179. «ANA» - Família Reis
António Reis, Margarida Martins Cordeiro, Ana Umbelina Cordeiro Reis e Ana Maria Martins Guerra (Ana). Fotografia de Inácio Ludgero.
Jornal da Letras, pág. 8, de 14 a 20 de Maio de 1985.
Vida e obra do grande cineasta português António Reis (1927-1991)
António Reis, Margarida Martins Cordeiro, Ana Umbelina Cordeiro Reis e Ana Maria Martins Guerra (Ana). Fotografia de Inácio Ludgero.
Jornal da Letras, pág. 8, de 14 a 20 de Maio de 1985.
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
“No cinema é como se fôssemos uma só pessoa”
Há quase um ano, o «JL», por ocasião da publicação do seu centésimo número, promovia a antestreia em Lisboa de «Ana» de António Reis e Margarida Martins Cordeiro.
Apresentado pela primeira vez no Festival de Veneza em Setembro de 1982, o filme seria depois exibido noutros festivais de cinema, desde a Figueira da Foz, passando pelo Forum de Berlim, a Semana «Cahiers» em Paris, Hong Kong, Valladolid (onde recebeu a Espiga de Ouro), etc., e em França entrou no circuito da exibição comercial.
Entre nós, um longo (e lamentável) conflito opôs os realizadores ao Instituto Português de Cinema, o que levou a que a estreia do filme fosse sucessivamente adiada. A razão de António Reis e Margarida Cordeiro era tão simples como isto – a ampliação da película para 35 mm teria que respeitar o seu trabalho (e o público que iria ver o filme) e, como tal, devido às limitações dos laboratórios nacionais para executar tal tarefa, ela teria que ser realizada em França.
Finalmente resolvida a questão a contento dos realizadores, o adiamento da abertura do Fórum Picoas, foi outra razão para que o filme só no passado dia 6 fosse estreado em Lisboa.
Entretanto, e como se este longo e desencorajador processo de mais de dois anos não fosse suficiente, e numa decisão a todos os títulos escandalosos, uma parte (maioritária na altura da votação) da «Comissão de Qualidade» resolveu negar esse estatuto ao filme.
Para que[m], como os realizadores, viveu intimamente todo o percurso acidentado do filme, não é seguramente fácil neste momento assistir a mais este atropelo ao seu trabalho.
Na conversa que com eles mantivemos, tentámos não pensar em tudo isso, procurando que mais um pouco da sua atitude perante o cinema se fosse revelando no correr do amor por um filme como «Ana»...
– Acham que, pela sua radicalidade singular, se pode ver o «Ana» como um filme feito como se o cinema não existisse como se não tivesse existido cinema antes, nem depois?
Margarida Martins Cordeiro – Quando uma obra aparece e não copia nenhuma outra, acho que também se está a fazer cinema. Mas nós não estamos a inventar nada, no sentido em que o cinema se está a inventar sempre...
António Reis – A nossa posição é radical porque nós não nos inspiramos na obra tal do cinema para fazer os nossos filmes. O cinema tem uma espécie de pré-história, umas ingerências esquisitas das outras artes, mas o que é certo é que, desde os primórdios, nós podemos detectar o que vai ser o cinema como algo de muito específico em relação às outras artes. É isso que nos irmana com o espírito das formas cinematográficas. Nós negamo-nos a que situem o nosso cinema em relação ao cinema português, a nossa aventura no cinema é em relação à grande aventura do cinema mundial...
O nosso desejo de fazer cinema é fatal, pode-se dizer quase isso, e a nossa aventura é nesse fio. Não disputamos isso só por trabalho, é porque só esse risco e só essa oferta é que são justas para aparecer a alguém com um filme feito. E só esse risco que nos interessa, chamem-lhe megalomania ou o que quiserem... mas creio que se não fosse isso nós não faríamos cinema...
– Em Portugal, vocês são o único caso de duas pessoas que assinam filmes conjuntamente. Acham que é possível determinar a parte, ou a contribuição própria de cada um, nesses filmes?
M.M.C. – É realmente muito difícil. A nós mesmos nos escapa o fenómeno, porque quando estamos a trabalhar funcionamos como uma só pessoa.
