Estreia]

Tudo começou um pouco antes do Natal. O Fernando Lopes encomendou-me uma reportagem sobre um tipo que acabara um filme chamado Jaime, e é natural, tudo o indica, que eu tenha pensado o que qualquer português que se preza pensaria em idênticas circunstâncias: outra estopada para eu, qual pequeno, vil Tartufo, exercitar a gentileza.
Conhecem o dom dos derviches? Eu, o que se alimenta da própria e da cegueira alheia, não. O da conjectura, sim. Assim: um tipo, pobre diabo, é internado num hospício, enfiam-lhe (terapêutica ocupacional, dizem) umas tintas e um pincel nas unhas e, anualmente, com o velado epíteto de «arte de louco», expõem-lhe os trabalhos, promovem tômbolas, o que, para além de prestigiar o estabelecimento e fazer jus aos mais modernos tratamentos (de choque) que por lá se gastam, serve também para que uns magros patacos revertam em benefício do internado indigente: cigarritos, fardinha, alpargatas novas – doces caracóis da caridade. De Jaime, portanto, eu sabia o que se sabia para que, como nos contos de fadas, a surpresa pudesse ser total e milagrosa: um filme sobre a «pintura» de um tipo que, durante muito tempo viveu num hospício e por lá se finou.
É evidente que um assunto destes dá para tudo, sobretudo para especulações de feirantes, dificilmente para um filme com um mínimo de interesse, mais dificilmente ainda, em esta sucessão de rarefacções, para um grande filme. Entenda-se: um filme em que a severa vigilância ética nunca se separa da permanente invenção estética e, por via da feroz manutenção desse disciplinado equilíbrio, que não é só o da obstinação mas também, e sobretudo, o desse pleno voo da inteligência a que se dá o nome de capacidade poética, projecta, no espaço que é da história, o corpo, da sua própria vidência, feita de um novo furor e mistério.
E que sabia eu de António Reis? Que escrevera os diálogos de, já tão longínquo, Mudar de Vida, de Paulo Rocha? Que publicara dois (ou mais?) livros de poemas (Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos) que nunca li? Que nasceu no Porto e por lá viveu até há pouco, o que, ainda por cima, não era, antes pelo contrário, nenhuma recomendação especial, sabido como é que o Porto já deu o cineasta que tinha a dar e, como se isso não fosse já bastante, houve ainda que honrá-lo como instituição cinematográfica à lusa escala?
É certo que, na fria tarde de Dezembro em que me dirigi para a sala de projecção da Tóbis, fui recebido pela mais cândida e afável criatura que deve existir sobre a face deste taciturno planeta, mas só me dei conta da exacta dimensão dessas qualidades (e digo isto com o pressentimento de quão terríveis devem ser as manifestações do seu avesso), após ter visto o filme, como se o filme fosse afinal o único revelador possível e sem equívoco dessa tão veemente e natural explosão de humana grandeza.
Estou a falar de António Reis e do dia em que o conheci e que, por acaso profissional, coincidiu com a primeira vez que vi Jaime, quanto a mim, um dos mais belos filmes da história do cinema, ou, se preferem: uma etapa decisiva e original do cinema moderno, obrigatório ponto de passagem para quem, neste ou noutro país, quiser continuar a prática de um certo cinema, o cinema que só tolera e reconhece a sua própria austera e radical intransigência.
Neste sentido, creio que, numa altura em que os dados do cinema português estão a ser, se o não foram já, jogados, o surgimento de António Reis pode ser fundamental, tão fundamental como o enxerto de um coração novo num enfermo agonizante.
De facto, num meio mais do que minado por factores corruptos e já quase sem defesas contra a invasão imunda da rataria oportunista, António Reis pode, por um lado, pontuar exemplarmente a altitude moral a que nos obriga a nossa responsabilidade de cineastas e, por outro, suscitar um tipo de reflexão e discussão que torne algum cinema português mais próximo de formas de cultura de expressão genuína, e nascidas do duro conflito capaz de as desvincular de pesadas e sufocantes heranças ideológicas, o que nada tem a ver, Deus me livre, com o chavão muito em voga, e que não significa nada que sentido faça, de que «são precisos filmes que falem da realidade portuguesa».
Não é fácil, todos nós o sabemos, mas se assim não for, e, parafraseando o que Reis diz, algures, na entrevista que se segue, é preferível que chovam raios e coriscos e desabe uma porcela que tudo leve.


João César Monteiro - Cinéfilo, n.º 29, págs. 22, 20 de Abril de 1974.

Este texto de João César Monteiro é a introdução a uma longa entrevista (a inserir nos próximos posts) que aquele cineasta fez a António Reis, para a revista "Cinéfilo", a propósito da estreia de "Jaime".
Esta entrevista foi-nos sugerida por António José Martins, a quem agradecemos a colaboração. Já agora, António: não conheço o "livrinho bastante interessante" de João Lopes, editado por ocasião da estreia de "Trás-os-Montes". Se conseguir mais dados, agradeço que me contacte.
Muito obrigado por tudo!

segunda-feira, setembro 27, 2004

034. "JAIME" - anúncio da estreia

MAIS UMA OFERTA DO CINÉFILO PARA OS ASSINANTES - JAIME DE ANTÓNIO REIS E PEREGRINAÇÃO INTERIOR DE ROBERT BRESSON EM ANTESTREIA NO SATÉLITE

Desta vez somos nós a dar cartas! Tal como prometíamos no último número, voltamos a falar de António Reis e do seu filme Jaime que alguns eleitos já viram (entre os quais se conta a gente desta casa) e que juram (juramos) ser das coisas importantes que se viram nos limites geográficos desta terra em matéria de cinema. É altura de avançar do que se trata. Jaime (uma média metragem com cerca de 40 minutos), evocação da figura de um trabalhador rural que passou os últimos 30 anos da sua vida internado no Hospital Miguel Bombarda e de quem António Reis descobriu uma intensa obra plástica feita nos últimos anos da sua vida, será finalmente estreado em Lisboa no cinema Satélite juntamente com com o filme de Robert Bresson, também muito esperado, Au Hazard Balthazar, que em português se chamará Peregrinação Interior. A distribuição é do Animatógrafo e apesar da data de estreia não se poder, no entanto, precisar, uma coisa é certa: será o próximo programa do Satélite logo que o filme de Oshima, A Cerimónia Solene, saia do cartaz.
Mas, se esta é uma boa notícia, para toda a gente, para os assinantes reservamos uma que é óptima. Cinéfilo, de acordo com a firma Animatógrafo e o respectivo cinema, tem desde já assegurada uma antestreia em data a anunciar no próximo número com os filmes de Reis e de Bresson, filmes para os quais estamos já a preparar um número especial (o próximo precisamente) e dos quais falaremos com certeza durante alguns números, tal o interesse e a polémica que qualquer dos filmes vais suscitar.
Se já é assinante, os nossos parabéns. Se não é, siga o nosso conselho porque cada vez teremos mais coisas para si. E por agora, aconselhamos-lhes um pouco de paciência e atenção ao número 29!

Não assinado - Cinéfilo, n.º 28, pág. 3, 13 de Abril de 1974.

sexta-feira, setembro 24, 2004

033. "JAIME" - Crítica de Augusto Abelaira

Jaime

Todas as pessoas nascem. E em algum sítio, evidentemente. Mas aí está: de quantas pessoas que conheço sei eu onde nasceram? Por exemplo: Eugénio de Andrade, Cardoso Pires, Cargaleiro. Terão nascido em Lisboa? No Porto? Ora bem; aproveitando o aniversário do seu jornal, António Paulouro levou duas boas centenas de amigos ao Fundão e respondeu-lhes: nasceram por estas bandas... Sabiam?
Mas de muitas outras pessoas não só ignoramos onde nasceram, como ignoramos até que nasceram. Um caso, tirado dos mais recentes quatro mil milhões de habitantes do nosso planeta: Jaime Fernandes. E deste homem, que nem sequer sabíamos que tinha nascido, ficámos a saber, nós os que fomos ao Fundão, que era da Beira-Baixa.
Somente? Não: graças a uma espantosa média-metragem que lá foi projectada, e que veremos proximamente em Lisboa, ficámos também a saber que Jaime Fernandes morreu em 1969, depois de trinta anos de internamento no Hospital Miguel Bombarda. Um louco, portanto? Decerto. Mais um poeta que escrevia versos assim: «Animais como retratos de príncipes». E que pintava como... Vejam o filme. Ele vos mostrará como Jaime Fernandes pintava.
Meus senhores: acaba de nascer, cinco anos depois de ter morrido, um grande artista português. Um? Dois. O outro é o cineasta António Reis a quem temos de agradecer, portanto, dois (re)nascimentos: o Jaime Fernandes e o seu próprio. Que felicidade!

Augusto Abelaira - jornal O Século, 29 de Janeiro de 1974

032. "JAIME" - um filme pronto a estrear

A média metragem «Jaime», realizada pelo poeta António Reis, está pronta a estrear. Produzida pelo Centro Português de Cinema, subsidiado pela Fundação Gulbenkian, e pela Telecine Moro, o filme, de 35 mm, a cores tem a duração aproximada de 40 minutos.
As filmagens decorreram na freguesia de Barco, na Covilhã e no Hospital Miguel Bombarda. Não se trata de um documentário ou biografia animada. «É ficção (?) baseada no caso concreto de um esquizofrénico-paranóico, trabalhador rural, hospitalizado 31 anos e que, dos 65 aos 69 anos, arrancou uma obra genial de que a maior parte, para castigo nosso se perdeu» - informou-nos o poeta António Reis.
«Também não é um filme de artes plásticas - acrescentou. É o Jaime um homem preso entre a memória e a imaginação, livre, apesar de prisioneiro da doença...».
A média metragem (feita sobre a obra pictórica de Jaime Fernandes) teve como director de produção, H. Espírito Santo; director de fotografia, Acácio de Almeida; assistente de imagem, Carlos Mena; iluminador, João Silva; director de truca, Armando Ferreira; operador de som, João Diogo; Estúdio de som: Valentim de Carvalho; laboratório, Tóbis Portuguesa; planos sonoros de Armstrong; Stockhausen e Teleman. Gráficos: António Barata e Herlander Egídio de Sousa. Colaboração de Evangelina Gil Delgado e Filhos. Assistente de som e montagem: M. Martins Cordeiro. A realização, o som e a montagem são de António Reis.
A primeira exibição do filme é aguardada com muito interesse nos meios intelectuais.

Não assinado - Celulóide, n.º 192, pág. 10, Dezembro de 1973

terça-feira, setembro 21, 2004

031. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Jorge Leitão Ramos

É, provavelmente, o mais saudado dos filmes portugueses dos anos 70, em Portugal como no estrangeiro. Acto de amor por um povo, por uma terra, por uma cultura, Trás-os-Montes grava, indelevelmente, os sinais de uma resistência secular, as pedras, as lendas, os rostos, de um Nordeste onde outro espaço civilizacional se perfila.
Nem documentário nem filme de ficção, Trás-os-Montes escolhe a globalidade constituindo-se em obra aberta, capaz de fundir os elementos dessas duas «correntes» do cinema.
Tecnicamente não tem uma qualidade que correspondesse ao rigor artístico com que imagem, som e montagem são trabalhados. E é pena. Porque aí se constitui o único «senão» de um filme que merece o qualificativo de genial, adjectivo gasto, é certo, mas que aqui encontra perfeito cabimento.
Por uma vez, no cinema que se faz em Portugal, um filme é um olhar na cabeça do poeta.

