[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]
TRÁS-OS-MONTES
Nem a chuva amainou ainda, nem o sudoeste deixou de soprar em rajadas fortes, nem é menor o frio que há pouco sentia. Porém, ao olhar pela vidraça, como quem espairece o ânimo alquebrado por um momento de desânimo ou talvez de cansaço, que vejo? Que esperança é esta que sinto correr com o meu sangue?
Desculpai a confidência: à chuva, ao vento, as roseiras que podei em Dezembro rebentam já, e um cacho de glicínias – um só cacho ainda – antecipando-se em promessa do que será, em breve, um lençol lilás...
Portugueses somos, amigos. É bom sabê-lo – e assumi-lo.
Joel Serrão
Tendo por objecto o modo de vida, o desejo é sempre feudal.
Roland Barthes
Não há prefácio possível a um filme que se organiza e se propõe, ele próprio, como prefácio a uma memória cujo regaço está por preencher. Como falar dessa sedução em que a nossa história nos envolve? Multiplicando o eco final do grito branco e ateu de um comboio, poderíamos apenas sugerir o cansaço, as trevas e a persistência do olhar.
Estamos em 1976 – é, pelo menos, assim que referenciamos e delimitamos o espaço histórico que faz o nosso fazer a história. É tarde, muito tarde para evitar as lágrimas que nem sabemos. Mas é manhã, madrugada ainda, por todos os jardins e orvalhos escavados além dos montes do nosso desejo.
Não admira que digam que somos um povo religioso. O nosso conhecimento de nós e de nós outros tem sido sabido e ignorado por entre presságios de mal disfarçadas conspirações. A nossa cultura, a rede de diferenças que conciliam e dividem as nossas culturas, é um templo de muitos inexplorados, um corpo sem margens, casto e dorido.
É talvez por isso que o regime de “Trás-os-Montes” é, por excelência, a perversão, a contínua resolução do natural no artificial, do individual no colectivo, do real no onírico, do cultural noutro cultural. Lembremos as crianças, se é que sabemos lembrar as crianças.
A arte, o cinema, o cinema neste Portugal, parece estar historicamente condenado a ser a tela irreal onde se vem incrustar a lava vertida nessa fricção profunda, uterina, esquecida – cultura contra cultura, povo contra povo, cinema contra cinema.
Somos diferentes nas nossas diferenças e é preciso que esse ser diferente marque o nosso movimento fugaz pelos pinhais da história. Se assim não for, estaremos apenas a ser diferentes no desconhecimento das nossas diferenças.
Tudo isto para dizer que “Trás-os-Montes” não é um filme que mistura ficção e reportagem, objectividade e subjectividade, passado e presente. Estamos cansados (e o que tem sido esta cultura com que escrevemos senão o espectáculo, ora patético, ora deprimente, desse cansaço?) dos esquemas, das frases, das certezas, da falta de pudor, do medo de parar dos profissionais da cultura. “Trás-os-Montes” é um filme sobre Portugal e Portugal.
Da finalidade, da eficácia, da oportunidade, da mensagem, da acessibilidade ou da dificuldade de “Trás-os-Montes” não sei senão não saber o que isso seja e guardar silêncio. De “Trás-os-Montes”, eu diria, não sem a sombra de uma dor que não sei explicar, que é um filme que me ensina a conhecer o meu corpo e a respeitar os corpos.
Que sabemos nós do nosso desejo? E “Trás-os-Montes” é isso mesmo, uma encenação do desejo, isto é, o desejo de uma outra encenação – distante, fluida, absoluta e redonda, numa palavra, impossível. Lá, onde Portugal é cicatriz adiada.
João Lopes
Revista ISTO É ESPECTÁCULO, n.º 1, pág. 42, Setembro de 1976 (Director e proprietário: Lauro António)