terça-feira, julho 26, 2005

096. PEQUENOS DRAMAS E ALEGRIAS DISCRETAS

[Poesia]

No n.º 5 de Notícias do Bloqueio, de Dezembro de 1958, uma das publicações onde se afirma o que poderíamos considerar uma segunda geração neo-realista, figuravam poemas de três representantes dessa geração, José Fernandes Fafe, António Reis e Daniel Filipe.
Eram três poetas bem individualizados dentro da corrente a que pertenciam. Um, José Fernandes Fafe, inseria-se no realismo social pela via de uma poesia reflexiva, que não dissociava o pensar do sentir; outro, António Reis, pela recuperação dos gestos mais simples do quotidiano, do que no dia-a-dia há de mais evanescente e íntimo; outro, Daniel Filipe, pela urgência e pela veemência postas no canto de denúncia da ocupação da «cidade» (o último dos três poemas de Daniel Filipe incluídos no fascículo tinha como título «Coro dos adolescentes na cidade ocupada»).
Lirismo que não abdica da dimensão pensante, reflexiva, lirismo dos pequenos nadas, do que não tem história, lirismo comprometido na sua face mais ostensivamente protestária – eis aí outros tantos modos de cumprir, no plano poético, o programa do realismo social na segunda metade dos anos 50.
Dentro do grupo de poetas identificados com o espírito da revista, não poderia haver maior contraste do que o que, por exemplo, se verificava entre as poesias de António Reis, cujos Poemas Quotidianos, 1957, e Novos Poemas Quotidianos, 1960 (reunidos, em 1967, em Poemas Quotidianos, Col. «Poetas de Hoje» da Portugália, com um prefácio de Eduardo Prado Coelho), foram «seleccionados» para publicação por Notícias do Bloqueio, e de Daniel Filipe, que até precisamente ao número 5 fora um dos responsáveis pela orientação literária dos fascículos.
Dum lado, temos um lirismo sóbrio, elíptico, que desconfia dos excessos verbais e que evita toda a ênfase retórica. Do outro, uma poesia que não teme abandonar-se à força torrencial da palavra e que faz da «veemência» e da «insistência» retóricas o seu fundamento maior (cf. o texto de U. T. Rodrigues, «A Poesia de Daniel Filipe», que acompanhava a 1.ª ed. de A Invenção do Amor e Outros Poemas, 1961).

Realismo intimista

O realismo intimista de António Reis fixa-se essencialmente nos pequenos dramas e nas alegrias discretas da vida conjugal. É uma poesia em que tudo tende a girar à volta de um «eu», de um «tu» e do «nós» que se gera no espaço de comunhão, partilha a cumplicidade entre o «eu» e o «tu». A comoção, o sobressalto líricos nascem, para o sujeito, não dos grandes eventos, mas do que de mais simples, trivial há numa vida em comum: a revelação de uma gravidez («[…]// E o teu ventre/polido/de novo me arrepia»); a descoberta de mais uma ruga no rosto da amada («Na mágoa dos dias/amor/nasce-te uma ruga//mesmo de alegria») ou de uma malha caída nas suas meias de nylon («Teia de nylon/desfeita//um golpe branco/a malha/caída das tuas meias// […]»; a consciência aguda do real conhecimento do outro («Enquanto estudo/oiço-te na cozinha//sei o que fazes/o que pensas/sentes//[…]»); a dor insuportável da perda de um lugar que foi testemunha da vida e da morte («Mudamos esta noite//E como tu/eu penso no fogão a lenha/e nos colchões//onde levar as plantas//e como disfarçar os móveis velhos//Mudamos esta noite/e não sabíamos que os mortos ainda aqui viviam//e que os filhos dormem sempre/nos quartos onde nascem//Vai descendo tu//Eu só quero ouvir os meus passos/nas salas vazias»).
A sobriedade, a contenção da escrita poética de António Reis, a recusa de se servir de proclamações mais ostensivas de denúncia de um estado de coisas injusto, não significam, de modo algum, que no registo magoado, melancólico dos seus poemas se não possa perceber o estremecimento provocado no seu lírico pelos desequilíbrios existentes na sociedade.
É, temperado por uma resignação reminiscente, no plano literário, do estoicismo de Ricardo Reis, o receio do «desemprego» e da «velhice» que abala o sujeito e a sua interlocutora, em «Que foi feito de nós»: «Que foi feito de nós/Ah Clara nada invejes//todos mais ou menos/ficamos tolerados/e aguardando//receando como tu/o desemprego e a velhice//vendo/crescer/os nossos filhos sem sorrir». É o retrato delicado da pobreza envergonhada dos casais que se não podem permitir o supérfluo, acrescentar o «ter» à dignidade do ser, em «Depois das 7»: «Depois das 7/as montras são mais íntimas//A vergonha de não comprar/não existe/e a tristeza de não ter/é só nossa//E a luz torna mais belo/e mais útil/cada objecto». É, a partir da sinonímia imperfeita de «brisa» e «vento» e da conotação poética e prosaica de um e outro termo, a chamada de atenção para a extrema penúria em que vivem, na cidade onde o sujeito assiste ao seu envelhecimento, os que trabalham, sem terem uma muda de «roupa», em «Na cidade onde envelheço»: «Na cidade onde envelheço/não há brisa/há vento//A brisa é para o amor/e para os cabelos//Na cidade onde envelheço/A roupa tem de secar/durante a noite//os operários levantam-se cedo//e o seu amor é simples/ e no trabalho». É a discreta devassa à intimidade das famílias modestas, que mal atingem o nível da estrita subsistência, a atenta observação da difícil manutenção de uma imagem de dignidade por parte dos que operam milagres de transformação a partir do mesmo mas que não conseguem evitar o «atraso» no pagamento de uma pequena quotização, em «Hei-de entrar nas casas»: «Hei-de entrar nas casas/também//como o silêncio//A ver o retrato dos mortos/nas paredes/um bombeiro um menino//a ver os monogramas bordados nos lençóis//os vestidos virados/os vestidos tingidos/os diplomas de honra/e as redomas//E a caderneta dos Socorros Mútuos/e Fúnebres/em atraso». É, com uma nota um pouco menos contida que o habitual, no meio das privações a que nada escapa, do necessário ao supérfluo, o desejo de uma partilha total na amizade, e no espaço que privilegiadamente na cidade a consagra – o café –, «do maço de cigarros/aberto sobre a mesa/e à-discrição», em «Já deitado»: «Já deitado/e pensando no escuro amigos/há um poema de café que quero escrever ainda//o poema do maço de cigarros/aberto sobre a mesa/ e à-discrição». Quando não é o mesmo, perante a necessidade sentida de não esquecer os que tombaram na luta contra a injustiça, a denúncia pública da «cobardia» colectiva, como acontece em «Não esqueço os mortos»: «Não esqueço o mortos//Não esqueço os heróis//Não esqueço/o luto/das famílias//todos silenciosos//Denuncio/publicamente/a nossa cobardia//e quem mente».