Jorge Leitão Ramos - Dicionário do Cinema Português 1962/88, pág. 387, Editorial Caminho, Lisboa, 1989.

segunda-feira, setembro 20, 2004

030. "TRÁS-OS-MONTES" - rodagem



Aqui deixo, para desanuviar um pouco o "ar pesado" do blogue, uma curiosa foto de rodagem do filme "Trás-os-Montes" de António Reis e Margarida Cordeiro.

domingo, setembro 19, 2004

029. IL DILUVIO E IL TEMPO DEI SOGNI - Francesco Pitassio

«Da bambino, vedendo la pioggia aumentare e una luce gialla sul fondo del cielo, avevo paura di un nuovo dilúvio».
(A. Reis)


L’opera di Antonio Reis e Margarida Cordeiro, contenuta nell’arco di soli quindici anni e di quattro titoli, ha il carattere perentorio di un’affermazione unica e peculiare, di un idiolecto refractario a qualunque facile riduzione geografica, nazionale, storiografica. Quei quattro titoli – Jaime (1974), Trás-os-Montes (1976), Ana (1982) e Rosa de Areia (1989) – dipanano il filo di un discorso talmente personale e così poço individuale da costituire un’isola distante anche dall’arcipelago portoghese, in cui le parentele indirette sono maggiori delle filiazioni. L’iscrizione di questa esperienza radicale nel quadro portoghese, del cinema moderno o di quello di autore, non offre molto di pie di un palliativo allo stupore ed al mistero che scaturiscono dalla visione di queste partiture di una forza evidente, la cui composizione tuttavia sfugge all’aggressione analítica. Non sismo nei paraggi del cinema classico, che Reis notoriamente poco amava, né del fulgido neoclassicismo che informa l’opera di Botelho, e neppure del cinema impuro praticato diversamente da Rocha o César Monteiro. Piuttosto, la sensazione è quella di essere in presenza di una parola autónoma, singolare, indeclinabile altrimenti che in qull’idioletto. In tale carateristica, questi quattro film rivelano la propria natura di cinema minore: «La deterritorializzazione della lengua, l’innesto dell’individuale sull’inmediato-politico, il concatenamento collettivo di enunciazione» (1), un cinema ed un rapporto con il popolare ricercato diversamente e in terre lontane da cineasta inassimilabili tra loro: Vachek, Sokurov, Paradžanov… Qui si tratta della reinvenzione di una gramática propria ed esclusiva, a partire dai piu comuni procedimenti sintattici; del valore politico e generalizzato delle singole esperienze, dalla storia del pittore psicolabile Jaime ai poemi dedicati alla regione di Trás-os-Montes; della forza collettiva, del carattere popolare della trilogía su Trás-os-Montes. Per questo nella lavorazione del film omonimo le persone «avevano lavorato gratis, con paghe simboliche che alcuni non avevano neppure voluto» (2).
Per lo stesso motivo i film di Reis/Cordeiro sono così distanti dalla lingua comune, ma solidamente ancorati in un territorio, quella regione del Portogallo del Nord visitata negli stessi anni anche da João César Monteiro (Veredas, 1976), António Campos (Falamos de Rio de Onor, 1975), Noémia Delgado (Máscaras, 1977), Leonel Brito (Gente do Norte, 1977). Ma quanto in Veredas divienne immenso serbatoio di motivi narrativi e iconografici, con quel gusto demiurgico del pastiche tipico di César Monteiro, per Reis e Cordeiro è piuttosto una stratificazione geologica, un accumulo naturale e culturale non disponibile alla decorticazione di qualsivogli racconto. Trás-os-Montes infatti si apre con una lentissima panoramica sugli strati di una roccia, fino a trovare un’iscrizione runica: tra gli uni e l’altra nessuna distinzione, compresenti e significativi (3). Il rapporto con questa terra, perciò, prende in considerazione tanto i gesti atavici e ricorrenti della sua popolazione, per i quali il piano medio e la figura intera appaiono i più consoni a garantire l’evidenza dell’atto, quanto l’immensità del paesaggio nel quale sono immersi, attraverso la potenza di piani monocromi su un campo o una roccia, o su un personaggio in campo lunghissimo, perso nella soverchiante presenza del proprio territorio. Questi piani si ritrovano in tutta la trilogia di Trás-os-Montes, e in parte in un film eccentrico come Jaime. Questo lembo di terra diviene un micocosmo sperimentale, un luogo concreto con valore universale in cui le generazioni, le culture, l’uomo e il territorio, le epoche storiche solidarizzano: per questo motivo in Trás-os-Montes due pastorelli compiono un improvviso salto temporale, destinato a rimanere inspiegato, Ana comincia con una nascita e termina con un decesso, e in Rosa de Areia le figlie parlano con il padre morto. Perciò, in una sequenza di patente levità di Rosa de Areia, i bambini e due fisici discutono di fisica quantica e giocano con la trottola: «Il cosmo è tutto ciò che esiste», sostengono... Di qui anche l’animismo che l’ex-allievo Pedro Costa attribuisce al maestro Antonio Reis (4). Una sensualità manifesta anche nel rapporto con l’acqua, fluente e scrosciante da un film all’altro, dalla fontana di Jaime, «la seul image de la vie» (5), al torrente di Ana. Altra cosa dall’acqueo di César Monteiro, inevitabilmente coincidente con la sessualità, da Silvestre (1981) a Le nozze di Dio (1999), e di Rocha in O rio do ouro (1998), nel quale fiabesco e naturale si fondono, l’acqua nei film di Reis/Cordeiro rimanda ad un identico fluire, quello del tempo, scorrimento inarrestabile ed indistinto, nel quale sola emerge la vita delle forme (6). E la forma circolare insistita lungo tutto Rosa de Areia, quesito irrisolto: un circolo identico a aquello dell’istituzione manicomiale di Jaime, bucata solamente dall’ingresso di uno sguardo, e allo spazio di Trás-os-Montes. L’uscita dal circolo nel quale le forme si succedono coincide con la fine del fine del film, con il vertiginoso carrello in avanti di Jaime e con il treno che si perde nel paesaggio montano in Trás-os-Montes. Forma circolare piuttosto prossima all’insularità del cinema di Reis...
Reis sosteneva che il cinema non si fa con le idee. Infantti, ogni piano dei film directi da lui e Margarida Cordeiro è intimamente implicato con le cose che mostra, quel “grain de réel” proprio al cinema (7). Le sue inquadrature tuttavia condividono con questa natura riproduttiva un massimo di astrazione, dovuto all’enorme cultura figurativa dei loro autori. Cosicché, ciascun piano è un teorema che dimostra la coesistenza di mascherino (cache) e finestra sul mondo. A differenza del citazionismo pittorico di César Monteiro, della natura ideogrammatica dei piani di Rocha o del processo di astratta violenza di Costa, il cinema di Reis e Cordeiro, attraverso la stratificazione dell’immagine, offre un’altra rivelazione: la vita autonoma delle forme, la loro assenza di contenuto, se non effimero (8). Per questo motivo, la loro opera anziché rimandare ad un principio strutturale di carattere narrativo, è stata più spesso paragonata ad un tessuto, o ad un tappeto – lo stesso enorme tappeto che quasi coincide con i bordi dell’inquadratura in Ana. Un tappeto come insieme di motivi figurativi. Ma è di uso corrente anche l’espressione “tappeto sonoro”, come coabitazione di forme sonore che si svolgono nel tempo. La metafora musicale ricorre altrettanto spesso a proposito dell’opera di Reis/Cordeiro. Anche come principio di assimilazione, secondo il quale un’inquadratura associata ad un’altra, ritorna sucessivamente accostata ad un’ulteriore, recando con sé quella prima comunanza.. come in quest’opera misteriosa, dove le rime ritornano a distanza di molto tempo, segrete e sussurranti. Sono qui eclatanti le origine di poeta di Reis, questa cura di una metrica visiva e dei rapporti suono/immagine: il raccordo è la cesura e il ponte che distanza ed unisce le forme nei piani.
In Trás-os-Montes, in Ana, in Rosa de Areia, piú che nel vibrante Jaime, tutto si tiene. In Ana una bambina passeggia per il villaggio, si ferma dinanzi ad un feretro e poi accanto ad un bambino... Come in un assioma bergsoniano, il tempo qui coesiste nelle sue successioni. Il Tempo in queste opere non è quello della Legge, presenza dimostrata estranea alla quotidianità dei gesti, di una camminata, così come all’eternità di una terra. Esso è invece sempre a metà tra quella consuetudine e quella perennità, ed è il Tempo dei sogni. Il cinema do Reis/Cordeiro nasce e proietta i suoi spettatori e personaggi fuori dal tempo storico, in un mondo di pure forme indifferenti all’incedere della storia. E il tempo tanto spesso invocato da Artaud, la metafisica ispiratagli dal quadro di un primitivo al Louvre (9).
Reis temeva il Diluvio, ma ogni suo film è l’avvento di un nuovo mondo, l’innocenza di uno sguardo che si posa sulle cose per la prima e ultima volta, incurante del tempo, che non è mai passato. La definizione che Seixas Santos dà dell’amico Reis, scomparso nel 1991, ne racchiude l’immensa generosità: un primitivo molto colto.
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(1) G. Deleuze e F. Guatari, «Kafka. Per una letteratura minore», Quodlibet, Macerata 1996, cit. p. 33.
(2) I nostri film sono fatti a somiglianza della musica. Intervista a Margarida Cordeiro di Anabela Moutinho, in R. Turigliatto e S. Fina (a cura di) «Amori di perdizione. Storie di cinema portoghese 1970-1999», Lindau, Torino 1999, cit. p. 116.
(3) Sosteneva Reis: «C’est justement là, dans ce refus de séparer, que je trouve un élèment progressiste et révolutionnaire», cfr. S. Daney e J.-P. Oudart, Trás-os-Montes. Entretien avec Antonio Reis, «Cahiers du Cinema» n. 276, maggio 1977 (ora in A. Moutinho e M. Da Graça Lobo (a cura di) «António Reis e Margarida Cordeiro. A poesia da terra», Cineclube de Faro, Faro 1997, cit. p. 260). E aggiunge Schefer: «[…] Toutes les parties de ce monde sont à la fois isolées et solidaires», cfr. J.-L. Schefer, in A. Moutinho e M. da Graça Lobo, op. cit. p. 130.
(4) Cfr. P. Costa, Guardate la pietra, la storia viene dopo, in Turigliatto/Fina, op. cit.
(5) J.-L.Schefer, op. cit.
(6) Scriveva Focillon, autore di cui è permeate l’opera di Reis/Cordeiro: «Un gran numero di strati eterogenei sovrapposti, simili ad alluvioni successive, ricopre le vestigia dell’uomo antico. Ci rendiamo ben conto che non può essere cancellato e anche che egli vive sempre nelle regioni profonde della coscienza collettiva o della coscienza individuale», cfr. H. Focillon, Sopravvivenza e risvegli formali, in M. Mazzocut-Mis (a cura di) «I percorsi delle forme», Bruno Mondadori, Milano 1997, cit. p. 127 (corsivi nostri).
(7) Cfr. P. Bonitzer, Le grain de réel, in «Décadrages», Cahiers du Cinema/Editions de l’Etoile, Paris 1985.
(8) «Cette disparition de sens, l’evanouissement de contenu, est donc quelque chose qui appartient à l’économie de l’image […] le sens est la fragilité même des images, il permet une disposition éphémère de ses parties dont la logique et la raison de composition deviennent bientôt incompréhensibles à mesure qui disparaît la mémoire du contenu», cfr. J.-L. Schefer, «Du monde et du mouvement des images», Cahiers di Cinéma, Paris 1997, cit. pp. 30-31.
(9) Cfr. A. Artaud, La messa in scena e la metafisica, in «Il teatro e il suo doppio», Einaudi, Torino 1969. Non è nostra la competenza, e pertiene piuttosto all’evidenza l’interesse di Artaud per un teatro di pure forme, intravisto negli spettacoli balinesi. Quanto al rapporto del cinema con una tempotalitá radicalmente altra rispetto alla coscienza del Reale, Artaudsostiene che «il cinema è essenzialmente rivelatore di tutta una vita occulta con cui ci mette direttamente in rapporto. [...] Tutta una sostanza impercettibile prende corpo, cerca di raggiungere la luce. Il cinema ci avvicina a quella sostanza. Se il cinema non è fatto per tradurre i sogni o tutto ciò che nella veglia somiglia alla sfera dei sogni, il cinema non esiste», cfr. A. Artaud, Stregoneria e cinema, in A. Martini (a cura di) «Utopia e cinema», Marsilio, Venezia 1994, cit. p. 130.


