sexta-feira, junho 29, 2007

159. «JAIME» - Crítica de José Manuel Costa

Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema,
António Reis e Margarida Cordeiro: a poesia da terra
Faro, 15 de Novembro de 1997.


JAIME / 1974

Foi contundente a estreia de António Reis no trabalho de realização. Não tendo sido caso único de uma grande primeira obra no cinema português – um cinema em que, no fim de contas, os mais interessantes realizadores o foram desde as suas primeiras obras – Jaime marcou de facto, tanto pela sua beleza como pela sua contundência. A obra inicial de Reis irrompeu no panorama da nossa cinematografia, como gesto único de solidez e força instintiva. Marcou pelo extremo de modernidade e pelo extremo de originalidade. Inaugurou uma liberdade única no tratamento das formas e uma combinação única de ascese e precisão do discurso. Foi, nesse sentido, uma entrada directa para o primeiro plano na nossa produção, e foi também, curiosamente, um caso de aposta colectiva, por via da defesa acérrima de que dele fez grande parte da geração de 60 – (uma geração que nessa altura ainda demonstrava um espírito de "corpo", como ficou provado nos muitos textos de defesa apaixonada, entre os quais destacaria como peça fulcral, o diálogo com João César Monteiro publicado no "Cinéfilo" de Abril de 1974, na semana mesma do "25").

Oriundo do Porto, auto-formado no cineclube local, autor de dois livros de poemas (Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos) colaborador da obra colectiva Auto de Floripes (uma produção independente do cineclube do Porto), assistente no Acto de Primavera, responsável pelos diálogos de Mudar de Vida, Reis chegou à realização munido de três trunfos maiores: cultura sólida em domínios afins (cultura plástica, musical, poética); disponibilidade e capacidade para se servir cinematograficamente dela como se tal estivesse a ser feito pela primeira vez; amor profundo pela cultura popular e pelos homens que a veiculam, e da qual procurou sistematicamente arrancar os dados mais antigos, depurando-a não só da aculturação contemporânea como, em alguns casos, de todo o invólucro pós-renascentista que a ela se colou.

Em Jaime, António Reis abordou de imediato essa cultura com a total liberdade do ficcionista. Preocupando-se também, sempre, com a função de registo (foi ele o teorizador do projecto do "Museu da Imagem e do Som", lançado pelo Centro Português de Cinema em 1974, e ao qual ficariam ligados Trás-os-Montes, Máscaras de Noémia Delgado e Argozelo de Fernando Matos Silva), o seu programa de trabalho excedeu logo aí essa função, estipulando que não pode haver registo profundo e durador se o acto de registar não for igualmente, com a mesma força, um acto criador, logo, transformador.

Como os impressionistas, Reis conduziu o realismo à consciência da própria matéria do meio utilizado (neste caso, planos, espaço, tempo, cor, silêncios e sons...). Como os expressionistas, construiu as suas imagens a partir de uma marcada visão interior (a rigorosa arquitectura dos seus planos, o princípio declaradamente construtor que os organiza). Mas, como ele próprio disse a propósito do lado fauve e expressionista dos desenhos de Jaime, "se a sua estética não foi contemporânea desses movimentos europeus, também nada lhes deve. O seu tempo histórico outro era (é)". Ou seja e dizendo de outro modo: não é por qualquer retorno às vanguardas nem por qualquer associação a mais modernas práticas cinematográficas que podemos encontrar o verdadeiro contexto do cinema de Reis. O lugar de Reis no cinema nuclear (experimentador das formas) mas, ao mesmo tempo, "externo". O seu universo não pode ser entendido fora das relações com a natureza e essa cultura antiga (o próprio autor veio a falar do neolítico a propósito do projecto de Trás-os-Montes) e a sua criação cinematográfica, a invenção de cada plano, releva também da Ciência (apeteceria dizer da Cosmologia, lembrando, por exemplo, o paralelo entre gráfico hospitalar e a curva dos montes em Jaime, ou a fabulosa história do eclipse em Ana).

