O-CULTO
António Reis ocupa – talvez o seu súbito falecimento possibilite a tão esperada difusão dos filmes que realizou, mas em nada modifica a originalidade da sua postura, por isso faço questão de escrever no presente: os seus filmes permanecem actuais, exemplares como, a outro nível, os de Manoel de Oliveira, tanto mais que não têm sido imitados (a influência que o malogrado cineasta exerceu ou venha a exercer não permite de todo em todo que se fale de «escola») – um lugar absolutamente particular no cinema nacional na medida em que dinamitou os quadros estreitos do cinema documental ao qual se dedicou, introduzindo a ficção como modo de apreensão do real portador de história, de sonho, etc.; na medida também em que conseguiu manter-se fora dos quadros institucionais de produção (em especial do IPC), substituindo as limitações financeiras pelas relações afectivas – sempre intensas, donde uma situação marginal de constantes rupturas -; por último, na medida em que a sua obra continua a ser desconhecida do grande público, conhecida e reconhecida pelos meios cinematográficos de tal forma que os filmes engendraram um certo culto mas não suscitaram um verdadeiro discurso crítico.
António Reis, vindo da poesia e do militantismo político, transpôs as suas opções para a prática do cinema, conservando o mesmo grau de radicalismo: rodagens longe da capital, actores amadores, etc. Essas escolhas estão bem patentes no resultado: importância dada aos objectos, teatralidade assumida da representação – ficção não se disfarça -, imagens duma miséria que nunca é magnificada ou exaltada, duma natureza que não oferece nenhuma protecção e contra a qual os homens são obrigados a lutar quotidianamente sem que esse combate seja destruidor pois reconhecem a sua força telúrica e a sua beleza. O fascínio por uma natureza simultaneamente hostil e matricial já aparecia em JAIME – os lobos – e desenvolve-se nas longas-metragens, tendendo contudo a reduzir-se às paisagens, enquanto que o discurso verbal vai suplantando aos poucos aquilo que as imagens deixaram de denotar. Da história de JAIME, fechado na sua solidão, à ROSA DE AREIA, em que a história da humanidade é metaforicamente reduzida à necessidade de sobreviver ao desaparecimento do sol patriarca, António Reis conta sempre a mesma história de crianças abandonadas, mas alargando o sentido dessa ficção de filme para filme, dum homem para uma região, duma região para a humanidade inteira. E, no decorrer da sua obra, surge uma personagem nova que assegura, numa relação harmónica com a natureza, a sobrevivência: a mulher; é ANA como uma espécie de resposta à partida do pai emigrante de TRÁS-OS-MONTES, e ROSA DE AREIA em que as mulheres vêem reconhecido o seu labor e o seu sofrimento ao longo da história, votadas a evitar que os empreendimentos dos homens desaguem no holocausto definitivo, da expulsão do paraíso às modernas centrais nucleares. Isto é, as palavras, e mesmo as imagens, foram-se feminizando, para não dizer, grosseiramente, que o verbo deslizou do olhar poético para a visão feminista. Paralelamente, a encenação hieratizou-se, desligando-se do real filmado: a atitude que consistia em captar, por vezes decerto intuitivamente, uma força, uma luz que emanava dos próprios objectos e lugares, deu lugar, neste último filme, a uma certa construção em que a força é confiada ao discurso verbal – que assume a carga poética e metafórica – e à acção simbólica encenada, enquanto que os objectos e os lugares emprestam a sua beleza cenográfica sem determinarem o sentido das imagens. Em TRÁS-OS-MONTES, Reis dava provas duma singular capacidade de submeter as imagens ao «génio» dos lugares – a visita à casa senhorial, o conselho reunido no Domus de Bragança – às vezes em detrimento da sua perfeição formal, mas podendo – talvez por acaso, porém o talento poético e a modernidade do autor residem precisamente no facto de ter sabido conservar e colocar essas imagens – atingir o sublime: é o caso do plano final no qual se adivinha o comboio (da História?) que passa ao longe sem parar... Em ROSA DE AREIA, a composição dos planos parece mais dominada, mas concebida ao estrito nível intelectual e, por conseguinte, menos inovadora – i.e. inspirada em modelos pictóricos sobejamente conhecidos. Em contrapartida, a descontinuidade da montagem, que já se anunciava em TRÁS-OS-MONTES, fixa-se como princípio estruturador em ROSA DE AREIA; as cenas sucedem-se sem lugar outro que não o do discurso verbal; paradoxalmente, cada cena obedece a uma alternância tradicional de plano geral e grande planos ou até de campo / contracampo (o saborear do vinho sacrificial na presença do pai solar). Vista de fora, esta evolução parece-nos corresponder a uma influência, directa ou indirecta, mas crescente de Margarida Cordeiro, psiquiatra, esposa e co-realizadora de todas as longas-metragens. Todavia, para além do juízo crítico sobre os seus filmes, a lição de António Reis é acima de tudo a duma posição independente, assumida até às consequências de ocultação da obra. Reis, que à saída do Conservatório, pelas leitarias do Bairro Alto, de bom grado tomava atitudes paternais perante os jovens ou futuros cineastas, morreu e deixou-nos a braços com a angustiante situação arquetípica encenada nos seus filmes: a necessidade de ultrapassar o tempo e a morte, de prosseguir uma busca errante sem seguir as pegadas do pai desaparecido
Saguenail
Revista A Grande Ilusão, n.º 13/14, págs. 13-14, Outubro de 1991 a Maio de 1992, Edições Afrontamento, Porto, 1992