Francesco Pitassio – “Il diluvio e il tempo dei sogni”, in Cineforum 392, págs. 49-51, Março de 2000.

sábado, setembro 18, 2004

028. PAINÉIS DO PORTO

«PAINÉIS DO PORTO» - um documentário vivo sobre a capital do Norte – deve-se ao patrocínio dos Serviços Centrais da Câmara Municipal do Porto que, com tal iniciativa, presta à cidade, à sua beleza e à sua gente não só uma homenagem como um relevante serviço dando-a a conhecer tal qual é, vista pelos olhos de um poeta atento às realidades, isso é, com beleza e com uma verdade simples.
O poeta é o seu realizador mais responsável, António Reis, assistido desta feita por César Guerra Leal. Reis, poeta da cidade do trabalho, de granito sujo e de beleza escondidas e fugidias aos olhares provincianos dos «turistas de ocasião» entusiasta dos cinema experimental, ex-assistente de Manuel de Oliveira, espectador atento do cinema e da vida deve ser, de facto, o principal responsável por «Painéis do Porto», onde se sente o sentido de captação poética do humano que os seus «Poemas de quotidiano» nos revelam.
De um modo diverso do que acontece com «O Pintor e a cidade» - o magnífico documentário de Manuel de Oliveira que pode considerar-se uma descrição poética do Porto - «Painéis do Porto» é aquilo a que, com mais verdade, poderíamos chamar uma reportagem poética. E na diferença entre descrição e reportagem encerra-se toda a profunda dissemelhança entre o filme de Reis e o de Manuel de Oliveira.
É notável, particularmente na primeira metade do filme, a magnífica selecção de material visual conseguida: jogo acertado dos movimentos de uma câmara irrequieta e dos ângulos de filmagem, ora contemplando o assunto, ora procedendo a uma descrição correcta, cheia de sugestões, detalhando com oportunidade e eficácia, ora sublinhando o pormenor anedótico ou característico, ora focando o típico sem o explorar, ora transfigurando a realidade em poesia, em símbolo, sem o trair... Contrastes constantes, «raccords» expressivos que são linguagem, que falam, que sugerem... E, lentamente, o Porto passa todo inteiro pelos nossos olhos e o granito sujo, as pedras de armas patinadas, a talha aberta a cinzel dos claustros, os azulejos oitocentistas que nos falam de um tempo que passou, encadeiam-se com a sinfonia de betão armado dos modernos edifícios, com os seus azulejos abstractos, com a serena majestade dos blocos habitacionais gigantes... A tradição afiança uma evolução dinâmica que é vida, que é o verdadeiro pulsar de uma comunidade humana. António Reis não se deixou cair na tentação do romantismo ou no bonitinho do efeito formal rebuscado: mantém vivo e tenso o tom de reportagem, não se limitando ao que se vê mas procurando ir mais longe, procurando as raízes do que existe.
«Painéis do Porto» não é um estojo de virtudes. Tem defeitos, quebras de ritmo, desacertos de montagem, que nos pareceram mais sensíveis na segunda parte do filme. Mas este é o primeiro filme de António Reis, filme feito com entusiasmo, bom gosto e sensibilidade visual apurada, talvez até hipertrofiada – o que explica certos desequilíbrios.
Balanço final: há que contar com António Reis para o cinema português.

Francisco Xavier Pacheco – Filme, n.º 61 (Director: Luís de Pina), pág. 19, 15 de Abril de 1964.

sexta-feira, setembro 17, 2004

027. "ANTÓNIO REIS E MARGARIDA CORDEIRO - a poesia da terra"



Só agora me chegou às mãos esta obra!
"António Reis e Margarida Cordeiro - a poesia da terra " é um belo catálogo organizado por Anabela Moutinho e Maria da Graça Lobo, editado pelo Cineclube de Faro em 1997.
Encontra-se dividido em 4 partes: Parte I - Margarida Cordeiro - uma longa entrevista com a realizadora em 1997; Parte II - António Reis, a homenagem - subdividido em biofilmografia, os anos do Porto, os amigos e as despedidas em 1991, onde se destaca uma variedade de interessantes entrevistas a amigos da escola (ESTCinema), dos filmes e da vida; Parte III - A obra - recolhe textos publicados sobre a sua obra em geral e especificamente sobre "Jaime", "Trás-os-Montes", "Ana" e "Rosa de Areia"; Parte IV - António Reis e Margarida Cordeiro, entrevistas e depoimentos - reúne um conjunto de entrevistas e depoimentos dados pelos dois realizadores. O livro termina com as fichas dos quatro filmes.
O livro é muito rico em material documental e iconográfico; abundam imagens da vida dos cineastas, das repérages, das rodagens, dos filmes; algumas fotos foram feitas de propósito para o catálogo, a partir de cópias dos filmes.
No dizer das autoras falta aprofundar os anos do Porto, bem como falta "um aprofundado enquadramento do papel de António Reis na obra de outros autores ou o estudo das suas primeiras obras".
A obra de António Reis e Margarida Cordeiro já há muito que merecia um catálogo assim; vale por si e ainda como trabalho de base para outros desenvolvimentos.
Obrigado e parabéns às suas autoras.

quinta-feira, setembro 16, 2004

026. O ÚLTIMO POEMA

ROSA DE AREIA
(Filme)
Segunda, TV2, 23h10

De todos os criadores cinematográficos portugueses, é lugar-comum apontar-se Oliveira como o mais radical na individualidade irredutível de uma obra que procurou e procura reinventar o cinema moldando-o a uma visão pessoal. Não é verdade. Se há que encontrar - e porque haveria? - um artista a quem seja justo apontar a tal individualidade irredutível, esse será, sem margem para dúvidas António Reis (1927-1991), primeiro sozinho, depois co-assinando os filmes com Margarida Cordeiro - o derradeiro dos quais foi Rosa da Areia que, estreado no Fórum do Festival de Berlim de 1989, nunca seria comercialmente visível entre nós. Esta apresentação na RTP corresponde, portanto, e para todos os efeitos, a uma estreia em Portugal.
António Reis era um poeta - e o seu cinema para o lugar da poesia se foi sempre dirigindo. Para o bem e para o mal. Para o bem, se considerarmos que trabalhou os materiais fílmicos com uma liberdade estética inigualável, propondo-nos conjugações de uma sedução sem nome. Para o mal, se quisermos que o cinema se pratique nos domínios da inteligibilidade - e os caminhos de Reis foi no sentido da progressiva opacidade.
Tomemos Rosa da Areia - e digamos, à partida, que é um filme onde se percebe nada, onde é estulto buscar um fio narrativo, uma história, um saber. Mas, ao mesmo tempo, é um objecto de uma beleza desmedida, onde entrevemos qualquer coisas para a qual ainda não encontrámos palavras – para a qual suspeitamos mesmo que as palavras são desperdício. Qualquer coisa que se nos impõe pelo deslumbramento – e nos confunde pelo labirinto. Qualquer coisa que não saberemos dizer sobre que fala, mas sentimos que está entregue à autonomia audiovisual, no limiar de um cinema-outro. Qualquer coisa que nos diz nada mas nos agarra por motivos inesperados, conjugações, surpresas, encruzilhadas.
Qualquer coisa arrogante - também - e, nesse sentido, magistral será um adjectivo adequado para o qualificar.
É Rosa da Areia um grande filme? Não faço a menor ideia - de tal maneira escapa a todos os padrões, escolas, modelos, bitolas. Visto num grande «écran» de uma sala escura - e, jamais, num televisor - devo dizer que me fascina, incomoda, maravilha e enfada, sucessivamente e, às vezes, tudo ao mesmo tempo. O mais irritante é que, apanhado pela estupidez da morte, não foi permitido a António Reis prosseguir o seu caminho - depurar a poesia fílmica que andou perseguindo. Fica-nos a sensação de que Rosa de Areia é um objecto de meio de jornada. Imperscrutável, intrigantemente diverso.

Jorge Leitão Ramos

Jornal Expresso, Cartaz, pág. 24, 28 de Janeiro de 1995

025. PEÇO-TE DESCULPA

Peço-te desculpa
muitas vezes

em silêncio
deitando-me
dormindo

com palavras
que
preparam
culpas novas

Quase sempre lavas

com o rosto branco
das lâmpadas
e das mágoas

É verdade que
suspiras

nunca me
disseste
que eras água


António Reis - Novos Poemas Quotidianos, pág. 54, Porto, [1959].

quarta-feira, setembro 15, 2004

024. "ROSA DE AREIA" antestreia na Cinemateca - Out. 1989

FLOR DO DESERTO NASCE NO ASFALTO DE LISBOA

Após os 90 minutos de projecção na sala da Cinemateca, tudo o que se disser sobre «Rosa de Areia» soa a tagarelice. Quando o silêncio fala assim, só resta calar. Tal como está construído (e destruído, no ritmo dialéctico que é a sua respiração) o filme impõe-se como um dogma da santíssima trindade. Talvez por isso ouviu-se na sala da Cinemateca, por duas vezes, a palavra «religioso». Claro: é religioso o que religa todos os contrários e antinomias, a palavra ioga até serve melhor para expressar isso. Agora no sentido confessional e apostólico de qualquer credo – é caso para dizer, credo, canhoto, abrenúncio, o filme não tem nada de religioso, nem de comprometido com a ideologia ou sistema, puro como Deus o deu ao mundo. O que é, desde logo, outra das suas intransponíveis dificuldades propostas ao crítico aflito que o queira analisar.
Depurado se poderá dizer também que ele é, rejeitando «a priori» concessões e facilidades, quer ao gosto estereotipado do público quer às estéticas de consumo em vigor no mercado. «Rosa de Areia» vai-se naturalmente destilando, até não se parecer com nenhum outro produto fílmico, com nenhum outro autor, ficando isolado num deserto de referências, numa atitude que alguns dirão «mística», mas que é apenas o método Zen de rarefazer o acessório para atingir o essencial na muge. Vistas bem as coisas e já que o filme ensina a ver, de místico e metafísico nada ele tem. É físico, o mais físico que há: o professor Baptista, militante, atómico cá do burgo, aparece como figurante a sair de uma aula de Física, que por sinal é o Observatório Astronómico da Ajuda. E como ele gosta de isótopos, este professor Tournesol!
António Reis, no breve debate pós-projecção, aludiu a uma das chaves do filme: optou-se por uma estética dos materiais. Ali, de facto, joga-se com os materiais mais duros e puros, desde a rocha granítica e basáltica, à areia (sempre areia), às palavras (como pedras), às cores, aos tecidos, aos ladrilhos, aos azulejos, à água, às palhas, ao vinho (do Porto!), ao mar das searas, ao oceano da terra, praticamente todas as texturas físicas ali comparecem.