Arte da sugestão

Não é, porém, este último o tom dominante na poesia de António Reis, que raramente faz uso de tal veemência acusatória, preferindo-lhe antes, como vimos, o registo recatado dos efeitos de uma situação injusta sobre o quotidiano de «heróis» apagados que dificilmente acendem aos mais modestos níveis do «ter». Tom de pública acusação, de luta, de «ofensiva», de imersão na voz coral há-o, sim, nos textos de Daniel Filipe publicado no n.º 5 de Noticias do Bloqueio (atentese nos títulos dos poemas, «Ofensiva Primavera».
«Lutaremos meu amor» e «Coro dos adolescentes da cidade ocupada»), e incluídos, 3 anos depois, em A Invenção de Amor e Outros Poemas, que, em volume, marca a afirmação plena da 2.ª fase – a fase interventiva – do poeta.
A diferença entre os dois poetas é, desde logo, sensível a nível da forma da expressão: preferência pelo verso curto, em António Reis; predilecção pelo verso longo de Daniel Filipe. Uma poesia reduzida ao essencial, que vive muito de uma subtil arte de sugestão e que aposta na participação do leitor, em António Reis; uma poesia da explicitação, da repetição, do recurso a todos os meios expressivos destinados a reforçar a importância e a urgência da mensagem, em Daniel Filipe.

Fernando J. B. Martinho

Jornal JL, pág. 7, 17 de Setembro de 1991

segunda-feira, julho 25, 2005

095. MUDAMOS ESTA NOITE

Mudamos esta noite

E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões

onde levar as plantas

e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos ainda aqui viviam

e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu

Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias


António Reis - Poemas Quotidianos, Portugália (col. «Poetas de Hoje»), Lisboa, 1967

domingo, julho 24, 2005

094. DEPOIS DAS 7

Depois das 7
as montras são mais íntimas

A vergonha de não comprar
não existe
e a tristeza de não ter
é só nossa

E a luz torna mais belo
e mais útil
cada objecto


António Reis - Poemas Quotidianos, pág. 20, Porto, [1957].

sábado, julho 23, 2005

093. SEI AO CHEGAR A CASA

Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego

Tu
se o ar é fresco

eu
se deixo de respirar
subitamente


António Reis - Novos Poemas Quotidianos, pág. 15, Porto, [1959].

sexta-feira, julho 22, 2005

092. A COERÊNCIA DA SOLIDÃO

[Poesia]

Há, na poesia portuguesa, alguns casos de poetas cuja obra se reduz a um livro ou pouco mais, e que apesar disso constitui um ponto de referência: Nuno Guimarães, Cristovam de Pavia, por exemplo; mas também, por exemplo, António Reis. Se, nos dois primeiros casos, a morte precoce foi responsável por essa escassez, já no último caso o abandono (público, pelo menos) da actividade poética resultou de uma opção consciente do poeta – compreensível, dado o seu empenho total no cinema, em que se realizou de uma forma muito mais completa.
Publicou António Reis em 1967 os "Poemas Quotidianos", que recolhe dois livros anteriores com o mesmo título, de 1957 e 1960. É uma poesia dissonante do que na época se apreciava: o seu intimismo, a inspiração individualista do poema, a escolha deliberada de uma linguagem elementar que os versos curtos, as estrofes rarefeitas de dois ou três versos, e raramente mais do que isso, a ausência do lirismo de pompa e circunstância que dava o tom "à poesia de combate", são os traços essenciais de uma escrita original, em que se prenuncia a reacção à retórica e ao discursivismo que será a tónica da jovem poesia da década de 60.
Se pensarmos no "companheirismo" então reinante, soa quase como um manifesto, melhor, uma poética, o que Reis escreve: "Eu só quero ouvir os meus passos/nas salas vazias".
Esta atenção ao ser, bem como a um mundo substantivo, e por isso mais objectivo e mais real do que aquele que surge em muita da poesia e da estética realista se reivindicava, é um sinal distintivo da margem em que se inscrevem os "poemas quotidianos"; não surpreendendo, então, o passo que levou António Reis da margem ao marginal quando, na sua passagem para o cinema, vai buscar como tema do seu primeiro filme o louco pintor Jaime. Há, por outro lado, muito de visual na opção objectivista de Reis. A articulação entre a palavra e o olhar é quase fusional: e digo quase porque, se tivesse sido plena, o poeta não teria cedido lugar ao cineasta.
Íntimo, subtil, discreto, como era a própria pessoa que comovidamente lembro, o poema nada faz para se impor. Aí, porém, é que reside a sua terrível força:
"Sei/ao chegar a casa/qual de nós/voltou primeiro do emprego/Tu/se o ar é fresco/eu/se deixo de respirar/subitamente".