A.R. – Isso é tão verdade que tu podes em quase todos os casos determinar o que é um cinema feito por mulheres ou por homens, mas nos nossos filmes não podes dizer que eles sejam feitos por um homem ou por uma mulher...
M.M.C. – Ou que seja neutro, que esteja neutralizado...
A.R. – Eu dir-te-ei que é tal a globalidade de que te falei de pequenas formas...
M.M.C. – Eu acho que a coisa, no fundo, é muito simples. Eu sou uma pessoa incompleta, tenho realmente coisas para que acho que tenho jeito, não estou a dizer quais são, e há outras que me fazem completamente carência.
Não sei porquê mas acho que o António Reis completa isso, ajusta-se como um puzzle. Não estou a falar na vida real, que nós temos as nossas desavenças como toda a gente, mas no cinema damo-nos perfeitamente é como se fôssemos uma só pessoa. Como se eu fosse a metade de um cérebro, de um lado, e ele fosse a outra metade. Não sei explicar melhor. Sei que realmente nós nos damos bem a trabalhar, e a obra sai, mas não sei dizer o que é meu e o que é dele.
Acredito que isso possa acontecer mais vezes noutros campos, acredito que sim. Talvez na vida quotidiana isso aconteça até mais vezes entre um homem e uma mulher...
Um acordo perfeito
– Mas então como é que isso acontece no processo de elaboração dos filmes?
M.M.C. – Antes do filme nós falamos muito tempo, afinamos ideias, afinamos emoções, e quando partimos para o filme já sabemos o que vamos fazer, quase já não precisamos de falar um com o outro. Eu comparo isso a um «artista» que está a escrever sozinho, com essas duas metades do cérebro, que vai rascunhando, vai corrigindo, e trabalha consigo próprio. Nós conseguimos fazer um acordo perfeito no trabalho, eu volto a repetir, no trabalho.
A.R. – E acontece que nessa cooperação, realmente no acto de fazer, tudo se concretiza, embora nós saibamos que depois há a montagem, há talonagens. Mas há momentos onde nós sentimos que as matérias confluem e mesmo aquele imaginário que nos parecia o mais consistente, o mais prodigioso, o mais poético, é processado e às vezes cai pela base; e se não houver um coração amplo e ao mesmo tempo a tal frieza a conjugar-se, não é possível, em face de estruturas muito fortes, saber-se o que vai resultar.
M.M.C. – Nós até aqui só temos três filmes, dois e meio eu, mas o princípio penso que nós tacteávamos mais no escuro e por vezes chegávamos a certos pontos, que levávamos em pensamento não escrito (as possibilidades de fazermos este ou aquele plano) e a realidade contradizia-nos.
Cada vez isso acontece menos, porque estamos progressivamente a ter uma visão mais cinematográfica das nossas emoções, eu pelo menos acho isso. Penso que daqui para a frente eu cada vez errarei menos, cada vez filmarei com menos pânico, que ele existirá menos... Quer dizer, os meios começam a estar mais dentro da nossa mestria.
– O «Ana» é um filme muito feito a partir de memórias, recordações de infância...
M.M.C. – Todas as memórias são de infância, pelo menos para mim e as coisas mais fortes são da infância, as coisas posteriores vão buscar referências à infância. Mas essa ideia deve vir mais de uma sinopse que nós tivemos de redigir, uma concessãozita que nós fizemos, um resumo sob pressão. É um pouco isso...
A.R. – Mas não há nada que esteja no «Ana» que seja a recriação de um acontecimento que esteja na nossa memória. Toda essa memória foi absolutamente submetida a um processo imaginário, senão seria a ilustração de um fenómeno de memória, que estava num arquivo... Aliás o próprio tempo já se encarrega de esbater coisas, de alterar umas e de trazer outras...
Pintura e cinema
– Vocês dão grande importância à composição interna de cada plano, à escolha das cores e dos materiais, e talvez por isso houve muita gente que falou em pintura quando viu o filme.
A.R. – Mas nunca é uma composição pictórica. Nós consideramos que as artes plásticas, com os conhecimentos que temos, poderiam ser o maior inimigo do nosso cinema, e essa tem sido uma grande confusão, mesmo por parte de grandes realizadores, ao pretenderem fazer a transposição dos fenómenos pictóricos para o cinema. Isso é tão errado como pretender transpor a ficção literária para ficção cinematográfica...