Jaime quem foi e como o abordou António Reis? Nasceu com o século (1900), casou, foi internado com esquizofrénico no Hospital Miguel Bombarda com a idade de 38 anos e morreu três décadas depois. Em 1965 (ou seja, três anos apenas antes da sua morte) começou a pintar, com lápis e esferográfica, ao mesmo tempo que escrevia abundantemente em cadernos vários. Grande parte (a maior, talvez) da sua originalíssima criação plástica foi perdida. Da que ficou, acrescentada aos textos encontrados, ao local do internamento e ao contacto ainda possível com a viúva (então com 71 anos), fez António Reis o seu filme. À maneira de Straub na obra sobre Bach, não se trata portanto de um documentário sobre uma vida já então inexistente nem – muito menos – de uma "reconstituição" dessa vida. O que Reis fez foi filmar e trabalhar sobre os materiais e figuras concretas que existiam no tempo da rodagem do filme e exclusivamente sobre isso. A evocação biográfica e a outra (humana, psicológica) surge por outros caminhos, ou seja, pelo próprio trabalho (que nesse sentido é documentário e é ficção sobre esses materiais.

Jaime–filme, começa (como, aliás, acaba) com a fotografia do internado. E uma frase dele: "Ninguém, só eu". De imediato, passamos à visão actual do pátio do hospital e aos homens que o habitam ("não há doentes no filme – não há normais nem anormais", dirá Reis), visto a sépia como se por um óculo. Em silêncio. Depois, a câmara recua e ascende, do pátio ao céu, e aí um súbito ruído (avião?) corta o espaço, abrindo-o para outra dimensão: do céu, em plongé, abre-se-nos a visão mais larga do pátio, entrando a cor e a música (Armstrong). Entramos então no interior do hospital, descarnado, vazio, sem corpos ou com eles, fechados, nas respectivas camas. E, de novo, voltamos ao exterior: o volume circular do edifício e as gretas, verticais, por onde lhes entra luz. Depois será a cena alegórica do "mágico" junto da fonte, ao centro do pátio (simbologia da vida e da criação) e nova entrada para dentro, até ao plano da banheira corroída pelo tempo (interior, vazio e morte). Mas já a banda sonora enche esse vazio com outro elemento natural, o vento que, desse mergulho mortal nos arranca para fora, para a natureza (o barco preso, o curso de água, as plantas), donde, por sua vez, vimos depois a entrar, finalmente, no universo pictórico de Jaime. Daí para a frente é então essa a dialéctica organizadora das imagens e dos sons: o confronto entre as figuras desenhadas por Jaime e os sucessivos espaços e sons da sua habitação, real e imaginária; o espaço a duas dimensões dos desenhos, contra a profundidade da imagem entre elas; a intervenção dessas figuras imaginárias – animalescas ou demoníacas – a povoar o espaço natural.

Em Jaime não há assim uma "história" nem uma progressão linear da narrativa. Há um movimento através de lugares e objectos, espaço e tempo, que é de destruição sistemática de uns planos por outros, ou de destruição sistemática do "plano" em que as coisas são vistas. O raccord da imagem – ou na imagem/som – é sempre de corte sucessivo para outra dimensão, comprimindo ou expandindo a dimensão imediatamente anterior. Por meio dessa ruptura sistemática corre um discurso em espiral baseado na oposição das matérias fílmicas (cromatismos, espaço visual e espaço sonoro), e por via disso, um sucessivo desdobramento de áreas e volumes – uma sucessão de esferas de progressiva interioridade, que, ao mesmo tempo, são de progressiva libertação. E é este duplo movimento (para a frente e para dentro, para trás e para fora) que serve a António Reis para, em última análise, fazer explodir o mundo interior de Jaime ("ninguém, só eu") e a sua comunhão secreta com a vastidão dos espaços naturais.

Tal como o furo que a certa altura é feito no corpo do animal, tal como a história das arcas dentro da casa vazia (volumes abrindo-se para outros volumes dentro deles) o filme vai ao âmago da solidão de Jaime e nele descobre a grandeza de uma imensa liberdade.

Convidando à leitura microscópica (ao nível do plano e do raccord), não deixa portanto de oferecer uma leitura "macro" onde passa o cerne do seu tema. É um filme sobre o homem, um filme sobre a arte, um filme sobre a criação, e um trabalho concreto, material, minucioso e programático, sobre o cinema. O manifesto de um conceito próprio de mise-en-scène.

José Manuel Costa

in Textos CP, Pasta 56, 399-400. Genérico e análise

Folha da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema para a homenagem e retrospectiva intitulada António Reis e Margarida Cordeiro: a poesia da terra, levada a cabo pelo Cineclube de Faro. "Jaime" foi exibido em Faro no dia 15 de Novembro de 1997. A mesma folha serviu para o ciclo da Cinemateca "A Primeira Vez", tendo "Jaime" sido exibido no dia 22 de Dezembro de 2000.

