173. «ANA» - Crítica de José de Matos-Cruz
[Estreia no Forum Picoas, Lisboa - 6 de Maio de 1985]
A abordagem de motivos genuínos da nossa cultura e realidade constitui uma via fecunda para a produção artística portuguesa
No exemplo de "Ana"
Dos dilemas e malogros, desenganos e expectativas por que tem passado o cinema português nos últimos anos, a precariedade de uma experiência permite, pelos menos, extrair algumas ilações quanto à adesão ou convívio do público. São, assim, baldadas as tentativas de reactivar certas fórmulas que por cá tiveram êxito, ou de importar modelos consagrados pela produção internacional. Parecendo óbvio, tem-se verificado ser na abordagem de temas ou motivos, genuinamente circunscritos à nossa cultura e realidade, que resulta a viabilidade duma expressão artística, harmonizada pelo talento e autêntica sensibilidade do autor que lhe dá manifestação.
Não sendo talvez decisivo, ainda poderá depreender-se que passa por estas condições mínimas uma eventual penetração dos filmes portugueses no estrangeiro, tal como a prática vem contestando que a respectiva carreira doméstica se resolva a favor dos que pressupõem uma inerência aos desígnios comerciais. Pelo contrário – e para além duma implementação de prestígio, que se processa dentro ou fora de fronteiras – são os sulcos rasgados por uma autêntica e original projecção estética, em seus estigmas e virtualidades, que usufruem duma implantação a médio prazo, sem escamotear que o cinema nacional não tem hipótese de rendibilidade automática, nos estritos limites do mercado natural.
Irrompendo por estes pressupostos e ditames, «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro, teve finalmente estreia em Lisboa, sagrando um espaço inaugural vocacionado, para cuja animação se espera o investimento e privilégio do que ao país corresponde... E não se procure nesta ênfase qualquer chauvinismo: é ainda o espírito de «Ana» que nos faz confiantes – pois, se a aposta na sua difusão envolve um risco inevitável, a assunção do desafio que lhe está implícito constitui, desde já, um justo prémio para os realizadores, logo porque pugnaram sem rendições ou cedências para assegurar uma exibição condigna – tanto no que concerne à aparelhagem de reprodução, como quanto à qualidade das cópias.
Aliás, estes aspectos apenas reflectem a exigência exemplar que a dupla Margarida Cordeiro/António Reis coloca em sua intervenção e criatividade – arrostando os maiores sacrifícios face às contingências económicas, ou subvertendo a confecção artesanal num prodígio de imaginação e, também, numa imagética prodigiosa... Com «Ana» tudo se detêm e reinicia, o tempo e o verbo, o som e o silêncio, a morte e a mãe, a memória e a geração. Uma essência para além da vida, um olhar que é antes da filmagem, a música que o gesto devolve, a pintura repleta na paisagem – como se o quotidiano e o ritual, gerados sucessivamente, coincidissem onde o sonho se suspende.
Com «Ana» regressamos, aliás, a uma ancestralidade onde coerência e origem, resistência e singularidade forjam o sortilégio imutável duma solidária genealogia e duma consciência cultural. O nordeste como território mítico, a mulher como sinal de transmissão, a família como arquitectura milenária, a natureza como solene exaltação e reequilíbrio mágico, transparecem neste fascinante, fabuloso envolvimento que a textura fílmica reflecte, sem inibir ou deturpar – porque, simultaneamente, estimula ao espectador uma activa participação de emoções, experiências e evocações face a um inventário de identidade que perspectiva e transfigura.
José de Matos Cruz
Jornal O Jornal, pág. 30, de 10 de Maio de 1985.