Mesmo sem pensar na dinâmica própria dos meios cinematográficos, o movimento, a temporalização, basta pensar até no domínio da pigmentação – todo o cromatismo cinematográfico é obturado, varia na escala dos planos, etc., e esse fenómeno é totalmente diferente na pintura.
É ridículo tentar ilustrar a pintura com o cinema e eu até diria, parafraseando aquelas legendas que aparecem no princípio dos filmes, qualquer coincidência entre as artes pictóricas e o cinema que nós fazemos, não é mera coincidência, é néscia exploração, ou néscia cultura.
M.M.C. – É não perceber nem de cinema nem de pintura.
A.R. – No fundo, quando os realizadores se servem disso, é mais como uma muleta que se buscou, ou na música, o na literatura.
Não há dúvida que há um aspecto às vezes quase perfumado, há um aspecto táctil em muito do que nós fazemos. Mas não é por ser tributário da pintura, eu diria que é por uma vivência das matérias, quer cinematográficas, quer das coisas que nós apanhamos, e como as apanhamos, na própria vida.
Eu pus uma vez este problema: suponhamos que, por um paradoxo incrível, o cinema tinha sido inventado antes da pintura. Será que toda a grande pintura que se fez teria sido tributária do cinema... é uma loucura pensar nisso. Esta violência ninguém a leva a sério, é evidente que era impossível.
– Não sei então se estão de acordo que uma das coisas que mais ressalta do vosso tipo de trabalho com o cinema é um extremo cuidado com o aspecto visual, com a composição dos planos, a utilização das cores, a forma como o som é tratado...
M.M.C. – Talvez isso se note mais devido à rarefacção do diálogo que tradicionalmente invade tudo, diálogo de que neste filme nós não precisámos muito. Não quer dizer que no próximo filme não se fale mais, ou até bastante, mas neste filme isso não foi necessário. Talvez por essa razão os sons ressaltem mais, porque as pessoas que estão habituados a ouvir, a canalizar tudo pela via lógica, pela fala, desta vez não têm essa muleta, essa facilidade.
Têm mesmo que ver o que lá está, têm de ler outras coisas. E há lá muitas outras coisas, para ver e ouvir.
A nossa exigência é maior
A.R. – De resto, uma vez que o cinema é realmente uma relação dialéctica imagem e som, seja em que sentido se movimentar, a ocupação tem que ser integral. Então num filme como o nosso, em que não há psicologia nem simbolismo, tudo está em tudo, a nossa defesa é muito menor, a nossa exigência é muito maior e o espectador...
M.M.C. – O espectador tem que contribuir mais...
A.R. – O espectador tem que se habituar, não a ler a boca da pessoa, mas tudo o que lá está.
– Penso que o vosso filme é um filme de exteriores, no sentido em que toda a banda sonora dá sempre primazia às cadências atmosféricas. Eu estava a ver o filme como se o próprio ar, os ventos, saíssem da tela e entrassem pela sala de cinema. No filme há uma imanência da imagem e de repente, pela banda sonora, somos remetidos para a ausência que é o exterior...
M.M.C. – Para nós, no filme, a natureza funciona como uma casa exterior. Há uma casa, com os seus espaços e os seus sons, mas os sons exteriores dão-nos a ideia de uma casa que é fechada sobre si própria e aberta sobre a natureza, por fora também é uma casa, também está habitada.
A.R. – Eu penso que o que tu não tens são noções realistas de vento...
- Se houver realismo é um realismo mágico, onde as coisas são extrapoladas...
A.R. – Tu não queres dizer que sintas a chuva que molha, ou o vento... tu sentes é o fenómeno físico do vento, esteticamente. Nesse sentido é correcta a tua interpretação.
M.M.C. – Quer dizer, o simbólico é sempre tudo o que as pessoas pensam, nunca fugimos ao simbólico. Estamos a falar num simbólico não grosseiro. Nós damos a chuva, o vento, com a mínima carga possível. Dentro do nosso filme, com as conotações todas que tem, há disponibilidade da pessoa que está a ver, sem grandes cargas simbólicas, pelo menos não muito marcadas.