Este texto tem por base o que foi publicado em: Vários autores, "Cinema Novo Português 1960-1974", p. 128-129,  Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1985.

quarta-feira, junho 27, 2007

158. «JAIME» - Texto de Afonso Cautela

MITOS DO CINEMA

AS MÁGICAS CORRESPONDÊNCIAS NO FILME "JAIME"

EXERCÍCIOS DE HERESIA OU HIPÓTESES DE TRABALHO PARA UMA TEORIA REVOLUCIONÁRIA DA MORTE

Se, de acordo com as doutrinas búdicas, um mediante entra em contacto com o absoluto, a ciência ocidental chama «esquizofrénico» ao que espontaneamente e sem medianeiros, assume ele próprio a responsabilidade de «descer aos infernos». Por isso um «esquizofrénico» como Jaime encontra imediatamente (sem mediações) o inconsciente colectivo e o revela, nos desenhos, nas prosas quase hieroglíficas.

Absoluto é a palavra, a abstracção que tem servido para designar este mundo de todos, muito concreto e nada metafísico, das almas em trânsito. O homem ocidental faz esforços inauditos para atingir o absoluto, mas quando alguém o faz por conta e risco próprios, como Jaime, encarcera-o numa casa de saúde chamada manicómio, e rotula-o de «esquizofrénico paranóico».

Ao fim de trinta anos de asilo, dá-lhe alta e manda-o num caixão para o cemitério.

O DOGMA DA NÃO VIOLÊNCIA DE HIPÓCRATES A NIETZSCHE

Segundo o budismo, também a alma alcança o nirvana, uma vez depurada graças a sucessivas reencarnações.

A ideia da imortalidade era professada em segredo, às ocultas, iniciada e esotericamente, pelos adeptos da seita órfica e os iniciados nos mistérios dionisíacos. Antes de chegar a Pitágoras. Antes de chegar a Nietzsche que, para lá da doutrina do eterno retorno ou da «ressurreição dos corpos», pescada em Zoroastro, não esqueceu os mistérios dionisíacos que estudou na «Origem da Tragédia», e acreditava na órfica transmutação, na dialéctica permanente e universal, tal como Pitágoras (que redescobriu a dialéctica), tal como o Tao chinês do «yin-yang» (origem da dialéctica). Sempre, «viver de harmonia com as leis da Natureza» se consegue mais depressa morrendo – porque morrendo se está sempre de harmonia com a Natureza.

Crer na harmonia do Universo e na possibilidade de viver nela é crer na alma, na imortalidade e na transmigração das almas.

A teoria da reencarnação apoiou sempre uma filosofia estruturalmente pacifista frente à Natureza, uma comunhão cósmica. Retomada com o nome de panteísmo por Spinoza. E aviltada na «comunhão» da liturgia católica.

Hipócrates, pai da Medicina não-violenta, pouco diferia nesse aspecto da Medicina sem violência que sempre se praticara e ensinara na China. Que talvez acabe por mostrar as coincidências entre o «Livro dos Mortos» egípcio e o «Livro do Bardo Todol» tibetano.

EQUIVALÊNCIAS DO CORPO INVISIVEL

Segundo a Kabala, livro esotérico dos judeus, o homem possui, além do seu corpo físico, vários corpos invisíveis que se interpenetram entre si e que no momento da morte de dissociam.

Há um corpo vital e passional, uma alma, e o espírito, quer dizer, o ser verdadeiro.

Serão estes «corpos invisíveis» o inconsciente de Freud?
O Karma dos indús?
As vibrações (ondas) electro-magnéticas de alguns experimentadores?
O psíquico?
A alma?
A energia dos meridianos da acupunctura?

Diz-nos Charles Fourier que cada astro é um ser animado e que em todos eles, cada um dos seres que os habitam, têm uma alma eterna, se bem que inferior à do próprio Astro.

À sucapa, Orígenes e os primeiros padres da Igreja (Clemente de Alexandria, Gregório Naziaceno, Justino Mártir) acreditavam na transmigração das almas através dos diferentes corpos.

Segundo Orígenes, a alma era parte do divino e preparava o seu regresso valendo-se da forma humana.