Nuno Júdice


Jornal Público, pág. 27, 12 de Setembro de 1991

quinta-feira, julho 21, 2005

091. "PEDRO PÁRAMO" – Ficha, sinopse e considerações diversas

Pedro Páramo
Margarida Cordeiro

Realizador: Margarida Cordeiro
Diálogos e Argumento: Margarida Cordeiro
Duração: 90 min
Formato: 35 mm, cor
Produtor: José Mazeda
Produção: Take 2000
Co-Produção: Ariane Films – Andres Santana (Espanha); Sand Films – Jaques Sandoz (Suíça)
Financiamento: ICAM

A leste do paraíso Juan Preciado desce para Comala à procura de seu pai Pedro Páramo. Encontra um jovem mestiço que lhe diz ser também filho de Pedro Páramo, mas que este, latifundiário cruel, já morreu há anos.
Inferno labiríntico de sofrimentos sem sentido, e, ao mesmo tempo um vibrante hino à vida e ao amor
.

in Portugal Filme, pág. 41, 2002. Ficha e sinopse do projecto. Filmografia de Margarida Cordeiro

Considerações diversas sobre este projecto não-concretizado:

. in 5 èmes jounées (26-27-28-29 janvier 1995) de cinéma (cinéma ariel – mt st aignan) portugais, rouen – France, pág. 7, « 11 questions à Margarida Cordeiro», feitas a 21 de Dezembro e respondidas a 29 de Dezembro de 1994:

António Reis et vous avez travaillé, depuis longtemps déjà, à un projet de film se proposant d’adapter Pedro Páramo, le roman de l’écrivain mexicain Juan Rulfo. Vous souhaitez poursuivre et achever le projet, notamment comme geste d’hommage à António Reis, et en même temps vous êtes très pessimiste sur la possibilité de le mener à terme, au regard du grand nombre de difficultés qui se trouvent sur votre chemin, à commencer par le refus, jusqu’à maintenant, de l’Institut Portugais de Cinéma de co-financer ce film (qu’il faut tourner au Mexique, ce qui en renchérit le coût), qui dispose d’une co-productio luso-helvétique. Pourquoi ce livre? Pourquoi le Mexique qui vous emmène si loin du Nord-Est du Portugal qui a été votre puissante terre de cinéma? Et, dans ces difficultés, que peut-on faire, nous, ici, pour vous y aider?

- J’ai travaillé trois ans et demi avec António, plus un temps équivalent seule. Le scénario est prêt depuis beaucoup de temps. On m’a promis de l’argent. Ensuite, on me l’a refusé net, il y a quelques trois mois.
Pour répondre à votre question, je vais vous raconter une histoire. António e moi, nous étions tombes amoureux fous d’un livre (c’est un chef d’oeuvre de la littérature mondiale). Ce livre était à la base de notre projet de film, un projet secret. Une critique de cinéma était venue au Portugal, à la Cinémathèque, voir des films portugais autres que ceux faits (et divulgués) par l’unique bénéficiaire du système. Elle a vu beaucoup de films, et aussi les nôtres. Elle a dit, très impressionnés, qu’elle sentait une atmosphère, un monde qu’elle connaissait bien, comme si nos quatre films dessinaient un aboutissement, une trajectoire jusqu’à une œuvre d’un auteur mexicain qu’elle connaissait. Comment s’appelle-t-il? avons-nous demande en sursaut. C’était Juan Rulfo. C’était Pedro Páramo. Déjà. Il y a 7 ans.
Quant à ce qui pourrait nous aider, un miracle seulement.

. in Ilda Castro - Cineastas Portuguesas 1874-1956, págs 92-107, Câmara Municipal de Lisboa, 2000:

Queria dizer que, tendo em conta que qualquer um desses filmes é um cinema muito especial, muito conceptual...

- É irrepetível. Por isso acho um crime terem-nos cerceado o Pedro Páramo. O António ainda estava vivo, foram cerca de dois anos. Era a nossa saída da província pela primeira vez. Era o culminar do que tínhamos feito até ali.

O Pedro Páramo era o vosso quarto projecto, mas não conseguiram apoio do IPC.

- De todo!

(...)

Como foi a reacção da crítica aos vossos filmes?

- A crítica sei-a toda, porque está coleccionada, tenho um dossier impressionante, dado que tive de o fazer para concorrer como o Pedro Páramo. Concorri duas vezes por ano, durante oito anos – mais dois anos com o António, foram dez anos. A crítica era muita boa, em geral; o João Lopes, o Leitão Ramos, o João Mário Grilo por vezes também falava bem; nos actores, o Artur Semedo... Agora não me estou a recordar

(...)

Alguma vez pensou esquecer completamente o facto de durante dez anos não obter apoio financeiro para o projecto e...

- Era só a comparticipação portuguesa, a que eu tenho direito, porque eu pago impostos. Era só a contribuição portuguesa, porque o resto eu arranjava lá
fora. As co-produções é assim que funcionam, dá-se aqui uma fatia do orçamento e depois os co-produtores avançam. Não posso é passar para o apoio externo sem a quotização portuguesa. E foi isso que me fizeram, sempre me impediram na primeira fase. Cheguei a ficar em segundo lugar, eles não me punham nunca no fim da lista, andaram a gozar comigo mesmo. É opinião minha e dos meus amigos.

Nunca pensou pôr uma pedra em cima de tudo isso, comprar uma câmara de vídeo e começar a fazer os seus filmes, já noutra perspectiva?

- Não, não. Eu não tenho jeito para filmar, não sou boa técnica. Tenho ideias. Normalmente, o operador ajuda-me, eu digo: "Quero isto, ponha a técnica e faça-me isto desta maneira". Tenho ideias visuais muito nítidas. Por exemplo, em relação ao Pedro Páramo tenho as cenas todas na cabeça, podia fazer esquemas. Cheguei a ir duas vezes ao México, havia sítios que inclusive já tinha escolhido.

O filme passa-se no México, portanto.

- Só os exteriores, que até nem são muitos, para ser mais baratos. Os interiores far-se-iam aqui para rentabilizar, estava tudo já esquematizado.

Acha que o facto de ser mulher pode ter tido alguma importância para não ter recebido a comparticipação?

