183. «ANA» - Crítica de António Loja Neves
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
MÃE ANA, MÃE TERRA
As emoções da infância que nascem de novo, sob outras formas, com outros rostos, outras.
O trabalho imenso para que as transmutações surjam e permaneçam na obra inteira e já independente de nós.
A. REIS E M. CORDEIRO
Como difícil se torna escrever sobre o objecto amado, o elemento da paixão! É comum dizer-se terem os poetas resolvido este problema, mas a verdade é que ele continua a limitar o comum dos mortais...
Nesta frenética velocidade do quotidiano em que vamos e que o cinema não só assumiu totalmente como corporizou e, por sua vez, mais fomentou no espectador, é quase uma atitude contra natura desacelerar e, ao ralenti, degustar um belo momento de criação, os seus espaços, os sons, a narrativa, a vida que dele se desprende. Daí que estremeçamos no receio de que este filme belo seja engolido na voragem que pouco deseja compreender, no trepidante olhar habituado ao desvio óptico de anos e anos de uma linguagem cinematográfica sempre igual, standardizada, de ritmo massificado, (a)celerada.
Em ANA o ritmo acontece por herança da própria vida e do ambiente que retrata, num constante e pendular ciclo anual que demarca as estações, os trabalhos, os nascimentos, os pequenos actos que perpetuam uma atitude de vida e quase que as mortes. Esse ritmo, transmontano ainda mais que campesino, não é dolente mas penoso, não preguiça mas reflecte a canseira dos trabalhos árduos feitos a pulso sem a participação da técnica que facilita e encurta o esforço.
É este o ritmo de ANA, diametralmente oposto ao tradicional ritmo cinematográfico. Exactamente por isso pessoas há, mais incautas e inquietas, que não resistem à cadência de ANA. Pouco avisadas e nada preocupadas em entender as causas deste ritmo desusado, longe do Nordeste não apenas geograficamente mas também sensorialmente, perdem o pulso ao filme não calculando tudo o mais que estão a desperdiçar. É verdade que o ritmo é lento mas porque espelha o elo umbilical que une a obra à realidade do isolamento da vida transmontana. Essa lentidão aumenta de significado quando admitimos ser ainda aquele o ritmo preciso da recordação, o tempo exacto do funcionamento da memória.
LOCALIZAR, UNIVERSALIZAR
Filme sobre um território, observação de olhar íntimo, é inevitável que transpareça a fatal lentidão de ceifar um campo de trigo sozinho e com uma simples foice. Certamente que a presença trepidante de um tractor, mais a sul, traria consigo outro ritmo, até pela presença de um som mais dinâmico, maquinizado, de compasso guiado por bielas e manivelas. Mas é também a expressão da regularidade de hábitos de uma população que não conhece sobressaltos nos seus actos do quotidiano, senão em momentos raros como os da presença da troupe de saltimbancos: e aí já se reconhece todo um outro fervilhar, uma dinâmica diferente, um desassossego.
Assim, a linguagem cinematográfica a que estamos por demais habituados sofre uma descodificação parcelar: deixa de ser o que tradicional e superficialmente representa no cinema vulgaris e passa a representar etimologicamente o tempo retratado, a memória que se deseja reflectir, os hábitos ancestrais e a lenta mas inevitável caminhada para a morte, já vizinha.
Torna-se evidente que estamos face a uma obra que se construiu exigente e reclama de nós - exigente ainda - a sensibilidade mais apurada e a inteligência mais exercitada; a nós que vamos tendo os nossos sentidos cada vez mais embutidos... e as desatenções catastróficas cada vez mais justificadas!
Mas errado está o raciocínio que afirme não se compreender ANA pela incompreensão (ou desconhecimento) de Trás-os-Montes: já vários autores avisaram para a lição de António Reis e Margarida Cordeiro ao conseguirem a verdadeira comunicação universal através de um tema que se suporia regionalmente localizado. Daí que o problema não resida, para esses espectadores, na falta de relação com Nordeste mas, sobremaneira, na falsa relação com a vida, no embrutecimento dos sentidos, na esclerose da sensibilidade.
UM ACTO DE (PRO)CRIAÇÃO!
Que parto de dor se vislumbra em ANA! Não pode ter sido de outra maneira quando todos os pormenores indicam um cuidadoso e requintado acto de amor, desde o primeiro sintoma da ideia até à consumação da cópia zero. António e Margarida são criadores intransigentes para quem nada pode dever-se ao acaso: a matéria dos tecidos, as suas cores, as rendas, as flores, os utensílios do décor, a própria criação de diversos animais em condições específicas para determinada utilização são uma atitude de criação que não pode deixar de transmitir à obra os seus reflexos e ao espectador sensível e despojado de preconceitos aquele choque provocado pela beleza das imagens e a acutilância dos sons.
Poetas dos sons e das cores António Reis e Margarida Cordeiro utilizam-nos magistralmente transformando-nos em elo de ligação entre planos, em suporte de elipses arrojadas, em despoletadores de acções essenciais ao desenvolvimento da obra.