Pedro Borges
Jornal da Letras, págs. 8 e 9, de 14 a 20 de Maio de 1985.
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
Um escândalo de Qualidade
A Comissão de Qualidade da Direcção-Geral de Espectáculos acaba de recusar a classificação de «filme de qualidade» ao último trabalho de António Reis e Margarida Cordeiro, «Ana» (ver entrevista e artigo de J. G. Pereira Bastos nas págs. 8 e 9). A Comissão é constituída por 11 elementos, dos quais quatro são críticos, é um realizador de cinema, um é psicólogo, um outro advogado, outro ainda escritor, mais um pintor e dois altos funcionários dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e do Ministério da Justiça.
Para abreviarmos argumentos, avancemos como tese que a recusa da Comissão de Qualidade (expressa por quatro votos contra três) é um escândalo. É-o não porque o filme seja inquestionavelmente uma obra-prima, ou porque perante ele toda a gente se tenha que curvar sem condições nem reservas.
A decisão da Comissão de Qualidade é um escândalo porque não se traduz numa simples afirmação de um gosto ou uma opção estética, antes tem força de autêntica decisão administrativa, com consequências inclusivamente no plano dos benefícios fiscais de que o filme pode vir a usufruir.
Há em Portugal, por estes dias, uma inquietante tendência para pretender afirmar autonomia e independência pelo exercício de um poder que se pretenderia «incorrupto», não manchado por outras considerações que não sejam as do livre arbítrio de cada um. Dir-se-á que se trata de uma manifestação adolescente, e em parte sê-lo-á, reacção natural num país que sofreu um processo simultâneo de iniciação colectiva e de irresponsabilização individual tão acentuado como foi o da democratização pós-25 de Abril. A verdade é que o simples facto de se tratar de uma Comissão institucional, cujas decisões são dotadas de eficácia administrativa, faz com que o juízo final não possa ser o resultado de uma qualquer pressão individual, nem uma simples soma de gostos desligados do contexto social, cultural e estético do tempo e do lugar em que vivemos. Há um efeito de instituição que tem necessariamente de pesar nas decisões da Comissão de Qualidade; e esse efeito implica que um filme não pode ser julgado (para o fim a que especificamente se destina a decisão da Comissão) exclusivamente por critérios de gosto pessoal. O mesmo efeito de instituição se encontra, por exemplo, nas páginas deste jornal: fala-se aqui, não poucas vezes, de acontecimentos ou objectos que não nos despertam esteticamente um entusiasmo especial, mas aos quais não é possível deixar de reconhecer qualidade e importância.
Teremos assim que colocar a crítica da decisão da Comissão de Qualidade em torno da seguinte questão: «Ana» é técnica, social, cultural e cinematograficamente (e, se se quiser, também moralmente) um produto inferior? A decisão da Comissão de Qualidade parece inculcar que sim. E é aí que reside o escândalo.
Há no trabalho de António Reis e de Margarida Cordeiro, de «Jaime» até «Ana», passando por «Trás-os-Montes», uma seriedade, uma honestidade, um empenhamento e um coerente e rigoroso exercício de princípios (que poderão ser esteticamente discutíveis, claro) que fazem da curta cinematografia destes dois criadores um caso absolutamente à parte, no quadro das cinematografias europeias contemporâneas. Mesmo dentro do contexto da produção cinematográfica portuguesa há, no cinema de António Reis e Margarida Cordeiro, uma forma lateral de afirmação, que poderá ser discutível nas suas implicações, mas que nem por isso deixa de assumir um lugar invulgar de consistência e densidade que tornam cada um dos seus filmes um produto de evidente qualidade técnica e profissional.
Para decidir o anátema de «Ana», quatro dos membros da Comissão de Qualidade parecem ter manifestado dúvidas quanto à pertinência de certas representações rituais e simbólicas constantes do filme. Ora, corremos de novo o risco de cair na polémica do real real e do real fílmico, que animou as artes ainda há poucas semanas, a propósito de «Amadeus», e que se julgaria já impossível de ressuscitar em plenos anos oitenta. A mim importa-me pouco que a representação de certos sinais e estruturas simbólicas estejam em «Ana» deslocadas dos seus códigos referenciais; parto do princípio de que todo o filme é em si a tradução de uma mitologia própria e que essa pressupõe, necessariamente, a criação de um universo simbólico específico, precisamente o que torna um filme não um documentário de «realidades», mas um discurso autónomo dotado de eficácia estética.