Para ler verso a verso

Outros perguntarão: onde se passa o filme, em que época, em que lugar? E só há uma resposta, se resposta há: é de todos os tempos e de nenhum, é de todas as partes e de nenhuma parte. Leiam alguns textos do budismo primitivo e encontrarão lá, em glosa moderna do meu compadre José Matos-Cruz: «Vindo de algures, de nenhuma parte e indo para parte nenhuma».
Intemporal, então, o filme de Margarida Cordeiro e António Reis? De modo nenhum: a «durabilidade» ou efemeridade da condição humana ressalta ali com imensa e terrível violência. Então alguém dirá: é um filme de angústia existencial. Também serve.
E quanto ao espaço? Vem do princípio do mundo, como logo se percebe pelas urzes ainda tão frescas e aquele ar de montanha carregado de iões negativos. Só faltou a Margarida e António Reis irem filmar as furnas dos Açores, contemporâneas dos Atlantes.
A propósito: ouvi mal ou lá se diz que somos contemporâneos de tudo o que amamos? No entanto, a morte é ali soberana, um facto igualmente físico, um poder que ri dos poderes nucleares e outros que o homem soltou. A transmigração das almas, se existe, não impede que os corpos se dilacerem ao afastar-se e que a saudade seja um fenómeno tão físico e concreto como os demais. Pai e filha estão ali, à beira do túnel, para se despedirem, numa das imagens mais patéticas que o filme contém. Quem não chorar, é covarde.
Mesmo como pode haver dramatismo num poema zen que literalmente rejeita as «dramatis personae», a intriga, a história, a sequência, o suspense, enfim, aquele arsenal useiro de que se faz o cinema de consumo em geral e as séries televisivas em particular?
Talvez porque, recusando isso tudo, «Rosa de Areia» assume a responsabilidade de se autobastar fotograma a fotograma, sequência a sequência, plano a plano, todos com princípio, meio e fim, como se fossem filmes dentro do filme.
Quer dizer: se sincoparmos a visão deste filme, sequência por sequência, nada se altera da emoção recebida. Ao contrário de um policial, de uma história de aventuras, de um serial erótico-violento ou de qualquer outra pepineira de que está cheio o mercado da chamada «ficção», ao contrário disto tudo, um poema como «Rosa de Areia» é para ler verso a verso, estrofe a estrofe, de trás para diante e diante para trás, sem que nada disso altere uma vírgula da sua densidade significante.
Vasco Granja, que também «animou» o debate, lá foi falando de poesia, enquanto António Ramos Rosa, do outro lado da sala, mantinha o silêncio poético da sua natureza silenciosa.
O filme auto-sustenta-se fotograma a fotograma, sem muletas de espécie nenhuma: penso ser este o elogio a fazer-lhe, se é que há elogios para um filme que tudo recusa, incluindo os piropos – ou desagrados da crítica.
Uma Liga de Amigos do cinema poético, como disse Carlos Porto, também na assistência? Acho que não, Carlos: cada cidade, cada país e cada povo tem, no fim de contas, os Batman que merece. E se nós não merecemos a obra de Margarida Cordeiro e António Reis, o mal é nosso, não é deles, e o prejuízo é do País. Nós, como deficientes mentais, é que precisamos de uma Liga de Amigos. Não andamos nós, Carlos Porto, há mais de 30 anos, à espera de que um editor neo-realista nos edite? E, no entanto, ainda não morremos. Margarida e Reis também vão aguentar o silêncio, descansa.

A pista de obstáculos

Cada cidade tem as vereações e presidências que merece e nós, alfacinhas, merecemos esta latrina de tapumes, buracos e esterco, que é hoje Lisboa, tudo se passando, também, na cumplicidade do silêncio. Nunca a Cinemateca me pareceu tanto uma ilha rodeada de todos os lados, como, no sábado passado, para ir até à qual (ilha), ver «Rosa de Areia», se tem de atravessar uma pista de obstáculos intransponíveis. Lisboa é toda ela, neste momento, um pesadelo, que vai atropelando gente como num açougue.
E, no entanto, as pessoas lá estavam, a horas, antes das 11, como se vivêssemos numa cidade a sério, num país a sério e fôssemos um povo a sério. Como queremos nós merecer a obra de Margarida Cordeiro e António Reis? Vamos deixar «Rosa de Areia» sem exibidor, tal como deixámos degradar uma cidade, um país e um povo ao ponto a que nós deixámos, sem um miado dos multimédia rastejantes. Que sentido fazem, Carlos Porto, as ligas de Amigos e de protecção à Natureza?
Os exibidores andam distraídos, coitados, com outras folias? Deixá-los andar, também não lhes ensinaram outra coisa. O Estado arreda-se da sua obrigação mecenática, deixando ao desamparo os Fellini, Buñuel ou Rosselini que por aqui forem nascendo? Deixar o Estado, coitado, para infelicidade já lhes basta ser quem é: um agregado de suinicultores, gerido por halterofilistas do Fisco. O público, ainda mais infeliz do que o Estado, não tem olhos para ver? Mas tem, coitado, as greves que as centrais sindicais decretam contra ele, o que é, desde logo e só por si, fonte de manifesta alegria e justiça social.
Quanto ao Instituto Português de Cinema, que não financiou esta obra, é outro nado-morto, o infeliz: paz também à sua alma e que repouse em paz, financiando até à eternidade as fitas do eterno Manuel de Oliveira.
A propósito de bichas por causa das greves: Sabendo-se que «Rosa de Areia» recusa também tudo o que cheira a símbolo, metáfora ou alegoria, porque há tantos seres rastejantes ali, até uma cobra, literalmente falando? Quererão os autores explicar se foi por acaso? E porque gostam eles tanto de filmar as pessoas de costas, tal como Bresson, por exemplo, com toda a ternura do mundo, gostava de filmar os pés?

Tempestade no deserto

A propósito de Bresson: o filme recusa qualquer filiação, ascendência ou paternidade de outros autores. Também aí, «ex-niilo». Também aí, auto-suficiente. Também aí, alfa e ómega de si mesmo, o que atrapalha ainda mais os pobres dos críticos, sexualmente impotentes para fazerem belíssimas exegeses com base nas influências de Jean Rouch, Godard, Antonioni, Manuel de Oliveira, Straub, Fernão Mendes Pinto.
É que não há nada, por mais que esgravatem na terra dura. A propósito de terra, não gostei de duas imagens demasiado elaboradas, onde o material deixa de surgir em bruto. É a rocha com sinais de dinamite, ao lado da qual se filma a linda imagem da mulher «dormindo» num leito de papoilas e um outro artifício que eu pergunto, de imediato, aos autores: no palheiro, onde entram, oblíquos, os raios de sol, confessem lá, vocês puseram um holofote laranja para evidenciarem aquele olho de água crescendo? Foi ou não?
Ora um artifício de produção é algo que me parece deslocado num poema onde, contra o que parece, nada é artefacto, tudo é facto.
A meter-se pelos olhos dentro, como uma tempestade de areia no deserto.

LÁ FORA É QUE É BOM

Embora não tivesse entrado com um tostão para o filme «Rosa de Areia», o Instituto Português do Cinema não se cansa de o mostrar em todos os pontos do mundo onde é necessário manter bem viva a presença e o prestígio de Portugal como país da CEE.
Depois de ter sido incluído na Semana do Cinema Português, em Paris, no passado mês de Setembro, vai em Outubro à Flandres e em Novembro ao Canadá.
Quanto à obra completa de Margarida Cordeiro e António Reis – que inclui, como se sabe, «Jaime», «Trás-os-Montes», «Ana» e «Rosa de Areia» – a Cinemateca da Suiça acaba de comprá-la, na íntegra, e a Cinemateca Portuguesa tem programada para o início de 1990 a retrospectiva desta obra ímpar do cinema português.

Texto de Afonso Cautela – jornal A Capital, pág. 27, Quarta-feira, 11 de Outubro de 1989.

terça-feira, setembro 14, 2004

023. "TRÁS-OS-MONTES" no Festival de Toulon - 1976


Capa do Cineclube, n.º 12-13 e contracapa com imagem de "Trás-os-Montes"

(Fotos de Cristina Fernandes)

António Reis e Margarida Cordeiro
colhem louros no Festival de Toulon


O público português (por enquanto só lisboeta) levou o seu tempo a aperceber-se de que o filme de António Reis e Margarida Cordeiro, «TRÁS-OS-MONTES», era uma obra importante, de uma grande força e rara beleza poética. A carreira do filme começou mal, para os lados de Bragança, onde a incompreensão de alguns não deixou ver o amor com que os dois cineastas nos falavam do nordeste português. Na capital, o público foi lento em ir ver uma obra que, pela sua seriedade e pureza de pedra rara, não aliciava o seu mau gosto nem despertava a sua embotada curiosidade. Para o fim, as pessoas foram acordando (e bem haja o Dr. Prado Coelho pelo apoio que deu à permanência do filme em cartaz*).
TRÁS-OS-MONTES terminou, finalmente, a sua carreira em Lisboa com os louros merecidos. E foi ao Festival de Toulon.
O cinema português ainda não tem suficiente ressonância para que todas as atenções se fixem nele. (E, no entanto, meses depois do 25 de Abril, toda a gente, lá fora, estava interessada em ver filmes que lhe falassem de Portugal). Ora, em Toulon, aconteceu que os membros do Júri - talvez cansados, talvez distraídos - vistos que foram os primeiros vinte minutos de filme, deram-no por visto. E saíram da sala. Com que consciência juízes destes iriam julgar TRÁS-OS-MONTES, não sabemos. O que sabemos é que, por sorte, António-Pedro de Vasconcelos apanhou-os em flagrante e caiu-lhes em cima. De rabo entre as pernas, voltaram para a sala. E então abriram bem os olhos e caíram em si. Uma grande injustiça esteve a pontos de cometer-se. Parece que alguns quiseram rever o filme. Para limpar a consciência. No fim limparam-na bem e julgaram com acerto. TRÁS-OS-MONTES foi justa e brilhantemente premiado.
Da nossa parte deixamos aqui um grande abraço para António Reis e Margarida Cordeiro. Com enorme satisfação, até pela longa amizade que a alguns de nós liga ao autor de «Jaime». Mas também porque levar o cinema português ao galarim, no estrangeiro, merece o nosso apreço e regozijo.

Revista Cineclube nº 12-13, Outubro/Dezembro de 1976, pág. 23, edição do Cineclube do Porto.
Artigo não assinado, da responsabilidade do Conselho Redactorial, composto nessa altura por: Alves Costa, André de Oliveira e Sousa, Armando Casais e Fernando Barbosa Dias.


Nota: (*) que exercia então o cargo de Director-Geral de Acção Cultural

Estas imagens da capa e contracapa do Cineclube, n.º 12-13 e esta interessante notícia sobre a exibição de "Trás-os-Montes" no Festival de Toulon foram-nos enviadas pela Cristina Fernandes da Janela Indiscreta. Obrigado Cristina pela colaboração!

