[Antestreia em Bragança (1 de Maio de 1976) e em Miranda do Douro (2 de Maio)]
Trás-os-Montes
do cinema
à vida real
De Trás-os-Montes como fronteira do luto e do subdesenvolvimento, o tempo que nos fica é de velhos que se vão apagando e de crianças que, mal começam a viver trabalham logo. O filme de António Reis e Margarida Cordeiro estreado anteontem em terras de Miranda dá-nos a beleza do real transformado. Nas feiras, mal definidos os limites do sagrado e do profano, as crianças transformam-se em animais silenciosos e espessos: últimos resíduos de uma beleza que substitui a harmonia grega pela violência bárbara. Mas, no fundo mais fundo é a história de um mundo que tem de estar condenado a morrer [pág. 1]
Viagem violenta com ternura de infância
Após uma penosa viagem com uma hora de espera na «fronteira» da ponte do Pocinho, onde o Nordeste Transmontano começa, chegámos a Bragança e amanhecia. A «carreira» partira de Lisboa às 15 horas, com convidados da Direcção-Geral da Acção Cultural, elementos da Direcção-Geral da Educação Permanente (preciosos no seu trabalho), Miguel Torga e André Crabée Rocha convidados de António Reis e Margarida Cordeiro e ainda alguns jornalistas. Antestreava-se o filme »Trás-os-Montes», de António Reis e Martins Cordeiro, em terras de Bragança e de Miranda.
Bragança sorna, com sol para gato e velha, no 1.º de Maio, sábado feriado igual a pacato domingo, com a Televisão espanhola o pratinho forte, assistiu de certa maneira indiferente à exibição do filme exageradamente belo, entre a ternura e a violência, ou violenta ternura. Habituada à narração clássica ao filme americano da pistola, do cavalo ou do «karaté», a população assistiu às ditas exibições frustrada saindo muito ao intervalo, não querendo ou podendo compreender o filme em ladrilhos, os frescos de um Trás-os-Montes de certa maneira sem tempo (de sempre).
«Não fica ninguém. Ontem foi-se embora a filha da Mariana». Assim de repente, no filme. Na paisagem, com a carreira o único elemento em movimento ao meio-dia mostrava-se Trás-os-Montes: um pombal em ruínas, uma árvore partida, uma casa de emigrante em construção. Depois da filha da Mariana vê-se no filme, todos irão. O próprio espaço será em breve transformado ficando apenas no roteiro da memória. Por isso (também) as imagens da dupla Reis-Cordeiro são preciosas. Hora e meia de pessoas que vão deixando de existir, progressivamente ausentes outras, para o «lançamento» do filme, que decorreu na Pousada de S. Bartolomeu estavam presentes as individualidades civis, religiosas e militares da capital do Nordeste Transmontano. Na alcatifa de pousada, actores do filme. O senhor Afonso de Montesinho, aldeia perto de Bragança, que teve uma pequena colheita de vinho que lhe deve dar para o ano inteiro, que conheceu o abade de Baçal que lhe ensinou a conta de S. Nicodemus, o senhor Afonso de Montesinho, ali a dois passos de França, que foi soldado em Cavalaria Sete em tempos de que quase só os antigos se lembram já. Estava deslocado, no almoço de pé e volante. A criança ruiva que no filme vê alguém (seu pai) partir com um lacinho nos cabelos para cerimónia de cidade contraída olhando tudo como pela primeira vez e o Armando, o Armandito, do Patronato, que sempre sonhou com um relógio e já tem relógio. Criança de perfil romano, vedeta por um dia soube dizer comovido: «Já não sou o mesmo depois de fazer este filme».
Bragança para trás, passado Vimioso, entrámos em terras de Miranda, cidade episcopal sem bispo. «Este ano os pães estão bons» - dizia-mo o sr. Amador, mirandês de capa nobre no acto de humildade e minúcia da dupla Reis-Cordeiro.
Deixar Bragança foi abandonar o quotidiano «foleiro» (como alguém da caravana observou) de pequenos comerciantes, funcionários públicos e estudantes. Sem indústria, sem banda de música, sem partidos de esquerda, com um grupo de teatro quase na «clandestinidade», Bragança não conheceu o filme que falava de si, nem lhe passou pela cabeça que o sábado em que os cafés estavam cheios era o 1.º de Maio, o Dia do Trabalhador. Apesar de tudo, Bragança conseguiu ainda, este ano, levar à cena uma peça de teatro. O padre Mourinho, que uns chamam o pai do folclore, outros politicamente contestam e ainda outros afirmam seguir na capa do abade de Baçal, dizia-nos: «É muito difícil fazer outras peças. Se estivéssemos em Lisboa talvez não fosse».
Chegados a Miranda, corremos para o Constantim. Feira e festa e pó (o padre rezava a missa enquanto ao lado romeiros comiam postas de carne mirandesa), a fronteira estava tensa. Não houvera abertura e as culpas eram mútuas. Tanto o governador civil de Bragança como o de Zamora não tinham dado ordens para a abertura da fronteira. Vendedeiras com o credo na boca, mais profano que sagrado deitaram contas à vida (os espanhóis não apareceram) e enfiaram a unha na gente que viera de Lisboa. Vinte e seis pessoas comeram carne (tenra é certo) e pó por três mil escudos. Não valeram de nada os protestos de Miguel Torga. Gente de Lisboa não é gente de Miranda.