O amarelo-pão, o verde-seiva, o azul de céu e água são colocados no filme com um profundo amor pelos locais retratados, pelas suas cores e pelo próprio acto de criar uma obra de arte a partir da natureza e do intrínseco amor por ela. Nesta paixão os autores vão como que pintando a película, ao mesmo tempo que a animam com a transposição da vida. Com a preocupação de despojar a sua obra de todo o lirismo doentio, os autores escalpelizaram a relação dos homens com o ambiente, não apenas no espaço nordestino como ainda no que se refere à milenar caminhada da humanidade, numa atitude que nos avisa: tende atenção, não presenciais um exercício de estilo mas o reflexo trabalhado da natureza e da relação do homem com ela!
Ao crítico diletante e desatento que sentiu a enorme falta de «(...) uma frugal conversa sobre o leiteiro, um pequenos escândalo familiar, o desafogo de um sorriso», (1) faltou-lhe sim a sensibilidade suficiente para perceber que a verdade do dia-a-dia não se esconde no filme nem na carga simbólica (sic) que cuidou nele vislumbrar, antes lá está presente em todos os actos das personagens, mais gritante e eloquente que uma retumbante discursata. Angustiado por não ver aqueles antes falarem, rirem e trabalharem, deixa passar despercebida a grande verdade: Mãe-Ana é a elocução mesmo quando acontece o silêncio, é a grande labuta, a mais difícil e árdua, aquela que se repete perpetuamente, sem alaridos ou chamadas de atenção, sem caixas altas de jornal mas que garantem a permanência da vida, de uma cultura, da experiência milenar do homem - tal como odre, a barca e os métodos que vinculam os povos da antiquíssima Mesopotâmia ou da actual Mirandela portuguesa...
FALAR DA VIDA, INTENSAMENTE
Se alguma noção tivesse que ser utilizada para definir este filme e cada um dos seus planos, seria indubitavelmente a do trabalho, a da labuta diária, a da luta pela sobrevivência contra a natureza agreste mas sempre em curiosa e íntima simbiose com ela. É a palavra trabalho que vem espontaneamente à ideia, a propósito deste filme! (2).
Mãe-Ana é a fiel guardiã de tudo isto, a certeza que nos fica de que continuamos, de que possuímos uma identidade e que levamos para a frente esse legado ancestral que nos codifica e nos faz ser tal qual somos. É essa presença e essa certeza que faz Louis Marcorelles afirmar (3): «Depois dela, pomo-nos a pensar, o mundo deixará de existir». Por isso e porque os nossos dias complicam e colocam em dúvida a transmissão desse legado...
O urbano tagarela, aldrabão da língua, dificilmente atentará nestas verdades. Daí a dissonância desta banda sonora com o trivial a que nos acostumou o mais cinema que por aí passa. Muito para além de nada deixar ao acaso, a banda sonora foi escrupulosamente trabalhada, preparando o espectador para a imagem e complementarizando-a quer na sua presença sonora quer na ausência do som (silêncios exactos e significativos, exigindo do espectador que ouça, que esforce o seu ouvido preguiçoso e tão mal tratado por dezenas de anos de crimes praticados por via das bandas sonoras repletas de maldades). A própria música não existe enquanto artifício, não aparece quando o autor não sabe o que meter ou entende que a imagem necessita ser urgentemente reforçada. Em ANA isso não acontece: a música só lá está quando dela se sente a absoluta necessidade.
A ESSÊNCIA DO CINEMA
A dialética do som e da imagem possui em ANA um exemplo notável que será certamente objecto de estudos teóricos num futuro.
É comum dizer-se que os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro são uma feliz simbiose do documentário com a ficção. São mais do que isso. Se simbiose existe, ela está exactamente nessa alquimia difícil do gesto sábio e raro de interceptar duas sensibilidades, duas atenções face à vida, duas experiências e dois percursos. Duas pessoas que, identificando-se em tantos aspectos e partilhando de muitos momentos importantes, batem em cadência, uníssonos mas não necessariamente com um mesmíssimo pulsar.
O que é extraordinário neste filme é que nos encontramos sempre diante de um equilíbrio que sentimos efémero e frágil, precário como o é o fio da memória, mas que jamais é quebrado. António Reis e Margarida Cordeiro vencem a batalha com uma segurança que nos maravilha. Obra particularmente exigente, sem relação directa com qualquer escola ou moda cinematográfica, sem paralelo na produção mundial actual, ANA vai ficar na História do Cinema. Deixando de lado a pequenez do pensamento local que nega grandeza e importância a tudo o que produz de bom a terra portuguesa, não podem restar dúvidas de que ANA é um marco inamovível na história, já longa de oitenta anos, da cinematografia mundial.
António Loja Neves
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NOTAS
(1) A. Cabrita in JORNAL DAS LETRAS de 5 de Junho de 1984.
(2) CAHIERS DU CINEMA, Outubro 1982.
(3) Louis Marcorelles in LE MONDE de 8 de Setembro de 1982.
Revista Cinema, n.º 8, págs. 14-16, Verão de 1985.