022. "ANA" - Crítica de Eduardo Prado Coelho

Poder-se-á pensar que Ana repete Trás-os-Montes. Porque algumas das características do cinema de António Reis e Margarida Martins Cordeiro serão facilmente reconhecidas neste segundo filme. E, sobretudo, porque o mesmo isolamento altaneiro desta obra em relação a todo o resto do cinema se volta a verificar. De facto, Trás-os-Montes e Ana constituem uma espécie de território solitário no interior do cinema contemporâneo. E assumem essa condição num gesto enredado de modéstia e de orgulho.
Ana é um filme mais desprotegido do que Trás-os-Montes, e, ao mesmo tempo, mais ambicioso. Em Trás-os-Montes, tínhamos ainda um suporte referencial (uma província portuguesa) que poderia justificar a obra realizada. Com Ana, o filme deixa aparentemente de ter objecto. A metafísica, que anteriormente passava em contrabando, é agora o campo único de exploração. Partindo de um movimento compartilhado para ir à descoberta do homem português, António Reis e Margarida Martins Cordeiro desembocam numa espécie de música que tem por único intuito cantar o homem em geral, a sua relação com a terra, a sua relação com o nascimento e a morte.
Há aqui uma história, mas o espectador, suspenso da força íntima de cada sequência, dificilmente consegue entrever qualquer trama narrativa. Pelo contrário: a única forma de entrar neste filme é olhar cada imagem como se à transparência nela se viesse inscrever a fórmula explicativa do mistério das coisas. A violência deste cinema resulta de uma tal tensão: há um enigma que se tornou tão concreto, tão nítido, tão visível, tão habitável, que a sua decifração não poderá ser adiada. E, no entanto, o filme é todo ele uma interminável mudez. A única sequência em que as personagens falam abundantemente, diessertando sobre as formas de barcos antigos, é, na sua erudição injustificável, no seu discurso sem objectivo, uma outra forma de silêncio.
Um crítico (João Lopes) privilegiou o título para encontrar nele uma chave: de facto, enquanto pessoa, Ana, a mãe Ana, a avó Ana, Ana enquanto saber, Ana enquanto ternura discreta, Ana enquanto dureza assumida, Ana abstracta e misteriosa como o olhar de um animal, constitui o eixo do filme. Mas o que importa acima de tudo é o facto de o significante Ana parecer dizer, na sua concisão, a harmonia inerente a todas as coisas, o equilíbrio entre o princípio e o fim, a vida como travessia entre o mesmo e o mesmo, a sageza imemorial do barco.
Alguns dirão que estamos perante um filme poético. Mas a poesia é aqui ainda uma metáfora. Ana é a poesia – a imagem pesada, maciça, telúrica, da poesia. Mas a poesia é Ana. Esta reversibilidade é que constitui o ponto fundamental. Não há cifra a encontrar. Não há mistério a dissipar. Há apenas a evidência de que tudo está em tudo, de que a poesia está em Ana, de que Ana está na poesia, de que Bach está num pinheiro, de que o mercúrio ou a luz estão em Rilke – e, por conseguinte, qualquer tentativa de explicação, qualquer hermenêutica redutora, qualquer chave dos sonhos, qualquer psicanálise do espaço, são ainda mutilações de uma realidade que apenas se sustenta no canto do seu interminável balanceamento: cada plano deste filme é apenas o eixo provisório dessa reversibilidade sem fim.
Isto poderá contribuir para compreender o modo de filmar de António Reis e Margarida Martins Cordeiro. Eles partem da convicção de que todos os planos de Ana devem repetir a secreta harmonia que constitui o transparente tecido da vida. Daí que os realizadores procurem sempre dar forma a uma dialéctica interior que é feita de jogos de compensações entre as várias formas presentes nas imagens, entre as várias cores, entre os vários sons, entre os vários movimentos, entre as várias zonas de fechamento e os vários lugares de abertura em que cada imagem se articula com as outras imagens. O filme no seu todo é fundamentalmente a expansão desta dialéctica interior. Mas, na medida em que vive sempre nesta interioridade, o filme, continuamente debruçado sobre as mais elementares e óbvias realidades materiais, acaba por se erguer face a nós como uma entidade abstracta, uma visão metafísica, um universo outro, tão puro quanto rarefeito. Há nestas imagens de um quotidiano humilde uma aridez implacável. É daí que sopra o orgulho destas terras distantes. E também a desmesura deste cinema definitivamente absorto em si mesmo.
Ana significa harmonia, mas também cisão, distância insuturável do mesmo ao mesmo. E, por isso, necessidade de transporte para cobrir todas as distâncias. A conversa sobre barcas tem essa função: abrir um fundo metafórico sem contornos precisos – na medida em que, utilizando-se a metáfora do transporte, se deve ter em conta que o transporte é a essência da própria metáfora. Ana é, por um lado, o cosmos. Mas é, ao mesmo tempo (e nesta simultaneidade reside a sua força), o caos. A origem não é apenas harmonia, mas vento demencial. O sono não é apenas repouso, mas queda e confusão. O leite converte-se em sangue (são os dois pólos que sustentam o filme). Estamos, como diria Rilke, perante «o círculo da evolução total» - o que é indescritível: «Mas isto: conter a morte, / a morte toda, ainda antes da vida, tão / docemente contê-la e não ser mau, / isto é indescritível». Ou, se preferirem, isto é Ana.

Eduardo Prado Coelho – Vinte Anos de Cinema português (1962–1982), 1.ª edição, págs. 147-150, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1983.

segunda-feira, setembro 13, 2004

021. "ANA" no Festival de Cinema da Figueira da Foz - 1982

O TEMA DO FILME

Naqueles dias...
A lenda do leite na casa sombria.
Tempo interior.
Quase silêncio.
Luz. A natureza como imemorial casa exterior.
Inverno.
O sangue recolhido nas duas mãos, mãe Ana.

As emoções da infância que nascem de novo, sob outras formas, com outros rostos, outras.
O trabalho intenso para que as transmutações surjam e permaneçam na obra inteira e já independente de nós

António Reis
Margarida Cordeiro

OPINIÃO

A singeleza do título do filme de António Reis e Margarida Cordeiro pode ajudar a perceber, por um desses paradoxos em que Trás-os-Montes já era fértil, o infinito (de desejo) que nele se joga: Ana, ou a simetria do nome, quer dizer, o eterno regresso do nome a si próprio, fendido por uma superfície imaginária - espelho e água - que o produz ou que, pelo menos, nele se instala para produzir sentido(s).
Nomear, eis a questão. Sabemos que muito do que em cinema se diz em termos de modernidade passa pelo questionamento da palavra como efeito de nomeação e sua inserção na cadeia de materiais de que cada filme se tece. O trajecto exemplar de António Reis e Margarida Cordeiro é, evidentemente, cúmplice de tal questionamento, mas apenas se o entendermos como interior a tudo o que é ou pode ser material de filme.
Neste sentido, o seu cinema poderá ser definido, antes do mais, como uma corrente tenaz de interrogação do efeito de nomeação, onde quer que ele se manifeste. Ana, justamente, simetria de origem, mãe e terra, utopia e horizonte, memória e futuro. Cada simetria gera as condições da sua própria dissolução selvagem como se cada ser, cada objecto - cada coisa nomeada - só realizasse o seu destino (de significação)numa perdição irreversível (de que o cinema seria, precisamente, o registo ambíguo). São coisas enigmáticas, é bem certo, mas ao mesmo tempo, Ana consegue devolvê-las com a transparência estranha (inomeável, sem dúvida) do que sempre lá esteve. Guardemo-nos, porém, da facilidade de querer ver no filme um simples requiem, mais ou menos ecológico, pregando o regresso à natureza. O cinema de António Reis e Margarida Cordeiro chegou aum ponto vital (e, seguramente, único não só no cinema em Portugal mas também a nível internacional) em que categorias como «natureza» e «civilização», «rural» e «urbano» estão condenadas a perder a sua pertinência estética. Resta apenas o saber, esse excesso que nem sempre escreve a história dos homens. Este cinema sabe, quer dizer, Ana é um filme que conquistou integralmente, pelos seus próprios meios, o tempo e os espaço em que nos convoca.

João Lopes - Ficha de "Ana", 11.º Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, 9-19 de Setembro de 1982.

domingo, setembro 12, 2004

020. "ANA" - Crítica de Jorge Leitão Ramos

O cinema de António Reis e Margarida Cordeiro começa aqui a afastar-se de qualquer inteligibilidade realista, de qualquer «história», para mergulhar no pleno território da poesia.
E poesia, sabe-se, é aquela zona onde se pressupõe uma de duas coisas: ou há um espaço branco e virgem que essa poesia povoa de raiz; ou, ao contrário, se dá como axioma uma empatia entre o texto poético (fílmico) e o imaginário do sujeito-receptor. Em qualquer dos casos avulta no texto poético uma violência que recusa meias-tintas.
Ana é, em termos de cinema, um projecto assim. Ele não inventa nem espaços, nem pessoas, nem lugares, inventa um olhar, um ritmo, uma pulsação.
Em Trás-os-Montes uma velha mulher preside à renovação da vida e defronta a morte; a «história» do filme é só esta. Mas da rarefacção de coisas a contar fazem António Reis e Margarida Cordeiro uma espécie de ritual onde o cordão umbilical das culturas milenárias, da casa, dos gestos, da terra, das pessoas, é um só. Há uma celebração belíssima e secreta, onde nos envolvemos – ou não.

Jorge Leitão Ramos - Dicionário do Cinema Português 1962/88, pág. 35, Editorial Caminho, Lisboa, 1989.

Agradecimento: ao Mar Salgado, ao Ma-Schamba e ao Sebenta pelas palavras e pelos links; muito obrigado.

sexta-feira, setembro 10, 2004

019. UNS DIAS NA CAPITAL

Estou há uns dias em Lisboa e por isso tenho dificuldade em actualizar o blogue.
Domingo à noite regressará à normalidade! Peço desculpa por isso.

018. QUE SEMENTE...

Que semente
procuras
no sal

areia
ou neve
pérola

Não contemples
é gosto

é água salgada


ao de leve


António Reis - Novos Poemas Quotidianos, pág. 19, Porto, [1959].

quinta-feira, setembro 09, 2004

017. "JAIME" - Festivais e Prémios

Prémios:
- Prémio Melhor Filme de Curta Metragem no Festival Locarno.
- Grande Prémio à Curta Metragem no Festival de Toulon, 1974.
- Prémio da Casa da Imprensa, 1974.
- Prémio Melhor Argumento, no Festival de Curtas Metragens da Grécia.
- Prémio Melhor Filme, no Festival Méridiens, em França.

Presença:
- Edimburgo, 1974
- Pesaro, 1974
- in FestRochelle - 3 emes Rencontres Internationales d'Art Contemporain, La Rochelle - "Six Aspects du Jeune Cinema Portugais", 24 Junho a 5 de Julho de 1975


Informação recolhida em:
- site Amor de Perdição em "Jaime"
- Moutinho, Anabela; Lobo, Maria da Graça (org.) - António Reis e Margarida Cordeiro - a poesia da terra, 292 páginas, Cineclube de Faro, Faro, 1997

quarta-feira, setembro 08, 2004

016. FICHA – "JAIME"

JAIME
Portugal, 1974
35 mm / cor-pb / 958 mt - 35 min


Realização: António Reis
Assistente de realização: Margarida M. Cordeiro

Director de fotografia: Acácio de Almeida

Som: João Diogo
Assistente de som: Margarida M. Cordeiro
Música: Louis Armstrong, Stockhausen, Telemann

Montagem: António Reis
Assistente de montagem: Margarida Martins Cordeiro

Laboratório de imagem: Tobis Portuguesa
Laboratório de som: Valentim de Carvalho

Produção: Centro Português de Cinema e Telecine-Moro
Director de produção: Henrique Espírito Santo
Patrocínio: Fundação Calouste Gulbenkian

Participação: Evangelina Gil Delgado (viúva de Jaime Fernandes) e seus filhos. Colaboração: Maria de Lourdes Franco, Maria Eugénia Cunhal Medina, Maria Etelvina de Brito, José Manuel Fortes, Jorge Melo Cardoso, gráfico António Barata, gráfico Herlander Egídio Sousa.