Em Miranda era domingo desabitado. As suas duas mil almas esperavam em casa pelo jogo de futebol ou pelo dia seguinte.
Entretanto, montava-se na praça a tela para a exibição do filme de Reis-Cordeiro.
Os actores vinham chegando. Ao sr. Amador da Freixiosa um jipe da câmara fora-o buscar. Carros-automóveis ainda não chegam lá. Nem peixe, nem água, nem luz, com três barragens hidroeléctricas à distância de um pulo. Votou mas não viu televisão, não ouviu rádio, nem leu jornais e tem dois filhos emigrados na Alemanha custe ao padre Mourinho que sempre vai dizendo: «a cultura vai-se modificando um bocadinho porque as pessoas antigas vão morrendo, vão faltando». O rimance das «12 palavras ditas e retomadas» («13 raios tem o Sol, 13 raios tem a Lua: rebenta diabo que esta alma não é tua») já é conto de antigos, é de conservar, mas a colheita de vinho este ano não foi tão grande como no ano anterior e muito poucas terras foram semeadas de centeio. Dá para comer, não dá para gastar.
A seguir ao sr. Amador, celta disfarçado de camponês, chegou o Albino, o jovem pastor que abre o filme a assobiar estridente. Albino parece ter 11 anos. Tem 16. Guarda um rebanho de 100 ovelhas, um lobo tem andado a rondar o bardo. Ele é espertote mas para as letras não dava nada. É a mãe que o justifica. Aos 12 anos tiveram de o tirar da escola porque não conseguia passar para a quarta classe. No filme é uma personagem bíblico, belo de ver, mas a quem sempre faltou a alimentação que não fosse de batata e fumeiro, a quem a história do eléctrico do livro de estudos nada podia dizer.
Vai-se mirar no filme e sente-se como alguém em falta.
MIRANDA NA
PRAÇA À NOITE
Miranda é uma terra nobre. A senhora do C. D. S., proprietária de um café, anda preocupada. Todas as semanas aparece lá uma outra senhora a passar filme para as crianças e a falar com elas. Mas esta é comunista, anda preocupada a proprietária C. D. S. do café. Já proibiu a filha de ir falar com a «senhora» e muito menos ver filmes. Nunca se sabe. E traz dentro engulhados os resultados eleitorais. Ainda houve 11 comunistas em Miranda do Douro.
Os retornados para a senhora são outra praga. Vieram mexer um pouco na pacatez sem tempo da cidade episcopal sem bispo. Abriram um supermercado; o dono do outro é comunista. Sofreu boicotes mas agora tudo regressa à normalidade. As eleições mal passaram. Televisão é sempre espanhola.
Também em Miranda o filme sofreu tentativas de boicote. Mas ouviram-se expressões que não acabam. A praça encheu-se, era noite, pessoas houve que trouxeram banquinhos de casa, as outras em fila) de pé, iam tentando identificar as imagens pelo nome da terra.
[Um grupo comandado por três irmãos caciques locais ia dando razão de si. O filme é comunista, diziam de um lado para o outro esquecendo-se de ver o filme. Só mostram a] Não mostram as casas boas que cá temos. As séries americanas já chegaram a Miranda do Douro. O fôlego narrativo ou a sua síncope não podem ultrapassar as normas.
No entanto mais nenhum filme falou até hoje com tanto respeito, ternura e profundidade deles, do mirandês que vai deixando de existir ou que se esconde com o medo que lhe digam que não conhece as fáceis seduções da civilização da cidade, como o da dupla Margarida-Reis. Trabalho colectivo em que os realizadores são também o Albino, o Armando, o Luís, o sr. Afonso, o sr. Amador, eu sei lá.
Antestreia na próxima quinta-feira às 10 horas no Satélite. Provavelmente, também Lisboa não irá gostar. Se compreender, não se sentirá seguro de ser culto ou pelo menos minimamente sábio.
PARTIDA
Entrámos em Trás-os-Montes de «carreira» grande com muitas dificuldades em passar na ponte e partimos com a imagem do filme de um comboio de linha estreita e fumegante na noite a levar gente para a cidade ou para a estranja, franças e araganças.
«Não fica ninguém. Ontem foi-se embora a filha de Mariana».
Quando chegámos a Lisboa, Benard da Costa era ainda Benard da Costa, Nuno Bragança era Nuno Bragança, o tenente Geraldes era o tenente Geraldes da televisão e todos os outros eram todos os outros. Nessa tarde de viagem lemos jornais. Estávamos a chegar à capital do País. E todos fomos tomar banho. O Matos-Cruz, de Coimbra, encomendou bilhetes para o cinema em Lisboa. [pág. 20]
ROGÉRIO RODRIGUES
Jornal Diário de Lisboa, págs. 1 e 20, Terça-feira, 4 de Maio de 1976
NOTA: O texto apresenta, no original, problemas de composição. Copiámo-lo do jornal o mais fielmente possível, apenas deslocámos o texto entre [].