O filme parte de uma descoberta: a da obra de artista plástico de Jaime Fernandes, internado num Hospital Psiquiátrico. O material encontrado é de facto fascinante: toda uma galeria, monótona e obsessiva, de corpos de homens, e, sobretudo, de animais, traçada numa rede densíssima de linhas, num grafismo simultaneamente nítido e emaranhado. É claro que o cineasta nos obriga a passar os olhos repetidas vezes por estas figuras compactas e esmagadas, e se interroga sobre a forma de apelo que se desprende desta actividade desesperada e insistente. Ao mesmo tempo, são postos em relevo certos fragmentos de cartas com frases aparentemente desconexas. Percebemos que Jaime nos quer dizer qualquer coisa, e que essa qualquer coisa lhe escapa, e daí a repetição, a monotonia referida, a evidência incontrolável desse ensinamento – qualquer coisa que, para nós, espectadores, surge como definitivamente perdida. O filme joga-se por inteiro no segredo desta dor irrecuperável: por isso podemos dizer que Jaime, sendo uma obra sobre a loucura e a criação, sobre o atroz vazio dos gestos no recinto de um asilo para loucos, sobre a nostalgia muito funda de uma harmonia apagada, é, acima de tudo, uma espécie de reflexão rasante à superfície das imagens onde nos é dado pensar a solidão imensa em que cada destino se configura.
Alguns poderão supor que esta primeira obra de António Reis (que, muito embora contando com a colaboração de Margarida Martins Cordeiro, não a promove ainda ao papel de autora) é algo de consideravelmente diferente daquilo que nos virá a surgir com Trás-os-Montes e Ana. É lícito supor o contrário: que é precisamente aqui que se inscreve todo o espaço em que se vai desenrolar o trabalho artístico de António Reis – na medida em que o eixo caos-cosmos, loucura-serenidade, se afirma desde logo com uma precisão iniludível. De certo modo, todo o cinema de António Reis repete o gesto de Jaime: é uma vitória precária do cosmos sobre o caos, da harmonia sobre as trevas, da arte sobre a loucura. Se há qualquer coisa que explica a minuciosa e insensata obsessão de António Reis e Margarida Martins Cordeiro em relação aos seus filmes, isso passa seguramente por uma exigência, sempre sentida com particular acuidade, de travar o passo à desordem e à turbulência que a cada instante se insinuam ao longo das noites de cada dia.
Jaime constrói-se a partir de imagens do hospital onde Jaime Fernandes viveu grande parte da sua vida. Essas primeiras sequências são envolvidas na espessura de um silêncio sem tréguas: é a inutilidade dos passos que se dão, é a desmesura dos gestos face à paralisia do mundo, é a rotina dos dias sempre iguais acumulada no mais fundo e entranhado dos objectos de uso comum, é a tentativa de nos aproximar (cautelosamente, numa espécie de pudor e reticência) de um mundo que, por definição, se coloca sempre no interior da própria separação irredutível. Depois a música entra na imagem – e deparamos com uma constelação de referências que determina a problemática do filme: por um lado, o canto de Armstrong, interminável modulação da dor; por outro, Telleman e a recuperação de uma natureza cada vez mais vivida numa espécie de assombro (é espantoso o modo como António Reis, ao restituir o espaço rural da primeira vida de Jaime, lhe confere uma espécie de vibração alucinatória e de violência mágica); por fim, Stockhausen, através do qual se opera o cálculo do caos. É este tecido subtil, e discretamente trabalhado, que impede o filme de deslizar para qualquer das suas eventuais perversões: fosse, talvez a mais óbvia, a de uma denúncia das condições hospitalares (que está presente, mas rasurada como formulação ideológica); ou então a de uma possível tendência para equacionar em termos pesadamente teóricos a relação entre a arte, o espaço da criação e a loucura; ou ainda, embora num plano mais recuado, a possível metáfora de um destino português de clausura e impotência: louco, sim, porque «quis grandeza qual a sorte a não dá». Mas a sorte é aqui uma palavra fundamental: digamos que toda a sorte do filme se concentra na relação que Jaime teve com a sua sorte, e por isso o filme desaba sobre nós próprios e a nossa inevitável relação com a sorte que nos cabe. Como diria Maria Velho da Costa, num pequeno livro com o qual Jaime tem muito a ver, Português, trabalhador, doente mental, «o que o louco reivindica é o privilégio total que, de facto, alguns detêm, sem nenhuma razão – o psicótico é aquele que delira grandezas e bens como um direito próprio ou que se arroga poderes de crítica radicais a todo o sistema social em que está inserido – ou que desiste totalmente se não possui tudo. Por só ser e possuir demasiado pouco». Donde, «o psicótico é o indivíduo cuja consciência de estar no mundo não suporta a excessiva diferença e distanciação entre os homens (que lhe é feita)». Toda a beleza deste filme admirável de António Reis resulta de uma colocação do olhar, não num lugar de saber teórico ou num posto de combate ideológico, mas nesse interior ilimitado que é o cerne da própria distanciação entre os homens.
Eduardo Prado Coelho – Vinte Anos de Cinema português (1962–1982), 1.ª edição, págs. 62-65, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa, 1983.