Rodagem: 1973
Estreia: Cinema Império - Lisboa, 2 de Maio de 1974
Distribuição: Animatógrafo

O mundo, a vida e o trabalho de Jaime Fernandes, camponês nascido em Barco (Beira Baixo), atingido por doença fatal (esquizofrenia paranóica), aos 38 anos. Internado no Hospital Miguel Bombarda (Lisboa), ali morreu em 1967, com 69 anos. Aos 65 anos, começara a pintar e, durante esse curto período de tempo, realizou uma obra pictórica genial. Influência do meio social e hospitalar.

terça-feira, setembro 07, 2004

015. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Eduardo Prado Coelho

Uma das linhas mais produtivas do cinema português tem sido a da descoberta, em termos de pesquisa antropológica, de uma realidade rural em vias de desaparecimento. Situado numa orla da Europa, Portugal tem a pecularidade de viver múltiplos tempos simultâneos. O fenómeno da emigração produziu no mesmo lance uma degradação das condições de progresso de determinadas regiões e o efeito de choque do retorno ou da passagem cíclica daqueles que vivem ou viveram por uns tempos em terras estrangeiras. Desse modo as contradições agudizaram-se e os contrastes tornaram-se mais gritantes.
Em determinado momento, um sector muito significativo dos trabalhadores de cinema decidiu intervir na recolha de toda uma memória cultural do nosso povo prestes a ser varrida pelos moldes uniformizantes da cultura de massas: daí nasceu o projecto de um Museu da Imagem e do Som. A própria designação envolvida um paradoxo: largando a ficção para ir à procura de uma realidade concreta, os cineastras recolhiam apenas material para museu. Grande parte destes filmes aparece, no fundo, como feita de obras de uma certa ficção. Isto é, por um esforço pertinaz de abstracção, eles fingem que uma determinada realidade permanece inalterada, e procuram filmá-la na sua intangível pureza através do recalcamento de tudo aquilo que poderia perturbar a nitidez matinal do retrato. São obras, quase sempre admiráveis, que se alimentam de uma comum ficção da cultura popular. A critica, sensível à violência desta abstracção, designa-as habitualmente pela palavra mais alta que se atribui a realidades deste tipo: trata-se de poesia. E a expressão famosa de Novalis
(quanto mais poético, mais verdadeiro) tem aqui inteiro cabimento.
Neste domínio, são de um enorme interesse, sobretudo pelo engenhoso das soluções narrativas, os trabalhos de António Campos: Vilarinho das Furnas (1971), Falamos de Rio de Onor (1974) – e podemos notar como o próprio título coloca aqui o problema, central no autor, do lugar de enunciação do discurso dito documental –, Gente da Praia da Vieira (1975), para não referirmos já essa estranha ficção retardada e constrangida por um enorme respeito pela realidade em si mesma que é Histórias Selvagens (1978). Mas merecem ainda menção, entre outros, Noémia Delgado (Máscaras, 1976), Leonel Brito (Colónia e Vilões e Gente do Norte, 1977), Fernando Matos Silva (Argozelo, 1977), Manuel Costa e Silva (Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada e Madanela, 1977), etc...

Trás-os-Montes de António Reis começa por ser um projecto que arranca deste «movimento antropológico» do cinema português. Mas, tomando à letra o ensinamento de Novalis, leva mais fundo e longe a abstracção ficcional: este «retrata» uma realidade que já não existe, que nunca existiu, impossível de existir, mas retrata-a com a mais implacável das fidelidades. Fidelidade a quê? Diríamos que a uma visão do mundo, no sentido mais visionário da fórmula, ou, se não tivermos medo da palavra, a uma metafísica (Ana será a revelação plena disso). Talvez isto explique as peripécias que rodearam o lançamento do filme. Quando se começou a falar numa película sobre Trás-os-Montes, certos meios da região em causa terão pensado que se tratava de um trabalho que documentasse o viver actual da província. Daí o equivoco, que levou à convicta, ou manipulada, indignação dos que pretendiam que o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro deveria ser um documentário de teor turístico sobre
Trás-os-Montes. Ora o trabalho de António Reis e Margarida Martins Cordeiro não somente era outra coisa, como era um acto de resistência ao olhar turístico sobre a realidade. Porque o olhar turístico passa, o cinema de Trás-os-Montes instaura. A realidade aqui não é dada, mas consagrada. Esta perspectiva de arte desenvolve-se na mais imanente das religiosidades. Daí a dificuldade que há em pronunciar sobre ela qualquer fala que se não sinta excedente ou profana.
Um dos aspectos mais interessantes do filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro tem certamente a ver com as relações do espaço e do tempo. Estamos habituados a descobrir uma região deslocando-nos no seu espaço. Mas por vezes podemos tentar fazer a história dessa região – deslocando-nos no seu tempo. O que Trás-os-Montes realiza, com uma prodigiosa naturalidade, é uma deslocação no espaço que é simultaneamente uma deslocação no tempo. Por outras palavras, a geografia converte-se em memória: é toda uma imensa riqueza de símbolos, lendas, ritmos, que se vem inscrever – pastoralmente – sobre o corpo da terra. Há aqui, nestes caminhos que não levam a parte alguma, um sabor heideggeriano: o cinema transforma-se em pastor do ser que é talvez a lição dos admiráveis planos iniciais do frágil pastorinho conduzindo os animais ao seu destino. O que mais nele nos comove é o seu antiquíssimo saber da voz, que lhe permite formular as palavras justas, e essa agudíssima inconsciência de um destino que o atravessa, sem que ele o pressinta, para além da evidência primeira de todas as coisas.

Eduardo Prado Coelho – Vinte Anos de Cinema português (1962–1982), 1.ª edição, págs. 69-72, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1983.

segunda-feira, setembro 06, 2004

014. DUAS OU TRÊS COISAS QUE SABÍAMOS DE NÓS

"Pouco sei de nós que possa dizer, e que queira dizer. Sei – entraram uma vez, há muitos anos, na minha cabeça e no meu coração e lá ficaram para sempre – alguns versos perdidos e pouco mais (e o cobrador sabe sempre / quando o silêncio tem pó / e é perfeito). E outras coisas, mais secretas e mais fugazes, imagens breves, uma palavra ou outra, o último transido abraço poucos dias antes da sua morte.
Andávamos com os «Poemas quotidianos» no bolso e partilhávamo-los avaramente, nos cafés e nas longas noites solitárias da adolescência, como um fogo comum, um sinal que nos identificava uns aos outros como membros da mesma tribo errante; éramos todos jovens, ou julgávamos que éramos, e acreditávamos, naqueles tempos controversos, que nos havia sido dado o dom de, pela poesia, compreender e mudar o mundo e a vida. António Reis não o sabia, mas todas as palavras que então possuíamos eram as suas.
E um dia a notícia correu pelas esplanadas do Carmo e passou rapidamente de boca em boca. O António Reis estava a preparar uma página de poesia para o «Jornal de Notícias»; tinha convencido o dr. Nuno Teixeira Neves a entregar o número da Primavera do seu «Suplemento Literário» aos jovens poetas do Porto (o que quer que isso de jovens poetas do Porto fosse e era, asseguro-vos, algo muito misterioso) e queria poemas jovens e primaveris (o que quer que isso fosse também). Acorremos em massa, os jovens, os poetas e a Primavera.
A primeira reunião foi em casa do António Reis, nas margens do Douro, do lado de Gaia. Entrámos todos timidamente, quase com medo, o Chico, o Manuel Bernardo, o Rui, o Madureira, o Eduardo Guerra Carneiro (e tantos de que já não me recordo!), como se profanássemos um santuário ou a nossa própria intimidade. Levávamos os bolsos cheios, em pequenos cadernos, folhas soltas, incipientes livros, com o melhor que tínhamos: o coração. E o Reis recebeu o nosso coração com o seu enorme coração aberto. (É provavelmente piegas, isto, mas não consigo dizê-lo de outro modo. Porque é verdade?
Nunca tínhamos lido os nossos poemas em público. Lemo-los para o Reis e ele ouviu-nos, durante horas, com infinita paciência, e não menos infinita ironia (muitas vocações terão ali acabado, naquela noite terrível, e foi o Reis que lhes deu, com doces e duras palavras paternais, o golpe de misericórdia!). Dessa bela e nocturna noite recordo o fatídico momento da leitura do meu poema. Eu também nunca tinha lido um poema alto, e comecei a fazê-lo com o orgulho agressivo de quem espera o pior e sabe de antemão que esse pior será injusto. Antes de mim, o Manuel Bernardo tinha lido o seu, era qualquer coisa do género «Amanhã vamos fazer as coisas mais belas do mundo, etc., etc.», e o Reis tinha comentado, fulminante, ainda o último verso ecoava perplexamente na sala: «Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje, Manuel Bernardo!».
Já não me lembro do poema que li, perdi-o entretanto para sempre em alguma gaveta das muitas casas por onde passei. Lembro-me só que, terminada a leitura, o Reis me perguntou: «Você conhece o Ponge?». Eu não conhecia, e o Reis foi lá dentro e trouxe-me um livro: «Acho que você há-de gostar». Eu não sabia se aquilo era um sim ou um não; mais tarde soube que era um sim, o poema saiu na página da Primavera do JN, aliás ao lado do do Manuel Bernardo e dos poemas dos outros todos!
A partir de então começámos a encontrar-nos mais vezes, e ainda enchemos com os nossos imaturos sonhos e rimas outra página do «Suplemento Literário» do dr. Teixeira Neves. A casa do Reis já era pequena, e imprópria para tantos poetas e tanto barulho. Mudámo-nos para cafés fora do tempo e do espaço: o Piolho, o Estrela, o Magestic. E, quando, às duas da manhã, os cafés fechavam, para o salão de cabeleireiro da Rua de Guedes de Azevedo onde o Madureira tinha arranjado emprego, o «Salão Capri», de sua graça (acho que ainda existe).
Depois, aos poucos, os poemas começaram a escassear e a figura do Reis a perder, com a sua fácil amizade, algum mistério. Ficámos reduzidos a uma pequena meia dúzia; o Reis continuou a falar-nos de poetas e de poesia e nós a ouvi-lo religiosamente, até que ele partiu, finalmente, para Lisboa. A última memória que tenho das sessões poéticas do «Salão Capri» é uma longa correria, debaixo da chuva, entre o Piolho e a Rua de Guedes de Azevedo. O Reis ia à frente, com o inevitável casaco de couro aberto ao vento, e nós atrás, sobraçando folhas dactilografadas e rindo (o Madureira queixava-se que deixara cair e perdera, nessa noite, algures sob a tempestade, um livro inteiro de poemas, coisa em que todos – que tínhamos também, cada um, as suas mentiras – fingíamos cumplicentemente acreditar). Tentei várias vezes, em vão, escrever um poema a partir da imagem desses seis ou sete poetas primaveris em louca correria atrás dos «Poemas quotidianos», fustigados, os poetas e os poemas, pela mais prosaica das chuvas. Mas a poesia, aprendi depois (e à minha custa) não se faz só com memórias, embora continue sem saber muito bem como ela se faz; foi algo que o Reis nunca pôde ensinar-nos, ele que, no entanto, nos ensinou, nesses dias misteriosos da juventude, coisas primárias e quotidianas sobre nós próprios e sobre a nossa juventude que poucos poetas do mundo (eu é que sei!) nos poderiam, como ele fez, ensinar.
Nunca mais o vi, até poucos dias antes da sua morte, no dia dos 50 anos do Chico. Receei então, quando dei subitamente com ele ao fundo da sala, que não me reconhecesse. Tantas coisas se tinham passado entretanto, tantas coisas mudado! Mas ele abraçou-me com tal força que soube então, comovidamente, com todo o meu corpo, que, afinal, algo essencial não mudara. E o meu coração rejubilou como se eu fosse jovem outra vez, e apertei-o também com quanta força tinha. Não com tanta força porém, hoje que sei que me despedia dele para sempre, como quereria ter podido então fazê-lo. Mas essas são coisas, indecifráveis e invioláveis, que estão para além da memória e das imagens, um património fundo e secreto que nenhumas palavras me poderão roubar e que nos pertence só aos dois, a mim e ao Reis."

