138. "TRÁS-OS-MONTES" - Crítica de Lauro António
[Estreia no cinema Satélite, Lisboa - Sexta-feira, 11 de Junho de 1976]
OS POETAS E AS CRIANÇAS
O cinema português parece irremediavelmente atirado para uma fogueira de incompreensão e tristeza sem par. Quando envergonha a nossa cultura e a inteligência mediana do espectador encontra, na maioria dos casos, público em número bastante para prolongar as semanas de estreia. Quando se afirma íntegro, digno de qualidade estética e humana indiscutível, escasseia o público de forma aterradora. Entre 1975 e 1976 este facto já se verificou por vezes demasiadas: “Brandos Costumes”, “Benilde”, a recente retrospectiva da obra de Manuel Guimarães, a estreia de “Trás-os-Montes”. Mas o caso mais gritante será o deste último. Rodado durante dois anos por entre as aldeias e o povo transmontano por um poeta que já o era no livro antes de o ser na imagem, "Trás-os-Montes" representa o trabalho de síntese e rigor que a montagem de vinte duas horas de imagens recolhidas só raramente deixa supor. Um trabalho que se pressente, visto hoje, como roteiro de memória apaixonada por uma região e os homens que nela nasceram.
Quis o destino (!) que ao amor de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, abundantemente testemunhado ao longo das duas horas de projecção de “Trás-os-Montes”, correspondesse um qualquer grupo de transmontanos com artigos e comunicados, cartas e telegramas de irada fúria agressiva, acusando os autores de tudo e mais alguma coisa. Choveram cartas nos departamentos oficiais, nos órgãos da comunicação social, um pouco por todo o lado. Que não se viam as barragens, que não se vislumbravam as obras do Estado Novo, que Trás-os-Montes não é só miséria, nem só ignorância, nem só falta de higiene, que faltam os monumentos e as estradas, que faltam as aldeias com luz, que falta o sol, que faltam os petiscos da sua cozinha “que a agrura do clima exige que seja substancial” (esperemos que para todos!), que falta a obra do engenheiro tal, que faltam as paisagens, enfim, que falta tudo o que importante era para dar a conhecer Trás-os-Montes. Efectivamente, cremos que o filme de António Reis e Margarida Martins Cordeiro é incompleto e omisso em relação a Trás-os-Montes: no povo que retrata com tanto amor e paixão falta na realidade uma referência a esses transmontanos boçais e rudes de entendimento que escreveram o que atrás se cita. Falta a imbecilidade e a brutalidade desses que ousaram levantar o seu sujo olhar para uma obra de uma pureza que desconhecem. Mas fiquem tranquilos os restantes transmontanos: esses conterrâneos (sê-lo-ão mesmo?) de caneta afiada e entendimento curto existem um pouco por todo o lado. Não são prerrogativa desse distrito. E movimentam-se sob o comando sábio de “quem de direito”. Por detrás deles outros valores mais altos se levantam. Que quase todos sabemos quem são e eles próprios confessam no seu infeliz arrazoado.
É triste, portanto, macular um filme como “Trás-os-Montes” com considerações deste tipo. Mas a repulsa é grande e a revolta um facto que se não pode calar.
“Trás-os-Montes” é um filme difícil. Estamos de acordo. É diferente do que é usual ver-se em cinema. Não é nem um documentário “turístico”, nem um testemunho meramente etnográfico. Não é também um filme de ficção, ainda que jogue com imagens criadas. Vamos mesmo mais longe: aceitamos que o título possa criar equívocos, preparar o público para um tipo de espectáculo que não é aquele que efectivamente lhe é oferecido. Mas nada disso retira legitimidade à proposta dos autores. Muito pelo contrário.