Os espíritas atribuem aos espíritos do além os fenómenos metapsíquicos como a telepatia,a levitação sem contacto, a previsão, a aparição de «fantasmas», etc.

Afonso Cautela

Revista Plateia, págs. 18, 15 de Junho de 1976

segunda-feira, junho 25, 2007

157. «JAIME» - Crítica de José Jorge Letria

[Estreia]

VOZ OFF

Encontra-se em exibição numa sala de cinema da capital a notável média-metragem do poeta António Reis intitulada «Jaime».

Tive o privilégio de ver o filme há alguns meses numa sessão privada quando se ignorava ainda se haveria ou não distribuidor interessado na sua divulgação.

Os «Poemas Quotidianos» editados há meia dúzia de anos pela Portugália na colecção «Poetas de Hoje» assinalam o meu primeiro contacto com António Reis, auxiliado pelo esclarecedor prefácio de Eduardo Prado Coelho. Algum tempo mais tarde chegou-me a notícia de que António Reis entrava nos terrenos difíceis da realização cinematográfica, transferindo para a tela o modo peculiar como entende os problemas do quotidiano.

«Jaime» realizado com subsídio do Fundo Português de Cinema é a reflexão desencantada de um poeta sobre as condições em que as pessoas com problemas mentais são tratadas entre nós. A câmara colocada num hospital psiquiátrico de Lisboa conta-nos em termos exemplares a história do grande artista popular que foi Jaime Fernandes e do modo como a sua espantosa, quase torrencial capacidade de criação resistiu a todas as privações e obstáculos que o método de tratamento naquele estabelecimento hospitalar lhe impôs.

Notável em todo o filme é o modo como a sequência angustiante das imagens serve o clima da própria narrativa. A história desconhecida de Jaime Fernandes simboliza a gesta de dezenas de criadores anónimos anulados muitas vezes com o rótulo de «loucos» ou ignorados outras tantas pelo isolamento geográfico e pelo grande «silêncio» que resulta normalmente do analfabetismo e da falta de assistência a vários níveis. Jaime Fernandes internado num hospital psiquiátrico aos trinta e poucos anos deixou nas paredes nuas da sua cela, em pedaços de papel, em caixas de fósforos, em tiras de jornal a marca espantosa da sua capacidade criadora da qual nem os arquivos hospitalares dão a mínima notícia.

Com a mesma fascinante limpidez com que partiu para a escrita de «Poemas Quotidianos» António Reis contou-nos em imagens inesquecíveis a história portuguesa de Jaime Fernandes, usando em fundo o som de Louis Armstrong e de Karlheinz Stockausen, reforço admirável do clima geral do filme, «Jaime» de António Reis feito com a grande humildade que caracteriza o próprio autor é simultaneamente um discurso notável sobre a solidão, sobre a incomunicabilidade e ainda sobre o grande silêncio que por vezes existem na origem da obra de arte.

Com «Jaime» o cinema português chega por uma via surpreendente a um ponto onde não esperávamos vê-lo tão depressa, ou seja à maturidade, à audácia de assumir frontalmente as condições sociais e económicas do país em que existe.

«VOZ OFF» não entra habitualmente em terrenos onde o fôlego por qualquer motivo lhe possa faltar. Com «Jaime» porém abre-se uma excepção. O trabalho exemplar de António Reis justifica-a plenamente.

José Jorge Letria

Jornal República, págs. 7, de 18 de Maio de 1974

domingo, junho 24, 2007

156. «JAIME» - Poema de Vespeira

«JAIME FERNANDES»
UM FILME DE ANTÓNIO REIS

- «Ninguém, só eu.»
A primeira frase
que António Reis escolhe e colhe,
nas cartas de Jaime Fernandes,
escritas à sua mulher.
É o primeiro
silvo que sulca o silêncio,
que nos identifica,
que nos acusa.
-Estamos todos em ninguém
e somos só eu...
Terríveis imagens
aquelas, duma,
arena-prisão-cemitério,
que são
o nosso espectáculo
a nossa casa
a nossa sepultura,
solidão-representação
solidão-habitação
solidão-numeração...
Arena-prisão-cemitério
é terra de Jaime Fernandes,
é terra por nós oferecida
é terra por nós perdida.
- «Vi as redes para dentro.»
destaca e ataca António Reis.
Destaca a branco
e ataca a negro.
as redes apertam-nos para dentro dos desenhos
as redes apertam-nos por dentro dos desenhos,
os desenhos para dentro dos desenhos
os desenhos por dentro dos desenhos,
as redes para dentro das redes
as redes por dentro das redes.
- Dentro-para-dentro...
Diagnóstico:

JAIME FERNANDES SOMOS TODOS NÓS!