Manuel António Pina


Regina Guimarães (Directora) - A Grande Ilusão, n.º 13/14 (Out. 91 a Mai. 92), pág. 4-5, Edições Afrontamento, Porto, 1992.

domingo, setembro 05, 2004

013. AGRADECIMENTOS

Ao Luís d’ A Montanha Mágica pelo destaque dado ao blogue "António Reis".

Penso que o cinema
É um caso de vida ou de morte.
Não podemos fazer batota.

              António Reis

À Cristina da Janela Indiscreta pelo presente que nos ofereceu. A Cristina indicou-nos o site Amor de Perdição, com informação sobre Jaime, Trás-os-Montes, Ana e Rosa de Areia, o que nos permitiu, desde já, enriquecer o blogue com mais algumas fotografias (todas da colecção da Cinemateca Portuguesa), bem como criar um novo post (“Trás-os-Montes” – Festivais e Prémios) e melhorar um outro (Ficha de “Trás-os-Montes”).

Ao Filinto de A [Minha] Jornada que também se referiu ao nosso blogue num post intitulado “O papel blogosférico”.

Muito obrigado pela gentileza e colaboração.

Já hoje, o nosso blogue mereceu palavras de apreço de José Pacheco Pereira, do Abrupto, e de Vital Moreira, do Causa Nossa. Sensibilizado, agradeço a honra. Muito obrigado.

Este blogue tem a colaboração dos meus filhos. São eles os responsáveis por uma boa parte da transcrição dos textos para suporte informático. Exigiram que eu aqui esclarecesse este assunto. Está esclarecido!

012. O ROMANCE DOS INCURÁVEIS

"Quando eu conheci o António e a Margarida, o casal apareceu-me como saído das páginas da Agustina: Os Incuráveis? O Susto? Os Ternos Guerreiros?
A Margarida era magríssima, de olhos enormes, como um pássaro que nunca descesse à terra. Falava pouco mas criava à sua volta um campo magnético quase asfixiante. O António falava muito, mas de repente a Margarida arrebatava-o pelos ares fora, e a gente deixava de os ouvir. De que falavam, lá entre as nuvens, ou nas entranhas da terra? Falavam talvez de filmes por fazer, ouviam-se gritos de terror, abafados pelas nuvens, caíam cá em baixo penas ensanguentadas, salpicos vermelhos subiam à tona da água. Quando voltavam, já mais compostos e serenos, vestidos de gente, fingiam de novo ser um casal como os outros, um casal de artistas... Nunca saberemos o que os movia. O amor? A guerra? O sangue? O susto? As fitas?
Ao lado deles os trabalhos de amor dos outros casais perdiam o sal, perdiam o fogo. Pobres de nós. Quem os poderia imitar?"

Paulo Rocha, cineasta

Regina Guimarães (Directora) - A Grande Ilusão, n.º 13/14 (Out. 91 a Mai. 92), pág. 9, Edições Afrontamento, Porto, 1992

011. "TRÁS-OS-MONTES" - Festivais e Prémios

- Festival de Toulon 1976 – Prémio Especial do Júri, Prémio da Crítica
- Festival de Pesaro 1976 - Prémio da Crítica
- Festival de Belford 1976
- XI Challenge de Cartago 1976
- Festival de Manheim 1977 – Grande Prémio
- Festival de Roterdão 1977
- Festival de Anvers 1977
- Festival de Bedalmena 1977
- Festival de Londres 1977
- Seleccionado para a Semana dos Cahiers du Cinéma 1977
- Festival de Viermole 1978 – Prémio Melhor Filme, Prémio Melhor Realização
- Festival de Belgrado 1978
- Bienal de Veneza 1978
- Mostra de São Paulo 1978
- Seleccionado para o Seminário Flaherty 1978
- Festival de Lecce (Itália) 1979 – Menção Honrosa à Cinematografia

- Convidado oficialmente para os Festivais de Locarno, Berlim e Bruxelas, onde não pôde estar presente por incompatibilidade de datas com outros Festivais Internacionais

- Igualmente convidado para os Festivais de Hong-Kong e Guayaquil, não podendo estar presente por o IPC-Instituto Português de Cinema não dispôr de cópias

- 6 semanas de exibição em Paris; exibição comercial ainda noutras localidades francesas, como Toulouse, Lyon, Lille e Marselha.
"

Informação recolhida no site Amor de Perdição.pt em "Trás-os-Montes"

sábado, setembro 04, 2004

010. "TRÁS-OS-MONTES" na inauguração da sala da Cinemateca

Em Julho / Agosto de 1980, um conjunto de 67 filmes portugueses, situados entre "Os Crimes de Diogo Alves" de João Tavares e "Manhã Submersa" de Lauro António, inauguraram a sala de Lisboa da Cinemateca Portuguesa, sendo secretário de Estado da Cultura Vasco Pulido Valente e Director da Cinemateca o saudoso Dr. Manuel Félix Ribeiro.
"Trás-os-Montes" foi um dos filmes seleccionados.
A "folha" da Cinemateca sobre "Trás-os-Montes" e publicada no catálogo diz o seguinte:

"Evocação de uma província portuguesa, o Nordeste, onde as raízes históricas seculares se confundem com as do país irmão que o Douro une.
As crianças, as mães, as mulheres, os velhos, a casa, a terra...
A vida de cada dia, o imaginário, as tarefas prestes a desaparecer, a agricultura de subsistência...
A erosão.
O tempo e a distância.
A presença dos ausentes, de todos os que partiram em direcção a outros horizontes.
Um poema inspirado por Trás-os-Montes, interpretado pelos seus habitantes.

UMA SÍNTESE AMBICIOSA

Em relação a «Trás-os-Montes», e do ponto de vista de realizador, parece-me de sublinhar até que ponto um público comum estará preparado para receber este filme numa exibição normal, visto que ele conduz, quase necessariamente, a um debate sobre o que é cultura popular e um cinema não narrativo.
Outro aspecto, importante, deve-se à qualidade humana e ao amor com que António Reis e Margarida Martins Cordeiro se dedicaram ao levantamenteo de uma região, sendo, talvez, das primeiras vezes na história do cinema português que um filme estabelece uma síntese dialéctica ambiciosa quanto ao que os sociólogos chamam de «cultura popular»... A quantidade de interrogações que o filme põe ao espectador mais avisado.
Por sua vez, isto dá a «Trás-os-Montes», de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, uma posição muito forte e muito original na tentativa de encontrar - coisa que se está a passar um pouco por todo o mundo - um cinema aberto, portanto um cinema que questiona as próprias formas da linguagem cinematográfica, e mesmo as noções de cinema de ficção, cinema de comunicação, por exemplo, para as fundir num todo global.
Penso que um trabalho dotado de tais características terá, sempre, dificuldades com o público; por isso, filmes como «Trás-os-Montes» não há muitos por toda a parte, e os poucos que existem são, normalmente, escamoteados dos circuitos normais de exibição.
Que «Trás-os-Montes» tenha conseguido passar em Lisboa, mesmo numa sala de estúdio, e mesmo às sete da tarde é, apesar de tudo, uma vitória que, no entanto, só terá sentido se o público fizer um esforço para acompanhar a obra, que é daquelas que tendem, como todas as grandes do cinema, a criar um novo tipo de espectador.

Fernando Lopes

UM FRESCO EVOCATÓRIO

«Trás-os-Montes» é essencialmente documental, embora corresponda a uma visão muito peculiar dos seus autores. Pode dizer-se que insere vários níveis duma memória algo desencantada, que penetra no quotidiano, e reconstituição fantástica de certos pormenores da história e tradição.
Trata-se, melhor, dum fresco ao mesmo tempo crítico e evocatório, que apela para a sensibilidade do espectador, ao mesmo tempo que lhe suscita um assumir de consciência. Salienta-se, principalmente, o grande vigor da imagem, o que ela transmite e sugestiona: as próprias «ausências» têm um indesmentível cariz significante.
Assim, Trás-os-Montes como país despovoado - a desoladora realidade do esvair emigratório, ou como território localizado nos confins - logo, longe da atenção dos governos «centrais»... Mas o filme colhe igualmente e transmite-nos toda a ressonância cultural genuína e de alta dignidade, bem como a força generosa e o carácter indomável dos seus naturais.

José de Matos-Cruz

UM PARALELO

«Trás-os-Montes», o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, tem pouco a ver com o mais recente cinema português. É às vezes documento, às vezes não; também não conta rigorosamente uma história; joga, em aparência, na indefinição, ou na hibridez, se se quiser. Creio que, ao fim de quase duas horas de projecção, o espectador desprevenido domina mal a espécie de envoûtement tentada pelos autores. Confuso, dirá: «É giro». Irritado talvez: «Está bem, mas gosto de outras coisas» (o guião, o plot).
«Trás-os-Montes» pode ser visto preferentemente como uma apologia, uma denúncia (e já foi visto dessas duas formas diferentes); como o produto da oposição campo-cidade (idem); como um exercício da memória privilegiada (idem, sempre). Digamos que os autores propõem, propuseram uma obra aberta. Disso falou, por outras palavras o realizador francês Jean Rouch, a primeira voz estrangeira a propagandear o filme.
Leitura entre leituras, a minha socorre-se do que sei sobre as tendências da poesia novíssima que por cá se faz. Vamos então. Parece-me de inscrever «Trás-os-Montes» na malha complexa de que se tece o novo discurso (entendido no plural), guardadas as convenientes distâncias. Já se reparou que o conceito de antiepopeia, trazido por Luísa Neto Jorge com os «Dezanove Recantos», e alargado depois por Gastão Cruz a outras poéticas últimas, está presente até à obsessão no filme de António Reis-Margarida Cordeiro? É que neste há um reequilíbrio contínuo entre o rigor escasso pós-«Poesia 61» e os grandes planejamentos metafóricos que vão de um Humberto Hélder a um Nuno Júdice, passando pelo João Pedro Grabato Dias, de Moçambique? E que a carga de citações tem a servi-la a maestria diluente dum jogo Miguel Ferandes Jorge, dum António Franco-Alexandre? Enfim, que «Trás-os-Montes» se interroga contínua, apaixonadamente sobre a linguagem, herdada em estado de exaustão, contaminada de retórica fruste?
Susteria aqui o paralelo. Um dos autores do filme, António Reis, revelou-se como poeta em finais dos anos 50 («Poemas Quotidiano», depois «Novos Poemas Quotidianos»), e eis também o que eu queria referenciar - que «Trás-os-Montes», sendo cinema, não podendo ser senão a pungência do cinema, é ao mesmo tempo o desenvolvimento de uma poética. Na parte egoística que me toca, espero doravante o António Reis lírico