Não cabe, no espaço desta «Opinião», desenvolver muito mais estas ideias. Interessa, isso sim, insistir nas consequências previsíveis da decisão controvertida: o descrédito progressivo da Comissão de Qualidade, não só da sua composição, como da sua própria eficácia, as legítimas dúvidas quanto fundamento da sua existência. Por isso Augusto M. Seabra pode, no «Expresso», pedir a demissão dos membros da Comissão; por isso três outros membros, que por ausência não votaram, podem requerer a revisão da decisão; por isso o cineasta Paulo Rocha pode escrever o texto que nesta página se publica.
E por isso podemos legitimamente exigir, dos quatro membros que negaram a «Ana» o seu voto de qualidade, que se expliquem publicamente sobre as razões e os critérios da sua decisão. As páginas do JL estarão à disposição de todos e cada um deles.
António Mega Ferreira
Jornal da Letras, pág. 2, de 14 a 20 de Maio de 1985.
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
«Ana», um novo filme português
Numa das suas sínteses mais felizes, André Bazin considerava o estilo de Vittorio de Sica como uma sensibilidade e o de Rosselini como um olhar. À distância portuguesa de 40 anos, tanto nos separam de «Sciuscià» e de «Roma, Cidade Aberta», a obra de António Reis e Margarida Cordeiro funde a sensibilidade na pureza da sua criação visceralmente poética.
Num tempo de erotismo, o filme é casto; num tempo de palavra, o filme é visual; num tempo de imobilidade, o filme retoma a pintura em movimento - moving picture - que, partindo da fixidez do plano, descobre a vibração interior profunda, a montagem invisível. Sobretudo, num tempo de matéria, o tom e a forma sugerem a religiosidade, o rito, a celebração, o gesto litúrgico, a comunhão dos seres e da terra sob o céu.
«Naqueles dias» - cito de cor, portanto mal, as palavras iniciais, o frontispício sonoro do filme - «o ar era mais puro e as estrelas estavam mais perto». Não é esta evocação temporal o modo evangélico de lançar ao vento o verbo, a palavra? A palavra que neste filme é rarefeita, essencial, puríssima, sempre pausada, lenta e repetida como uma litania, a um ritmo que muito longe se encontra do dia-a-dia habitual.
OUTRO CINEMA
Há quatro anos, quando vi pela primeira vez o filme, ainda sem as misturas finais, dizia-me António Reis que a sua intenção e a de Margarida Cordeiro era restituir à imagem toda a sua força expressiva, numa altura em que o cinema moderno procurava sobretudo valorizar a palavra dentro do espaço da encenação.
«Ana», por isso mesmo, é uma obra predominantemente visual, em que as palavras não servem para acompanhar (como é costume acontecer nos filmes) a acção, mas para a introduzir ou para a comentar, por vezes intensamente, como na longa sequência fixa em que o Arquitecto Octávio Lixa Filgueiras austera e claramente fala das jangadas do Douro e, por mor dessa evocação, refere as barcas antigas que nas religiões primitivas transportavam as almas dos mortos sobre as águas, sugestão que, aliás, domina todo o filme com subtil proposta poética.
Por vezes, parece estarmos diante de um filme mudo, do tempo dos grandes nórdicos ou dos grandes russos, tão intensa é a necessidade de contemplação criada pelos autores nas suas imagens. O diálogo, o comentário, repito, são formas de acompanhamento verbal que apenas vão introduzir o pleno significado da sequência visual a que respeitam.
Trata-se, como em pintura, de contemplar, de absorver, de penetrar todo o espaço gráfico, não apenas na sua normal carga plástica, mas na sua carga afectiva, poética, interior, mesmo o tecido visual de que se compõe, os requintes da composição, a cor, a presença dos adereços, frutos, móveis, espelhos, fumos, fatos, colchas.