22-1-1974
VESPEIRA

Jornal Jornal do Fundão, págs. 1 e 8-9, 27 de Janeiro de 1974 (Dir. António Palouro)

sábado, junho 23, 2007

155. «JAIME» - Reportagem de Albertino Antunes

Nasceu no Barco (Covilhã) em 1900 e morreu em Lisboa, (1969), depois de 31 anos de internamento no Hospital Miguel bombarda. Nos últimos quatros anos da sua vida (1965/1969) Jaime Fernandes fez bonecos, desenhou, primeiro com um fósforo embebido em mercuro-cromo, depois com vulgares esferográficas.
Uma média metragem (quarenta minutos) do poeta António Reis mostra as pinturas de Jaime, que alguns críticos dos mais exigentes situam no pequeno quadro dos génios.
Para já, um caso de espanto e emoção.
(Página 1)
Reportagem de Albertino Antunes nas páginas 8 e 9

«JAIME» RESSUSCITA JAIME:
No cinema uma obra notável
Na pintura um génio


Na ficha clínica, o diagnóstico classificou-o de esquizofrénico-paranóico. Cinco anos depois da morte, os especialistas em artes plásticas consideram-no um génio. É Jaime Fernandes, beirão, trabalhador rural e, sobretudo, pintor, desenhista e poeta. Em trinta e um anos de internamento hospitalar escreveu milhares de palavras. Nos últimos quatro anos de vida e de hospital (1965-1969) voltou-se para a pintura desenho, deixando uma obra que só por acaso se não perdeu totalmente. Nela (no que resta) se debruçou um poeta para nos dar, num filme (Jaime), a visão do homem e da obra.

«HÁ FOTOGRAFIAS DE NITIDEZ. ESTAS SÃO OBSCURAS, SÃO FEITAS POR MIM, CONFORME A MINHA VONTADE».

Jaime pisava e repisava esta definição (?) da sua obra, no dizer de (Dom) Miguel, seu amigo íntimo e companheiro de hospital durante vários anos.
Jaime Fernandes Simões nasceu em 1900, na aldeia do barco, concelho da Covilhã. Até aos 38 anos viveu as dificuldades dos minifundiário da zona, cuja subsistência depende do bom ou mau ano agrícola. Depois, o internamento no Hospital Miguel Bombarda afastou-o, definitivamente, da mulher e dos seus cinco filhos. Para trás e longe ficaram, também, as árvores, os rios com peixes, a serra e os animais:

E EU A RIR-ME
COMEREM OURIÇOS
BEBEREM VINHO

Começou a escurecer cedo. Praticamente desde que entrou para o hospital. A sua escrita (bonita, graficamente) é um poderoso reflexo dos seus conflitos e problemas interiores.
Segundo depoimento de outros internados no hospital, Jaime passava dias inteiros a escrever e, mais tarde, a pintar ou desenhar. Além disso, tinha ainda uma vida prática activa, trabalhando na cantina.
Mas o seu passatempo era de facto a escrita e a pintura. Encheu folhas e folhas com milhares de palavras (alguns desenhos estão completamente escritos por trás), normalmente sem nexo aparente. Porém, de repente, Jaime explode:

ESTRELAS
DEPOIS OLHAI AS NUVENS
METERMOS NELAS
NELAS 1000 HOMENS
DENTRO;

ou então manifesta preocupações, das quais se poderia dizer que são profundamente fisolóficas (existenciais):

NINGUÉM SÓ EU
E
EU NÃO SABER NADA

A escrita toma, normalmente, a forma de cartas, que ele nunca chegou a enviar. Escrevia-as e punha-as de lado. Posteriormente, quando algum familiar ou conterrâneo o visitava, entregava-lhe as missivas.
«As cartas dele», diz D. Angelina, mulher de Jaime e ainda viva, «davam-me sempre muita alegria. Mas eu não entendia o que ele queria dizer. Eram assim umas coisas sem termo nem termo».
Os últimos quatro anos de vida e hospital dedicou-os Jaime a pintar e desenhar. Limitado no material, servia-se do que o acaso lhe proporcionava: um papel qualquer (a folha de 35 linhas dava-lhe para fazer, por exemplo, 10 desenhos), esferográficas, lápis e, uma vez até, mercuro- -cromo.
Na sua pintura há uma identificação (consubstanciação) do homem com o animal, o que leva necessariamente a estabelecer o paralelo com uma expressão das cartas:

«ANIMAIS COMO RETRATOS
DE PRÍNCIPES
OLHOS NAS MESMAS ARCAS»

Jaime trabalhava muito e depressa, utilizando o melhor possível o escasso e primitivo material de que dispunha:
«E a maneira como ele trabalhava»…, assevera (Dom Manuel), «não era moroso, era rápido. Trabalhou por assim dizer até à morte dele. Trabalhou sempre».
A morte parece ter sido uma das obsessões de Jaime. Nas suas cartas os verbos matar e morrer aparecem centenas de vezes, embora quase sempre desinseridos do resto do texto. Em relação a si próprio, Jaime viu-se morrer por diversas vezes, antes da morte natural em 1969:

«OITO VEZES JAIME MORREU JÁ CÁ»

JAIME
- UM FILME

Dois anos passaram sobre a morte de Jaime, até que, em 1971, se descobriu acidentalmente um desenho num gabinete clínico do Hospital Miguel Bombarda.
Na posse do desenho, que se considerou extraordinário, António Reis lançou-se na investigação da vida e obra do Jaime, tendo em vista a realização de um filme.
«Foi», confessa aquele poeta, «um trabalho difícil e árduo. Ele nunca conservou os trabalhos. Normalmente, pedia o material emprestado e, digamos em paga, dava os trabalhos.
Mesmo assim conseguimos recolher algumas dezenas de desenhos e pinturas e muitas cartas. Felizmente, nem tudo se perdeu (aliás nem quero pensar na hipótese contrária).»
De resto, António Reis teve a melhor assistência para trabalhar sobre o «dossier» do artista, estudar o meio geográfico e contactar com a família. (Deste trabalho beneficiámos também nós, pois só através dele conseguimos obter elementos sobre Jaime e a sua obra). Por outro lado, contou com uma equipa de filmagem excelente (para quem teve as palavras mais fraternas).
O resultado aí está: O filme «Jaime», onde perpassam a vida e a obra do artista, integradas nos ambientes em que uma decorreu e a outra foi criada.
«Tivemos sempre a preocupação», diz António Reis, referindo-se a toda a equipa, «de não dissociar a biografia da obra. Não nos interessava fazer o filme da vida de um pintor. Aliás, estou convencido que prestávamos um mau serviço ao Jaime se fizéssemos um filme sobre artes plásticas, embora prestássemos, talvez, um bom serviço à pintura.
Digamos, portanto, que a fita é um poema plástico e humano».
«Jaime» é o primeiro filme realizado por António reis, com responsabilidade integral e liberdade total. Mas, que pensa o realizador (expressando-se por palavras) do homem que lhe forneceu a matéria-prima par o seu filme?
«Eu não conheci o Jaime», responde António Reis, «e no decurso de todas as investigações que fiz ele escapou-me sempre. A única coisa (pouco) que agarrei foi pelo que ele deixou pintado e escrito. De resto, ele próprio escapou-me».
Parece que António Reis não tem razão na sua humildade. Pelo menos, a maior parte das pessoas, entre as quais escritores e pintores, que têm visto o filme, em sessões privadas, consideram-no notável.
Com efeito, aqueles quarenta minutos de celulóide foram tratados com mãos de poeta (- cineasta). Jaime e a sua obra estão lá bem vivos, permitindo ao espectador a aproximação e compreensão (leitura) de ambos.
As árvores, os animais, os rios e a casa que o artista conheceu até aos 38 anos, lá estão integrados e transformados. Depois, a solidão-hospital, que ele viveu nos últimos 31 anos de vida, e as presenças da viúva e da galeria de rostos humanos, companheiros de situação e que serviram de modelo ao pintor.
Mas, sobretudo, agiganta-se viva e poderosa a pintura do Jaime.
A verdade é que o filme tem agradado a toda a gente. Vejamos, por exemplo, as palavras de cineasta Paulo Rocha:
«O filme é a melhor surpresa para o cinema português de há vários anos para cá. Com efeito, António Reis vem abrir um tipo de actividade que não existia entre nós. Ele renova, mesmo internacionalmente, a concepção e realização do filme de arte, juntando à vanguarda artística um certo calor humano. Ora isto é muito raro, como é raro conseguir uma banda sonora tão viva e rica.
Além disso, e aqui reside outra (bela) surpresa, o filme permitiu descobrir o artista Jaime Fernandes e um novo cineasta (António Reis).
Finalmente, e porque tenho alguma dificuldade em reagir criticamente ao filme, só quero formular um voto: Que o António Reis volte à carga, muito em breve».
É este, aliás, o grande desejo de António Reis, que projecta um filme sobre o nordeste. Para isso, porém, é necessário que o Centro Português de Cinema possa dispor de meios financeiros…