- Eu pensei nisso no princípio. Primeiro: "Não vou ser paranóica, não me dão agora dão-me depois!"; depois, pensei: "Será por ser mulher?". Mas não era! Porque a Maria de Medeiros fez, fez a Teresa Villaverde e fez a Margarida Gil. E eu concluí: "Não, não é por ser mulher, então porque será? Será porque eu pus o meu nome primeiro no Rosa de Areia e o do António a seguir?" Mas não. As pessoas que foram enterrar o António, os seus colegas do cinema, portaram-se muito mal. Pena não tinham nenhuma – eu não vi, mas pessoas minhas amigas viram. Também não era por eu estar a querer fazer cinema sem o António, portanto. Finalmente, gostava que me explicassem esse mistério, porque se repetiu, foi uma recusa tão nítida, que houve qualquer motivo que se prolongou nos vários júris. Saber qual é, não sei. Gostaria que me dissessem. Não é por eu ser mulher, não foi por não ter cumprido as exigências, apresentei os documentos na hora certa, etc. Faltou-me uma coisa: ter uma boa cunha, nas antecâmaras perversas das atribuições de subsídios para o cinema.

quarta-feira, julho 20, 2005

090. EVOCAÇÃO DO PEDAGOGO

Tinha um boné puído, uma camisa aos quadrados debotada e, estranhamente, estava encostado ao umbral da porta da sala onde iríamos ter Espaço Fílmico. Eu e o meu colega discutíamos Mondrian ou «body-art» ou qualquer coisa assim fatal para a pressa que tínhamos em tudo arrasar, e olhávamos de viés aquele pequeno segmento de alma, «contínuo ou electricista», pensávamos. E de repente dirigiu-se-nos, «venham para dentro, vamos começar a aula, que já estamos atrasados».
Era o Reis.
Em novos julgamos que o conhecimento é assim: descritivo; que como uma espécie de escadaria de Odessa se submete às avalanchas dos títulos. Uma escola de cinema era para nós uma questão de aprendizado técnico, o mais tínhamos nós cá dentro – autores. Foram por isso um desnorte aquelas duas horas de aulas, sentados de costas para a moviola e a falar dos sumérios ou do haiku japonês. Fascinava-nos, mas queríamos resistir: o cinema era o western, o filme negro, alguns dramas, o Fellini ou o Godard em instâncias terminais. Que vinha aquela voz decantada sugerir-nos? Que entre um veio de uma ágata e o modo como respiramos numa corrida de três mil metros existe um raccord.
Só tive dois professores de evocação socrática: o António Reis e o João Miguel Fernandes Jorge. Os dois poetas. Os únicos de quem, pedindo conselho sobre que revista de cinema assinar, poderia esperar acenarem-me, em alternativa, com uma monografia sobre a roupagem na pintura de Leonardo; só eles alimentavam nos alunos uma gana feroz de associação.
O António Reis era o «pânico secreto» dos outros professores, que se dedicavam a territórios precisos.
Da fotografia à montagem, da análise de filmes à história de arte, a sua vocação para estuário abarcava tudo. Um démon que sobrevoava todas as disciplinas, acrescentando-lhes o espírito. Ainda por cima movia-o uma espécie de coacção poética sobre o real que o levava a ler em cada situação quotidiana uma introdução às matérias da arte. Era um poderoso efabulador, capaz de divagar sobre os esplendores e as misérias de uma família a partir de um botão de plástico, imitando madrepérola, que encontrasse no chão, a caminho das aulas. Nunca sabíamos como ia acontecer, as aulas eram um aeroporto sem voo programado.
Narrava, narrava, numa reinvenção contínua da memória. Recorro a um exemplo que furtei a uma entrevista sua à «Capital», por ocasião da saída do Jaime. Diz António Reis sobre a suas primeiras impressões do cinema: «Na festa anual da minha aldeia apareceu uma espécie de vendedor-ambulante com uma pequena barraca, quase do tamanho do Teatro dos Robertos. Espreitava-se para "o que tinha lá dentro" por dois tubos de papelão. Lá dentro, quanto a minha memória recorda, tinha o Pamplinas, o Charlot, o Pate e o Patachão... Não seria como conquistar o "dono do cinema", o mago, mas seria uma frustração imensa não ir mais além. Levei do meu quintal, depois, ameixas doiradas com orvalho, ofereci-lhas timidamente. Aceitou-as. Chamava-se sr. Delfim. Exibida só os filmes para ganhar a vida, mas para mim ele era o "cinema"! Combinámos um encontro na sua casa no Porto. Ah!, mas o Porto era longe para mim. Quando lá fui mais tarde, havia uma pobre senhora num quarto escuro, paralítica, e o sr. Delfim estava preso, por cunhagens de moedas falsas».
Não sei o que haverá neste relato verdadeiro ou falso, é uma coisa que só pertence ao próprio, mas ameixas doiradas com orvalho ou uma senhora (...) paralítica são pormenores de quem sabe que exacto ponto acrescentar ao que conta. De quem sabe as origens da arte.
Lembro-me do julgamento do António Reis sobre o primeiro exercício filmado do meu primeiro ano. Tínhamos sido mandados, à vez, para a Lagoa de Albufeira, com meia hora de película para gastar na adaptação de um conto, simplicíssimo, de Hemingway, das aventuras de Nick Adams. Ao visionar todos os trabalhos, uns doze, o António Reis vidrou num plano feito por um de nós, onde um miúdo acendia a vela dentro de uma tenda, e dispunha-se a aconselhar-nos o lixo com o resto. Falava-nos da luz e da composição à George La Tour e serenamente procurava convencer-nos de que valia mais um único plano com bom enquadramento e melhor tratamento plástico que o raccord ou a articulação forçadamente narrativa entre planos coxos. Foi uma atrapalhação entre os outros professores que precisavam daquele material deficiente para a explanação dos seus conceitos. A dor com que o convenceram.
Sempre lhe pertenceu a radicalidade e a sinestesia do último verso que lhe li, numa revista de cinema: DIZER OLMO COMO QUEM OUVE UM TROVÃO DISTANTE.

António Cabrita

Jornal Expresso, Cartaz, pág 17, 21 de Setembro de 1991

segunda-feira, julho 18, 2005

089. "ROSA DE AREIA" - a propósito do catálogo "AR e MC - a poesia da terra"

Cinemateca Portuguesa-Museu de Cinema,
António Reis e Margarida Cordeiro: a poesia da terra
Faro, 23 de Novembro de 1997.