Poucas vezes um filme terá dado tanta razão às justas palavras de Carlos Queirós quando dizia «Ver só com os olhos/É fácil e vão/Por dentro das coisas/É que as coisas são». É preciso, de facto, ver para além da superfície, atentar nos silêncios, acompanhar os gestos, as cores e as formas do enquadramento (admiráveis, de resto, as tintas de flamengos e holandeses na escura cozinha transmontana onde o fogo crepita) entender a serena beleza de alguns momentos puramente poéticos, religiosos no seu sentido mais profundo, como a imagem da mangedoura ligada à criança que precisa de leite. Ou sentir a passagem do tempo, como no momento em que Alexandre brinca com o mercúrio e a menina vem junto deles, os dois afagados pelas cortinas que o vento faz ondular. Ou sentir os passeios da mãe Ana pelos campos, rosto feito paisagem, entre o céu e a terra, sobretudo nesse caminhar matinal e fresco ao longo da relva orvalhada.
A MÃE, A TERRA
A ÁGUA, O SANGUE
Na sua recusa de uma narrativa tradicional contada, «Ana» documenta apenas a ficção de um lugar e da sua gente, descontínuo, fragmentado, frágil, intenso na contemplação necessária, mergulhado na vibração do tempo que decorre.
Mas quem é e o que significa esta mulher? Que sentido tem os seus gestos, os seus passeios, as suas falas graves, o seu grito de morte «Miranda! Miranda!», nome de animal e de burgo velhos?
Nestas imagens rituais, nesta celebração da vida em termos de uma verdadeira liturgia cinematográfica, a mãe Ana é a força criadora, o sangue, a água, a terra, a conjugação vital que descobre o horizonte do mundo em lenta panorâmica e anuncia a morte que vem ao pôr-do-sol diante de um charco de água parada. À sua volta as pequenas e insondáveis marcas da vida, a visão inexplicável da terra, os factos aparentemente desconexos e sempre carregados com a sua própria ambiguidade, os gestos e os passos banais, aparentemente sem sentido, dos humanos, a sua festa.
«Ana» é a essência, palavra completa como uma amêndoa, princípio, meio e fim em três simples letras. Palavra-chave, também, enigma e solução. Nome de mulher. Nome de filme. «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro.
Luís de Pina
Jornal O Dia, pág. 21, de 13 de Maio de 1985.
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
A estreia, na semana que agora se encerra, do filme Ana de António Reis e Margarida Cordeiro e a passagem de Manoel de Oliveira por Cannes, são o pretexto para se falar nestas páginas de cinema português. Polémico, atribulado e, por vezes, fascinante, confunde-se de algum modo com o País contraditório que o gerou.
Ana
ou a raiz
afectuosa
Há um País que eu não conheço. Há um País que dificilmente sentirá a passagem para a Europa. Há um País no qual a CEE terá dificuldade em entrar.
Experimente-se o Norte. Mais concretamente: Trás-os-Montes, Miranda do Douro. As horas que separam a cidade desses sítios e caminhos escondidos são os anos e os séculos das distâncias. Uma vez percorridas, permanecem tão ou mais inatingíveis do que outrora. Há um País enorme do qual voluntariamente o tempo nos separa como um estranho frenesim nos faz ser daqui e mais nada.
Partamos, pois. De manhã, muito cedinho. Um sol acabado de nascer, as árvores, as sebes, os campos de uma cor assim como ensonada, adormecida. Os carros despontam no horizonte numa arrancada firme sem destino aparente. Tem por fronteira Portugal.
Assim puderam longamente
amadurecer...
A paisagem parada. Sucalcos, montes, longos verdes, longas pastagens. Foi por aqui que começámos. Começou a fazer-se de norte para sul, por expulsão e conquista, pelas fortalezas da Costa até Santarém.
Regular no traçado, grosseiramente paralela à linha de costa, desenha com esta um rectângulo alongado no sentido do meridiano, que constitui uma das figuras de Estado mais harmoniosas e mais simples. Ao Norte do Douro, a fronteira ajusta-se aos confins da Terra Portugalense que, desde o meado do século XI chegava ao Minho e se foi alargando para o interior. Palavras de Orlando Ribeiro que bastam para olhar da história, a fronteira.. Cá dentro ficámos à espera de outros dias, de outra luz.