Que literatura seja o romance inglês do século XIX ou o “nouveau roman”, que seja a poesia de Camões ou de Baudelaire, que seja o ensaio ou o livro de memórias, as “viagens” ou a aventura, de Daniel Defoe a Jean Ray, que nela caiba a história, a psicologia, a etnologia, a crítica; que literatura seja tudo, eis o que hoje em dia poucos contestarão. O cinema, porém, aceita com mau grado a diferença de tom. Quem se comove com “E Tudo o Vento Levou” dificilmente aceitará Bresson: quem a todos sobrepõe Straub recusará, por óbvio, “A Laranja Mecânica”. Entre nós, para complicar as coisas, até certa crítica se deixa enredar neste sectarismo vesgo, reduzindo o mundo ao seu clube. Paga depois o justo pelo pecador. Neste caso, “Trás-os-Montes” que, numa semana de estreia no Satélite, pouco público movimentou, ainda que, posteriormente, mas numa única sessão (às 19 horas), se tenha mantido ao longo de algumas mais. E, todavia, o filme é desde já um marco na nossa cinematografia. Uma obra pessoalíssima, uma viagem íntima por uma terra que se conhece bem e dela se amam os rostos e as pedras, os silêncios e as sombras, os gestos e a angústia da noite. Viagem pessoal e intimista. Convém frisar: “Trás-os-Montes” não é um filme virado para o exterior de uma região, para o postal turístico, para o registo impessoal da máquina fotográfica. É um filme voltado para a emoção, para o interior das pessoas e das coisas, um ritual pagão que revela a fragilidade e a aspereza, a ternura e a dureza da terra, da pedra, do homem.
Um filme que procura reencontrar o olhar de uma criança.
Através dele a alma de um povo. O que não tem nada a ver com barragens ou estradas, electricidade ou higiene, “Trás-os-Montes” não procura enumerar, mas aprofundar. Não coloca imagem atrás de imagem para cobrir um território determinado. Diríamos antes que é uma imagem inicial que continuamente se amplia, para dessa ampliação resultar o conhecimento íntimo dos pormenores. Imagem essa que é simultanemente real e imaginada, presente e passada. Isto é: o “Trás-os-Montes” de António Reis parte de uma realidade (Trás-os-Montes) vista e sentida através de um poeta. Vista e sentida hoje e ontem. Viagem que é na superfície e também na memória. O silvo de um comboio tanto poderá ser o espaço geográfico que se percorre (e que de nós se afasta) como a memória que se rasga e se recupera.
A simplicidade é aparente, mas “Trás-os-Montes” é um filme simples, quase diríamos linear. Uma viagem: a recolha subjectiva-objectiva de notas que esse percurso justificou. Encadeadas segundo uma certa lógica interna que o espectador tenta descortinar, mas não será por vezes essencial descobrir. Importante será a disponibilidade perante as imagens, os sons, o ritmo. Poeta do “quotidiano”, não se peça a António Reis relato ou testemunho do evento grandioso ou sobre-humano. Ele só sabe falar desse dia-a-dia que é o nosso. “Trás-os-Montes” em 16 milímetros, cor, é o retrato de um quotidiano em várias dimensões. As várias vezes que se entrecruzam, ora convergindo ora divergindo. Uma cultura que se recupera: a história que se reexamina; a língua que se reescuta; as origens. E daqui parte-se para o futuro que nos espera: a forma de combater uma certa miséria, um certo subdesenvolvimento. Preservando valores essenciais. Um filme que alguns transmontanos não souberam (ou não quiseram) compreender, mas que esperamos todos os outros estendam como a mais bela homenagem. Para que todos os emigrants que partem por entre as sombras da noite e o silvo agudo da angústia sintam saudades da terra que para trás-os-montes foram deixando.
Lauro António
Revista ISTO É ESPECTÁCULO, n.º 1, pág. 40-41, Setembro de 1976 (Director e proprietário: Lauro António)
NOTA: No verso da capa noticiava-se: "trás-os-montes, um filme a cores de António Reis e Margarida Cordeiro, interpretado pelos habitantes de trás-os-montes; 50% de desconto para estudantes; apoiado pela Direcção Geral de Acção Cultural; agora em 4.º mês de 2.ª a 6.ª-feira, às 19 horas no SATÉLITE".