Rosa de Areia ficou como o último fime realizado por António Reis, que morreria menos de dois anos depois da conclusão deste trabalho. E é um filme que permaneceu, ao longo destes oito anos, inédito nas salas comerciais portuguesas. Ou seja, é um filme que ficou praticamente invisível durante todo este tempo, exceptuando esporádicas exibições em Festivais ou em salas como a da Cinemateca.
Quando preparavam e rodavam Rosa de Areia, António Reis e Margarida Cordeiro não sabiam que este haveria de ficar como o filme definitivo da dupla. Por isso talvez não seja muito útil recorrer ao chavão, sempre tentador quando se trata de "últimos filmes", do "filme-testamento". Pelo contrário, parece evidente em Rosa de Areia uma vontade de apontar para novos caminhos, de experimentar coisas novas, que não se compadece com o registo de súmula que normalmente caracteriza os "testamentos". Se em Rosa de Areia está uma série de temas e de ideias desenvolvidas nas obras anteriores, o filme aponta decisivamente para o futuro, para um percurso no qual António Reis não terá tido tempo senão de dar os primeiros passos. De Jaime a Ana não há nenhum outro filme onde o radicalismos estético de Reis e Cordeiro tenha aparecido assim, de maneira tão exuberante e tão abertamente "experimental". Rosa de Areia é assim uma espécie de "filme incompleto", como um esboço, capaz de gerar uma descendência (tivesse Reis tido tempo para isso) porventura ainda mais fascinante do que ele próprio. Rosa de Areia é um filme que está muito longe de se fechar a si próprio, o seu movimento é para fora, não é para dentro: há poucos filmes capazes de criar, como este cria, hipóteses para a sua descendência.
É curioso que, numa entrevista concedida aos Cahiers por ocasião da estreia de Ana, tenha sido perguntado a António Reis e Margarida Cordeiro se não encaravam a hipótese de, um dia, fazerem um filme a partir de uma adaptação literária. Apesar da série de renitências apresentadas pelos realizadores, não havia um não definitivo e Reis acabava mesmo por dizer que, provavelmente, um dia acabaria por conceber um filme assim. O que é interessante nisto é que se Rosa de Areia (o filme que se seguiu a Ana) não é propriamente uma adaptação literária, é o filme que, na obra de Reis e Cordeiro, vem trazer a questão da relação do cinema com a literatura. Questão que não se põe aqui, evidentemente, com os termos com que costuma pôr-se: não há adaptação nem mesmo uma qualquer narrativa pedida "emprestada". O que há é uma selecção de textos (que vão de Montaigne a Kafka, de relatos jurídicos da Idade Média a Carl Sagan), lidos ou declamados pelos actores do filme, e organizados segundo um trabalho que tem sobretudo a ver com a ideia de "colagem". Se os filmes de Reis e Cordeiro sempre se afastaram do naturalismo, Rosa de Areia é que vai mais longe na procura do artifício - e esta opção marca um dos percursos que aqui se inauguravam. O estilo de "colagem" que marca a organização (tanto a "literária" como a montagem) já diz um pouco sobre isso, mas o artifício está ainda presente na convocação do teatro, aparentemente ausente da obra de Reis e Cordeiro (embora haja alguns momentos de Trás-os-Montes e de Ana em que certos rituais familiares e sociais são filmados como se se estivesse a filmar teatro), e no modo como quase todos os planos do filme são compostos a partir de um jogo de pura sensibilidade estética, decidido muitas vezes a partir de equilíbrios ou confrontos cromáticos.
Daqui resulta um filme que é um desafio: um desafio, primeiro, aos cânones e normas estabelecidas (a dificuldade para encontrar quem o quisesse estrear é um sintoma da violência deste desafio); um desafio, depois, ao espectador: para entrar nesta espécie de palco cósmico onde se encenam os mais variados tempos e lugares (Rosa de Areia é um filme de lugar nenhum, num tempo sem data, mas é em simultâneo um filme de todos os lugares e de todos os tempos) é preciso merecê-lo e avançar de espírito tão despojado quanto possível. Afinal de contas, o que está aqui em causa, mais do que a poesia da terra, é a poesia da Terra.

Luís Miguel Oliveira

in Textos CP, Pasta 56-439-440. Genérico e análise

domingo, julho 17, 2005

088. ROSA-POEMA EXPOSTA À EROSÃO

OS FILMES DO DIA
23.10 / 00.55 TV 2


António Reis (falecido há quatro anos) foi delicado e discreto poeta, que também escreveu poemas em forma de filmes - de Jaime (1976) à criação com Margarida Cordeiro, nos restantes, Trás-os-Montes (1976), Ana (1982), Rosa de Areia (1989). Este teve estreia mundial em Berlim, mas nunca estreia nacional. Conta quem o viu ser rara preciosidade (talvez invisível a olhos embaciados, consumidos de tanto lixo de imagem estereotipada). Acredita quem viu os outros poder haver tanta beleza em Rosa de Areia que a jóia se perca no monturo televisivo. São mulheres, homens, animais, personagens de sonho, aparições, desaparições, visões, sons, pedras, vento, areia, pó. De história nem pó. Se está disponível para atmosferas dum outro mundo de filmes, arrisque. Desde Jaime, «retrato» de um internado no Miguel Bombarda, a partir de falas estranhas e desenhos fantásticos, Reis (e Margarida Cordeiro) filmou o imaginário. Escutou a natureza, matérias essenciais, sabedoria a perder-se em lendas... Exprimiu-se em tempos e modos únicos, radicalmente livres. Este serão é para ínfima minoria, mas até os livros de poemas já só tiram poucas centenas de exemplares e deixam sobras.