É Miranda ao sol fresco de uma manhã de sempre. O barulho do riacho é o som que não conheço. Uma mulher atravessa a corrente com audácia. Domina o pequeno barco como nós dominaremos nossos carros. As estradas que não conhecem o alcatrão, os caminhos que já não esperam futuros. Por aí descem animais e seus guardadores.
Há muitos séculos descia a História e nós aprendíamos a dizer não.
Assim puderam longamente amadurecer, ao abrigo de fronteiras que são as mais velhas da Europa, os traços próprios da alma portuguesa e que a individualizam tão nitidamente em relação aos seus vizinhos peninsulares. Dum lado, um povo orgulhoso e exaltado, pronto para todos os sacrifícios e para todas as violências que lhe inspirará a preocupação da dignidade; do outro lado, mais melancolia e mais indecisão, mais sensibilidade ao encanto das mulheres e crianças... (P. Birot).
As emoções da infância
Na nossa vida há um tempo imóvel e o que se lhe segue, prolonga indefinidamente essa paragem, essa suspensão. Fixemo-nos nessa imagem primordial: Mãe, Ana, Portugal.
O leite recolhe-se directamente de um seio materno ou, então, busca-se nos animais, entre palhas. É levado para dentro de casa, onde, na selha com água levemente aquecida, a Avó dá o banho primeiro à criança. A planície de verdes e castanhos é um imenso e inesperado infantário. O melhor do mundo, vigiado pela Mãe, Ana. O que aí se partilha sobreleva o entendimento. Mas sente-se. Ou pressente-se.
Como toda a beleza, Ana não é mais que um pressentimento, uma ténue vertigem de uma beleza inacessível. São momentos que nos escapam, são tempos que não nos pertencem. De Ana para a filha; da filha para o neto... Uma cadeia silenciosa só quebrada pela necessidade de explicar o novo. Aí se unem passados e futuros, nas mãos crepusculares de Ana e no tacto maravilhado das crianças. Nascemos ali. Portugal nasceu ali.
Tudo, porém, se transfigura. E a criança olha o futuro com uma saudade infinita. Ana traz o passado ao colo, envolvido em terra, chuva, vento. E a ternura é uma colcha ou uma manta antiga.
Falam António Reis e Margarida Cordeiro. Falam de Ana. Assim. As emoções da infância que nasceu de novo, sob outras formas, com outros rostos, outras. Dadas a madrugadas e a longos percursos feitos pelas margens das árvores, no convívio silencioso das crianças, no aconchego de um tosco soalho de aldeia. Em Miranda do Douro.
O trabalho intenso para que as transmutações surjam e permaneçam na obra inteira e já independenmte de nós.
Apenas coisas
Só aparentemente, Ana é algo de remoto. As coisas simples de que a obra de António Reis nos fala, dizem tanto ou mais que uma viagem guiada ou um manual de etnografia. Ou uma vulgar história de Portugal. As antenas, os rádios, as televisões, os carros, o vídeo, os livros, etc, etc, não chegam para dar um nome às coisas. Darão - quanto muito - a perspectiva desassossegada daquilo que é. Os silêncios encontram-se noutras paragens, noutros saberes, noutros mundos.
Nas madrugadas fechadas de Ana, nos espaços cruzados de Miranda, visto de lá ou daqui, de algum modo se descobre a raiz. A Raiz Afectuosa: criança, mãe, terra, sangue de Ana.
Com os anos
a pouco e pouco
a raiz afectuosa
penetrou no fundo da terra
até chegar
ao mais pequenos
e mais antigo
veio de lágrimas.
Os versos de António Osório entrelaçam-se inesperadamente com o filme de António Reis e Margarida Cordeiro. Da mesma forma que eu, humilde espectador, me deixo embalar por este suave cântico de outrora, entoado num lugar que eu não conheço mas que faço meu, como Ana faz de Miranda todos os recantos de um País que esquecemos. Feito de coisas, apenas, forças elementares:
O sangue que se dá,
a pele que se ama,
a passagem das nuvens,
a voz de um amigo,
o escuro reboco do tempo,
ele próprio lava corrupta,
a única, única vida,
o corpo, a carne,
o futuro dos homens.
João Gonçalves
Jornal Semanário, págs. 41 e 42, de 11 de Maio de 1985.