F. Assis Pacheco


José de Matos-Cruz - Panorama do Cinema Português, Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1980

sexta-feira, setembro 03, 2004

009. "TRÁS-OS-MONTES" nos Cahiers du Cinéma (Conclusão)

ANTÓNIO REIS / MARGARIDA CORDEIRO - ENTREVISTA

Serge Daney
Como é que te ocorreu a ideia do filme?
António Reis
Já disse atrás que a Margarida nasceu em Trás-os-Montes. Eu nasci numa província sem força, sem beleza, sem expressão, já apagada, a 6 km do Porto. Daí o meu desejo interior de renascer noutro lugar. E a primeira vez que fui a Trás-os-Montes, com um amigo arquitecto, senti que renascia ali. Portanto, conhecia a província há alguns anos e, ao trabalhar com a Margarida, e indo lá muitas vezes, disse para comigo que seria bom fazer um filme naquela região, porque tudo confluía num sentido cinematográfico. De tal maneira que, quando começámos a filmar, foi como se muitas tomadas de plano estivessem feitas há muito tempo. O que não quer dizer que não planificámos as coisas, simplesmente tratava-se de uma planificação flexível. Por exemplo, em numerosas cenas é muito difícil distinguir o que foi filmado em directo do que não o foi. A dialéctica entre estas duas posições estéticas foi para nós um inferno. Mas pensamos que conseguimos fazer, não uma síntese, mas uma confrontação de contrários. Mesmo em directo tínhamos necessidade de toda a velocidade e de toda a surpresa, mas, por outro lado, depurámos o que era parasitário, o que não tinha sentido ou era populismo gratuito. E, para isto, necessitávamos de um olhar cirúrgico.
Serge Daney
Tive a sensação de que, durante toda a primeira parte (a das crianças), utilizavas a ficção para progressivamente dar informações mais despidas, mais próximas daquilo que se espera de um documentário.
António Reis
Mas quando a mãe conta a história da Branca Flor, estamos na ficção ou no documentário? Estamos em ambos. É frequente, numa aldeia, que um acontecimento integre a ficção. O que é surpreendente é que, se nos limitamos a estar por lá, apenas vemos a poeira dourada, os animais na fonte, etc. Mas se pudermos passar de uma casa a outra, depois atravessar uma ribeira, depois passar por uma porta, aí as coisas tornam-se de tal maneira complexas que já não podes falar unicamente de ficção e de documentário. Nessa casa, podes ouvir aquela mãe contar a história da Branca Flor enquando trabalha. E as crianças da Idade Média são como a Branca Flor em imagens. O que se compreende nestas aldeias portuguesas é que é errado separar a cultura milenária, as civilizações que vieram depois e a vida quotidiana de hoje. É justamente aí, nessa recusa de separar, que encontro um elemento progressista e revolucionário. Porque penso que as massas, aí, saberão assimilar, dum ponto de vista crítico, formas de vida que não ficam a dever nada à cidade. Porque aquelas gentes não estão dispostas a ser sempre perdedoras. Ao verem os filhos que regressam da Europa, começam a saber que isso não compensa. Eles constroem uma casa «ao lado» das outras, encerram-se nela e os pais pensam: «o meu filho enlouqueceu!». E daí resulta o desacordo que os velhos sentem em relação aos seus próprios filhos. Sabem muito bem que possuem uma riqueza e que são vítimas de um genocídio. É por isso que, nesses momentos, podem decidir: vamos cortar todos os fornecimentos de alimentos a Lisboa. Não se trata de uma posição reaccionária, o que eles desejam é que seja reconhecida a importância e validade das suas formas de fazer e de pensar.
Para voltar ao que disseste: há realmente uma tensão do filme. Essa tensão é o lírico, sempre ameaçado. Mesmo quando as crianças brincam no ribeiro, descobrem a morte através da truta congelada. A grande casa poeirenta, ou os mortos, ou a criança que se diverte com o pião (aquela que vai à mina), é sempre um mundo ameaçado. Creio que o filme está sempre em metamorfose. A parte dita «final» deve agir como boomerang: é necessário que os espectadores sejam compensados pelo espaço e tempo líricos da primeira parte para suportar o que se segue. Quando o ferreiro lamenta que as pessoas deixem a aldeia, é justamente às crianças mutiladas e aos mortos das guerras coloniais que isso se refere, são eles. Os que vão para Lisboa, para a Europa, para os bairros degradados, para as fábricas, etc. Esta é a razão por que tratámos essas crianças com tanta intensidade. Se vais a Trás-os-Montes, verás, elas são assim, não há naturalismo, são ainda um pouco como anjos.
Serge Daney
Tem-se também o sentimento de que são elas que fazem a ligação com o passado. Os adultos passam como que para segundo plano. Aparecem através da voz off, e não de discursos ao vivo.
António Reis
Porque ali não há adultos. A voz off que tu ouves, um pouco violenta, um pouco oprimida, é a voz de um personagem que se vê por um breve instante no filme. É um filho de mineiro, um quadro. O seu pai esteve cinquenta anos a trabalhar na mina. A voz desse homem está traumatizada. Fala da antiga comunidade de mineiros que eram antigos camponeses. No nosso filme, nunca falamos das comunidades de aldeias, mas deve sentir-se que elas existem. Dançam, caminham juntas no escuro. A voz off faz contraponto à vida dos mineiros como o assobio do comboio faz contraponto à música de Pergolese, que se ouve por um momento. Há sempre um cruzamento, uma dialéctica do som com a imagem, que me interessa muito mais que todas essas histórias de raccords, de elipses e outras regras dos manuais de cinema.
Serge Daney
Num momento do filme citas um texto de Kafka que diz que as pessoas estão longe da Capital, logo, da Lei, que procuram adivinhá-la mas não o conseguem, porque a Lei é possuída por um pequeno número de pessoas, etc. Será que podemos considerar que é uma analogia da situação histórica de Trás-os-Montes em relação a Lisboa?
António Reis
Sim. Traduzimos o texto de Kafka no subdialecto e, repentinamente, o texto tornou-se muito gutural, muito expressivo, impregnado de uma força extraordinária. Eles têm uma palavra maravilhosa para designar a maneira como os nobres manipulam a Lei em seu proveito: «baratím». Porque as leis da comunidade, essas, são flexíveis, são transformadas pelo devir histórico. São, é claro, leis orais, não são feitas de uma vez por todas, são flexíveis. E é por serem assim flexíveis que foram liquidadas pelas Leis escritas. Num dia, é um pastor que leva todas as ovelhas a pastar, noutro dia, é outro pastor. Há uma espécie de comunismo primitivo nessas regiões. E sente-se que, por vezes, eles estão mais perto do futuro do que as pessoas da cidade. Por exemplo, se em Lisboa falta a água vinte e quatro horas, é a nevrose colectiva. Veja-se como um camponês, na dureza da sua vida, enfrenta a neve, o fogo, o calor, etc. Com que resistência. Mesmo quando alguns camponeses foram presos pela PIDE, conseguiram resistir. Porquê? E quantos companheiros não conheci no Porto, que falavam muito e muito alto, e depois quando estiveram presos… Não quero dizer que os camponeses são mais corajosos e os outros frouxos. Mas, por exemplo, por que é que, quando os camponeses do Baixo Alentejo foram presos, tiveram uma resistência que as pessoas da cidade não tinham?
Serge Daney
Sente-se que o teu filme é feito de blocos imagem-som em relação aos quais recusas qualquer espécie de batota…
António Reis
Fizemos o som síncrono, evidentemente. Como dizes, organizámos blocos, como se fosse possível ter som sinfónico. São unidades que, de facto, vão por vezes repercutir-se mais longe. Dou-te um exemplo: quando a velha de negro vem dizer à criança que se magoou: não chores que vou cantar-te «Galandun» (um canto da Idade Média), há uma voz que diz: «Os dançarinos que se levantem, que se levantem…». E ela está já em vias de memorizar o que perdeu, e vemos então esbatidos os homens que dançam muito perto, e depois muito longe, como num postal. Deixamos que seja o espectador a dizer: um postal! Porque, na verdade, jamais os camponeses dançaram assim. Isto é o que nós imaginamos actualmente. Mas atenção: é preciso esperar até ao fim do filme para perceber o verdadeiro significado desse plano. Porque depois, vendo o velho que olha, poderíamos crer que olha os dançarinos, mas isso não é verdade. São desilusões sucessivas. As pessoas dizem frequentemente que o ritmo do filme é demasiado lento. Isto porque é necessário esperar pelo fim do filme para dar significado a determinadas coisas. E a forma como os diferentes blocos se dialectizam, para nós, é muito importante. O que nos deixou muito aborrecidos foi termos feito a montagem a preto e a branco, e não termos tido tempo suficiente para trabalhar a cor. Trabalhar doze messes sobre uma mesa de montagem a montar o preto e branco um filme que deveríamos ver a cores!
Serge Daney
A quem foi mostrado o filme? Que reacções provocou?
António Reis
Antes de mais, mostrámo-lo em antestreia aos camponeses que filmaram connosco. De um modo geral, gostaram do filme, reagiram muito bem, nomeadamente às «conotações». Recebemos algumas críticas negativas, mas elas provinham de reaccionários como os que se encontram em Lisboa e no Porto. Reprovavam a ausência da religião cristã, não termos mostrado as barragens, a cozinha tradicional, a pobreza, etc. Quiseram mesmo queimar o filme e destruir os negativos. Mas foi uma reacção muito restrita, proveniente de pessoas que conheço e que passam a vida nos cafés. O importante, para nós eram os camponeses...
Serge Daney
Mas, justamente, como pode um filme contribuir para ajudar esses camponeses, que estão, para além do mais, tão separados no cinema?
António Reis
É claro que há problemas de linguagem cinematográfica. Eles não estão na posse dessa linguagem. Mas existem elementos que são muito importantes na sua vida quotidiana, coisas que reenviam ao teatro da Idade Média. Vivem num espaço, tanto nas suas casas como na natureza, que é já cinematográfico. Estou certo que, se eles estudassem cinema, se tornariam cineastas. Um camponês disse-me um dia: «Como? Vais para Lisboa sem nunca ter visto a luz que vai de tal quilómetro a tal quilómetro? Como é que podes?» Dificilmente encontro em Lisboa pessoas que me falam da luz sobre as paredes ou sobre as ruas. Quando os camponeses viram o filme, reconheceram coisas que amavam e que lhes pertenciam, mesmo se por vezes a nossa imaginação ou a nossa liberdade de expressão os desorientavam. Por exemplo, a cena da neve. Eles nunca comeram neve, como se vê no filme, mas eles sofrem por causa da neve, da beleza da neve, da neve que queima. Deste modo, assim como há povos que comem terra ou palha, fi-los comer neve.

Extractos de entrevista publicada in Cahiers du Cinema, n.º 276, Junho de 1977. Tradução de Isabel Câmara Pestana e Miguel Wandschneider

Recolhido em: Martins, Ana e outros (da Comissão Organizadora do Ciclo) - Olhares sobre Portugal: Cinema e Antropologia, págs. 45-51, Centro de Estudos de Antropologia Social do I.S.C.T.E. e ABC Cine-Clube de Lisboa, Lisboa, 1993.