Elisabete França

Jornal Diário de Notícias, pág. 71, 30 de Janeiro de 1995

sábado, julho 16, 2005

087. UM OLHAR LIMPO

"Rosa de Areia" na TV 2

Os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro foram levados para uma fronteira tão distante de todo o cinema conhecido que, apesar da sua mais imediata simplicidade, se tornaram invisíveis ao público. É esta amarga ironia que paira sobre um trabalho que, num mundo sem leis, seria acessível em toda a sua inteireza. Citando o crítico francês, que por sua vez citou Mizoguchi, para esta ética cinematográfica, "há que lavar os olhos entre cada plano".
E no princípio era "Jaime" (1976), o retrato de uma personagem esquizofrénica que viveu 31 anos no hospital Miguel Bombarda que lá morreu "quase cem vezes". Era o tempo, como disse João César Monteiro em conversa com António Reis, "da evocação de uma unidade perdida".
Ou a história de um camponês – um beirão que nasceu junto ao Zêzere – cujo sentido se perdeu. Quando tinha um delírio, "pegava numa picareta e começava a picar no cimento do hospital, para descobrir a mina de ouro".
Depois, em "Trás-os-Montes" (1976), foi o tempo de invocar a terra de "druidas", antes que se perdessem "valores de imaginação, valores poéticos, lúdicos, arquitectónicos, de fauna e de flora" do Nordeste português. Era então a terra-mãe, a efabulação e a memória ainda viva dos lugares da infância, que os mais velhos abandonaram. António Reis e Margarida Cordeiro poderiam ter partido em busca dos pais, dos emigrantes. Mas ficaram. E mais profundamente ainda mergulharam no coração materno transmontano. Surgiu "Ana", em 1982, e a transmissão entre as gerações de uma sabedoria que encontra na idade os "sedimentos da geologia".
Cada vez mais árido, o cinema de Reis-Cordeiro encontrou a harmonia no ciclo do nascimento e da morte. Em "Rosa de Areia", já não existe um território delimitado. Habita-se a "natureza infinita onde se desenham e apagam todas as formas". E se "a maior parte do cosmos é vazio", acede-se à palavra, ao diálogo entre a poesia e a ciência, para que todos os discursos sirvam a continuidade do mundo. Como afirmou António Reis, muito antes do seu último filme, ainda existe "o respeito pela pedra que se está a esboroar, mas se temos o sentido da pedra, é porque lhe demos muita cabeçada".

Rui Catalão

ROSA DE AREIA
Seg., 30, TV2, às 23h 10min

Jornal Público, de 28 de Janeiro de 1995

sexta-feira, julho 15, 2005

086. "ROSA DE AREIA" - Crítica de Regina Guimarães

ASSISTIR AO FIM DO MUNDO

Aceitemos que os filmes ditem por vezes o modo como sobre eles conseguimos falar. Sem jogo de palavras, ROSA DE AREIA é uma obra espinhosa: até que ponto será possível acercarmo-nos dum objecto concebido para escapar à inteligência e à emoção do espectador, um objecto que só mostra uma face para que batam na outra?
Este é um filme moldado pela angústia de perder a palavra, pelas certezas duma palavra que perdeu o lugar.
Por isso, tudo se passa como se formalmente de além túmulo os seus autores nos pretendessem interpelar, como se vozes, documentos, vestígios fossem registados na hora do sacrifício, como se o fim dum certo mundo já estivesse consumado.
Nesta concepção de cinema, não se medita sobre as armadilhas do pensamento alegórico - elas são utilizadas enquanto tais. Ao renunciarem à moderna condição fragmentária da poesia, António Reis e Margarida Cordeiro retomam o fio gasto duma suposta história exemplar do mundo; esse fio, por definição único, tem servido para prender o «homem» à fraca imagem do condenado. Assim a técnica de «colagem» de textos é um trompe-l'oeil: mero fogo de vista, posto que os homéricos esforços de redenção do caos pelo discurso se conjugam num só sentido. Atentemos ainda no valor atribuído no filme ao vocábulo «homem» e seu parente «humanidade»; ora esse valor afigura-se-nos infixavél, embora a palavra poética sugira que a história dos homens e a história das mulheres só se cruzam nos factos e nos lugares: os homens devassam, as mulheres vigiam. A contradição entre a impressão de desmembramento, no plano estético, e o dogmatismo quase religioso do verbo faz de ROSA DE AREIA um filme de difícil acesso, propriamente mimético do arquétipo de mundo que lá se enuncia: a ilha, materializadora da unidade estrutural do espaço partilhado pelos homens, essa mesma que se furta hoje à fé de alguns (nos quais me incluo).
Em torno do fogo central ou pousadas sobre as aras (pedras sem lei?), as personagens gozam dum espaço natural ameaçado; melhor: nesse espaço virtualmente desaparecido, os fantasmas de personagens ocupam hieraticamente o campo, percorrem-no ainda como disciplinados exércitos em debandada. O próprio guarda-roupa, algo espectral, sublinha a ausência expressiva dos actores, dentro da casa ou pela natureza fora. Mais carnais parecem os elementos (vento, terra, água, luz) nas suas danças do que as figuras nas suas mágoas, fechados numa composição solar e petrificada como o título anuncia.
Noutra leitura, interrogo:
«Homem, tu és duma fragilidade extrema».
Se o desejo do homem é morrer infinitamente em vida, como julgo decorrer das confidências do casal Reis-Cordeiro, a sua brutalidade incontrolável poderá despertar na mulher a força do sacrifício até agora desviada para a submissão ou não fará mais do que tirar a vida (recordemos o plano do espancamento da mulher a dias) a quem vive infinitamente em morte?
«Tu falas contigo mesma».
Como resistir ao encanto deste diálogo tão conjugal que o seu mistério quase desperta ciúme? O espectador será tocado, como eu, por uma asa de memória, e sentirá que ouviu, no silêncio e no escuro, qualquer coisa como uma reminiscência de conversa entre um pai e uma mãe. Nesse aspecto, não sei bem se periférico, ROSA DE AREIA é um filme perfeito.
Poeta de primeira água, António Reis viera à expressão artística pela mão doutra musa mais solitária.
Os «poemas quotidianos» construíam-se principalmente a partir do enfeitiçamento pelas coisas rotineiras, familiares ou banais. Cada poema, balbuciante como a palavra de amor que a boca não desperdiçou, apresenta-se como um modesto tijolo do impossível edifício poético. Porque sujeito e objecto apenas «estão»: a moral não é imanente e o exercício ético um roçar de limites provisórios.
Sobre a magmática matéria urbana, António Reis reinventa a maneira e o dizer em versos que vogam entre a necessidade de espraiamento pelo devaneio e a urgência de contenção que cola aos contornos das coisas. Uma espécie de livro de momentos do citadino sedentário e errante que reivindica para a poesia um lugar nos interstícios do real. Um inquérito indolente sobre o real.
Entre a obra desse António Reis que poderia, nesses tempos maus, ter tomado um café entre dois gritos ou procurado o troco no bolso das calças, e este cinema, que se quer testemunho sereno dum enfeudamento no Cosmos, há um abismo de perguntas.
«A mais simples contemplação do universo comove. Uma parte de nós sabe que lhe pertencemos e que dele vivemos».
A mudança de visão e de ponto de vista vai da lente frágil e vibrátil (poesia-sismómetro) ao ofuscamento visionário (poesia-epitáfio do mundo).
Tudo isto escrevo revendo a mulher que de joelhos se arrasta, percebendo que o holocausto dos pobres é uma figura de estilo no regime mental que nos governa, e tremendo também quando me lembro que o único sentido das leis é criarem o poder que as mantém. Quando algum porco devorar os nossos livros, as nossas fitas, quem pagará as despesas do processo?

