154. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de F. Gonçalves Lavrador
Duas palavras a propósito de «Trás-os-Montes»
de António Reis e Margarida Cordeiro
por F. Gonçalves Lavrador
Aproveito algum tempo vago das minhas ocupações obrigatórias para escrever rapidamente duas palavras a propósito do filme de António Reis e Margarida Cordeiro «Trás-os-Montes», que tive a feliz oportunidade de ver, em ante-estreia na cidade do Porto, graças à iniciativa de «Moviola, Cooperativa de Acção Cinematográfica». Duas palavra escritas rapidamente, ao correr da pena, sem preocupações de forma, para chamar a atenção dos meus leitores para esta obra notável no panorama do cinema português contemporâneo.
Esclareço o seguinte: sempre procurei fugir à tendência, que tantas vezes se encontra, de apreciar o cinema e os filmes portugueses de um ponto de vista pouco «crítico», pouco «analítico», isto é, sem uma perspectiva axiológica, sem uma clara e conveniente hierarquização, digamos assim, das obras e das diferentes (apesar da pequenez e da insipiência cultural deste cinema, julgo que nele poderemos distinguir algumas «correntes» e até uma ou outra obra solitária que, só por si, definiria uma «corrente» se, por acaso, tivesse continuidade). Evito sempre a citação de longas listas de filmes e de factos, sem qualquer visão crítica, sem qualquer juízo de valor solidamente fundamentado ou com alguns juízo de valor mas dispersos, isolados, injustificados, muitas vezes arbitrários ou desintegrados duma concepção teórica global, sem qualquer fundamento objectivo numa análise semiótica, numa integração sociológica ou numa explicação psicológica. Temos à roda um magote de factos e de películas que sempre procuraremos ordenar e escalonar segundo um critério axiológico bem definido e fundamentado, de modo a que sobressaia o principal, o determinante, o mais significativo e o mais expressivo, e se apague, ou até se anule, o acessório, o insignificante, o inexpressivo e o inútil.
Espero ainda um dia escrever desenvolvidamente sobre a obra de António Reis. Para isso, precisava, aliás, de assistir pela segunda vez, à projecção de «Trás-os-Montes». De qualquer modo, posso desde já dizer que, na minha opinião, há, no cinema português, três momentos de grande significado, quer dum ponte de vista estético, quer dum ponto de vista histórico e sociológico. Três momentos, três filmes, três obras de arte que apresentam atitudes corajosas e bem lúcidas dos seus autores num meio hostil. Esses momentos, esses pontos mais altos e mais significativos da arte cinematográfica portuguesa são, por ordem cronológica, «Douro, Faina Fluvial» de Manuel de Oliveira, «O Recado» de José Fonseca e Costa e «Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro.
A intuição fílmica de Manuel de Oliveira (que, infelizmente, e apesar de se manter ainda bem activo, se tem orientado, nos últimos tempos, para um certo «academismo») e à coragem moral e cívica, à espontaneidade e ao profundo desespero dum artista que sofre na sua própria carne e no próprio espírito toda a angústia de um país oprimido e humilhado, à coragem de um realizador antifascista como José Fonseca e Costa, corresponde agora a força poética, a sensibilidade humana e estética, a espontânea visão simultaneamente camponesa e infantil de António Reis, com a novidade de um cineasta que descobre, maravilhado, o seu próprio povo no que este tem de mais profundo, de mais específico e de mais verdadeiro, através duma obra surpreendentemente híbrida, de estilo bastante original, ao mesmo tempo documentário e ficção, realidade e sonho captação inocente e representação, simultaneamente cénica e serial, pois constituída por pequenas estruturas cénicas que se articulam dum modo serial. O serialismo de Reis não recusa, no pormenor, na sequência elementar ou na pequena secção narrativa, o dramatismo pontual ou o cenismo segmentar.
Por enquanto uma certeza: um filme como «Trás-os-Montes», de António Reis e Margarida Cordeiro, marca uma data no cinema português. Esperemos que tenha continuidade, que não fique obra isolada. Que se não reduza ao papel de obra-prima indiscutivelmente aceite como tal por toda a crítica especializada, mas no panorama triste duma cinematografia pobre e impotente (como é o caso de «Douro, Faina Fluvial»). Que não lhe esteja reservada (e pelas reacções até agora verificadas julgo quer não) a sorte madrasta dum filme de valor incontestável e de altíssima significação no momento histórico em que se insere (caso de «O Recado»), mas ostensivamente ignorado por uma crítica que tantas vezes desperdiça os seus louvores em obras de bem menor importância e alcance, por vezes mesmo medíocres. Esperemos que nada disto, nem nada de semelhante se passe com «Trás-os-Montes».
Aveiro, 27-2-1977
F. Gonçalves Lavrador
Revista Celulóide, págs. 242-243, Julho de 1977 (Dir. Fernando Duarte)