A PINTURA DO JAIME

António Reis abre e fecha o filme com fotos do artista. Porém, na retina do espectador ficam ainda as formas do último quadro filmado. Trata-se de uma composição em monobloco, com uma cabeça de homem em corpo de animal (que é uma forma mineral ao mesmo tempo), pontuado por duas flores. Por que esta escolha?
«É uma recolha», responde o poeta António Reis, «das linhas dramáticas e plásticas da fita. É um regresso à matriz (representação dos três reinos – animal, vegetal e mineral) ou, se se quiser, o silêncio e a morte do Jaime. Na verdade, recorde-se, que se segue a imagem real de um relógio com 1 hora da noite, preciso momento em que o artista morreu».
Jaime Fernandes não foi além de uma instrução primária. Não teve mestres de desenho ou pintura. Ninguém o ensinou a combinar cores. Não seguiu qualquer escola ou movimento artístico e o mais curioso é que, apesar de escrever desde que entrou para o Hospital, só se tenha iniciado na pintura e desenho nos últimos quatros anos da sua vida
«O Jaime», afirma António Reis, «tinha perfeita noção do espaço a ocupar pelo desenho ou pintura. Como estava limitado pelas pequenas dimensões do papel, muitas das suas figuras-homens têm os braços caídos ou levantados, enquanto as figuras-animais têm a cauda caída.
Portanto, as atitudes do desenho estão sempre em função da delimitação do papel, para a qual ele achava sempre uma solução plástica genial. É possível que também estejam ligadas a uma estereotipia emocional, obsessiva e a arquétipos…»
Por outro lado, enquanto nas cartas há uma linguagem que exprime o Jaime psicologicamente, na pintura não. Aqui o artista tem uma coerência total, raramente se vislumbrando indícios da chamada arte psico-patológica, mesmo na utilização das cores (vermelho e preto, principalmente).
«Quando muito», prossegue António Reis, «as leis que presidem à sua arte são equivalentes às da criança ou dos povos primitivos. Na sua arte há uma saúde e vitalidade extraordinárias.
Quanto à interpretação da simbologia das cores, ela está muito viciada e varia de sociedade para sociedade, conforme as culturas. E, por exemplo, o vermelho, no Jaime, não é passional e o preto não é luto. Ele pode encher uma grande superfície de negro e vermelho e depois mete uma dissonância de violeta. Ora isto, só está ao alcance dos grandes artistas e é um acto de consciência pictórica.
Aliás, o Jaime não começou aí. Chegou aí. No filme, não utilizamos algum material que poderia explicar o seu percurso e a sua evolução artística».
E agora, uma vez descoberto e reconhecido o valor artístico do Jaime, qual o destino da sua obra? Como preservar da voracidade dos coleccionadores os poucos quadros que não se perderam?
«Estamos a prever», assegura António Reis, «integrar toda a obra do Jaime num verdadeiro museu de Arte Moderna (em vias de ser criado), onde pudesse ser vista e apreciada por toda a gente.
Evidentemente que os desenhos e pinturas do Jaime pertencem a várias pessoas que, assediadas, poderiam vendê-los. Mas nenhuma delas está disposta a isso, embora o dinheiro lhes fizesse jeito. Portanto, tudo parece indicar que a obra do Jaime não se perderá nas mãos de quaisquer coleccionadores».
E assim se cumprirá o que Jaime dizia frequentemente ao seu amigo (Dom) Manuel.

«HÁ-DE VIR ALGUÉM QUE DARÁ VALOR A ISTO»

Reportagem de Albertino Antunes

Jornal Jornal do Fundão, págs. 1 e 8-9, 27 de Janeiro de 1974 (Dir. António Palouro)