Regina Guimarães


Regina Guimarães (Directora)- A Grande Ilusão, n.º 13/14 (Out. 91 a Mai. 92), pág. 15-16, Edições Afrontamento, Porto, 1992

quarta-feira, julho 13, 2005

085. "ROSA DE AREIA" - Texto de João Lopes a propósito da antestreia na Cinemateca

[Antestreia na Cinemateca, 7 de Outubro de 1989]

contracampo

Cinema português à espera

A estreia de Recordações da Casa Amarela poucas semanas decorridas sobre a sua distinção com um Leão de Prata no Festival de Veneza constitui um fenómeno raro no nosso mercado cinematográfico. Aqui está, na verdade, um filme que, para além das leituras que possa suscitar, dos entusiasmos e demarcações que não vai deixar de desencadear, consegue vencer a mais perene maldição do cinema português: chega ao confronto com o público quando a sua actualidade é um facto palpável.
Assim se anula, pelo menos num caso, essa ideia algo patética segundo a qual os filmes portugueses não servem senão para angariar distinções ou prestígio no estrangeiro – e, concretamente, nos festivais de cinema estrangeiros – (sobre) vivendo condenados ao desconhecimento por parte do próprio público para o qual, acreditamos, foram pensados. Basta recordar o caso dramaticamente exemplar de O Bobo, de José Álvaro de Morais, premiado com o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno de 1987 e, até hoje comercialmente inédito no nosso país.
A regra tem sido, na verdade, esta: os filmes portugueses dificilmente chegam às salas portuguesas. As explicações para tão insólito estado de coisas são, certamente, muitas e variadas, podendo cada caso particular justificar um rol de argumentos mais ou menos lamentados, por vezes à beira do lamentável. Parece difícil negar, no entanto, que o seu prolongamento não pode ser explicado apenas pelo «desinteresse» dos filmes (mesmo quando não podemos deixar de reconhecer que alguns são de difícil relação com qualquer público) ou pelo «boicote» de distribuidores e exibidores (mesmo se tais entidades nem sempre têm mostrado verdadeiro interesse em repensar os modos de promoção do cinema português). Para além de tudo isso e, quase sempre através disso tudo, permanece um dos chamados problemas de fundo: a quase completa dissociação entre a produção e a difusão.
A circunstância de os filmes portugueses serem produzidos, em grande parte, com dinheiro estatais gerou «mecanismos de inércia» (esperemos que o paradoxo da expressão seja, pelo menos, sugestivo) que não têm sido fáceis de anular. Dir-se-ia que a eventual energia investida na fabricação do objecto-filme poucas vezes se traduz nesse outro território – o do acesso aos espectadores – dele separado, pela lógica económica, mas não separável se pensarmos, muito simplesmente, porventura candidamente, que um filme apenas cumpre o seu destino quando chega a... algum público.

O papel da crítica?

Num contexto assim definido, o papel da crítica é necessariamente vulnerável, sobretudo quando são os próprios discursos críticos a favorecer as condições da sua vulnerabilidade. Na pior das hipóteses, isso tem-se traduzido, em casos passados, na proliferação de um paternalismo acomodado e sem (des)culpa: do seu ponto de vista, competiria à crítica compensar (triste missão) as falhas e limites da conjuntura em que os filmes são divulgados ou esquecidos. De acordo com tal estratégia, que pouco mais é do que uma patética confissão de impotência discursiva, seria indispensável garantir no espaço específico da crítica as regras do proteccionismo que, noutros campos, os filmes não encontram.
Ora, que discurso pode manter-se a um nível crítico ignorando que o seu trabalho depende, justamente, de uma relação nunca decidida nem estabilizada com a actualidade verificável, possível ou desejável? Ou ainda: que discurso pode ambicionar possuir um estatuto crítico se menosprezar o facto de a verdade se jogar sempre, mas sempre, numa certa e segura distância – que é, de uma só vez, atenção e liberdade – em relação à actualidade em que se inscreve?
Neste momento, uma maneira de dizer essa distância pode ser, por exemplo, a evocação de um dos filmes portugueses que permanecem inéditos no seu próprio país: Rosa da Areia, de Margarida Cordeiro e António Reis. Não para o lançar contra algum outro filme (mesmo não ocultando que o seu radicalismo desafia todo o cinema), nem sequer para o consagrar em nome do seu reconhecimento noutras paragens mais acolhedoras (mesmo não ignorando que esse reconhecimento é um facto verificável). Apenas para sublinhar que o próprio discurso crítico não pode deixar de se sentir reconhecido pelo facto de a lógica do seu labor se descobrir energicamente desafiada perante a singularidade das apostas formais de Rosa da Areia.
Apresentado no passado sábado, numa sessão efectuada na sala da Cinemateca, Rosa da Areia estabelece óbvias relações com os títulos anteriores dos seus autores: Trás-os-Montes e Ana. Ao mesmo tempo, porém, há nele uma sede de absoluto que o transforma num objecto digno do combate que decide travar: trata-se, afinal, de filmar uma errância das memórias e dos símbolos, do histórico e do mitológico, que compromete não apenas a verdade das nossas heranças culturais, mas, no limite do indizível, toda a ordem cósmica.
Rosa da Areia não serve de modelo para o que quer que seja, a começar pelo cinema português. Os que se julgam fadados para promover, por exemplo, a «qualidade» de Oliveira contra a «popularidade» de Fonseca e Costa (ou esta contra aquela) escamoteiam a simples evidência de que a vitalidade – artística & comercial – de um qualquer cinema passa sempre pela diversidade das suas frentes. Não precisamos de padrões universais, mas de um universo de muitos padrões.
Rosa da Areia é apenas (e não é pouco) uma experiência capaz de interrogar drasticamente as nossas atitudes correntes como espectadores e, nessa medida, um objecto que só aceita o que vejamos a partir de um compromisso total do nosso olhar e da leitura do mundo que nele transportamos. Que seja um filme invisível, isto é, à espera de se cumprir como filme, eis a tragédia muito portuguesa de que todos participamos, atravessando silêncios violentos como um grito.

João Lopes

Jornal Expresso, Cartaz, pág. 5, 14 de Outubro de 1989

terça-feira, julho 12, 2005

084. "ROSA DE AREIA" no "Blitz"

[Antestreia na Cinemateca, 7 de Outubro de 1989]

FLORES DO DESERTO

Onde é que se escondem os mais belos e estranhos objectos do Cinema actual? Onde é que é necessário cavar para os descobrir e levar aos lábios, para os saborear longamente, e para, enfim, matar a sede? Onde é que está o sal e a luz, o vento e as sombras, a areia e as vestes, as imagens e os ritmos de que são feitos os sonhos? Onde é o lugar das danças dos corpos e do voltear dos espíritos, das explosões das vísceras e dos bálsamos da alma, dos cansaços dos membros e das memórias presas no olhar? Onde é que deixámos, perdida para sempre, a inocência dos bichos e das plantas e das pedras? E onde é que vogam estes pássaros que, cruéis e amantes, esperam a morte dos homens e com eles confundem os seus gemidos? Onde?
Quem recolhe e guarda sabedorias eternas, conhecimentos revelados pelos deuses antigos e pela mãe das terras, por velhas sacerdotisas e belas feiticeiras, nestes mundos, nestes tempos? Quem poderá saber do passado e do presente, da maldade e das virtudes, da saúde e das maleitas, da mentira e das múltiplas e desvairadas verdades? E quem são estes homens e mulheres, crianças e anciãos, estas gentes, estes povos, que sofrem e que lutam, que amam e se alegram, que são ensinados e ensinam, que observam as modificações das luas e as correrias dos astros, as marés dos desertos e os eclipses dos sóis, que sabem destes segredos e, penitentes e órfãos, deles se apartam? Quem?
Quando foram criadas estas leis, sentenças e condenações, inventados estes comportamentos, rituais, códigos e juízos? Quando foram iniciadas estas práticas que nos obrigam a beber o fel até à última gota, a rastejar por cima de lajes em sangue, a abandonar em exílio a aldeia amada e, no fim, voltar, sempre, ao ponto de partida? Quando é que se começaram a chamar tempestades e bonanças com negros batuques e dourados tambores, com assobios de amante e sopros de amiga, com estas vozes que saem, das peles e das madeiras e dos metais? Quando é que as crianças de todo o mundo aprendem a brincar às escondidas e a contar até vinte, ou trinta, ou quarenta? E quando é que o fogo passou a servir para flagelar os homens, e, na sua ausência, devorar as suas casas e roupas e seus objectos e rastos? Quando?
Porquê estas batalhas que se observam de longe e estas vinganças tribais que as mentes do Ocidente, mentindo, fingem não poder entender? Porquê este violento corpo a corpo entre o velho e o novo, o poderoso e o escravo, o nascido no lugar e o estrangeiro? Porquê estes estigmas que transportamos desde a infância, estes destroços de outras eras, estes medos e horrores primevos, estes sacrifícios de homens e animais? E porquê esta alegria inexplicável e esta festa colectiva, esta vertigem dos sentidos e este ofuscamento da razão, esta perda da terra firme e a fuga, urgente, para outras paragens e outros lugares? Porquê?
Como apreender este tempo que escorre lenta, lentamente, diante destes nossos olhos agora abertos de espanto, agora preenchidos de imagens e de tons e de poemas em ocre e azul? Como perceber estes sons e palavras, estes choros e risos, estes gritos e ais, como perceber estas linguagens que se escapam por entre os dedos e a razão, como areias do deserto arrastadas pelo vendaval, como pétalas de flores vermelhas depositadas sobre um túmulo de mãe, como águas limpas que correm brilhantes e afastam a doença.
Este texto foi baseado em "Yaaba", um filme de Idrissa Ouedraogo ainda em exibição por mais três dias no Fórum Picoas, e "Rosa da Areia", um filme de Margarida Cordeiro e António Reis que passou no sábado passado, às onze da manhã, na Cinemateca Nacional. Não se sabe ainda se terá distribuição comercial no nosso país.

António Pires

Jornal Blitz, pág. 16, 10 de Outubro de 1989

segunda-feira, julho 11, 2005

083. "ROSA DE AREIA" - depoimento dos realizadores

Margarida Cordeiro:

A propósito de «Rosa de Areia»: é um filme para quem pode ainda ver e ouvir como que pela primeira vez; como se fosse o primeiro filme surgido na terra e falando sobre ela.
Houve a luta com as formas, muito tempo antes de serem filmadas; o filme «mental» mudou vezes sem conta, mesmo após ter sido sujeito à escrita prévia da(s) découpage(s). Filmadas, as formas revelaram-se muito belas, estranhas, hostis ou mesmo incompatíveis (planos que não puderam incorporar-se na montagem). Impunham-se, rejeitavam-se, atraíam-se, estavam vivas.
Finalmente, «Rosa de Areia» estava ali, contra mim (fazendo parte de mim), no escuro das salas, palimpsesto complexo e fugitivo no ecrã, jogo de luzes e sombras, de sons e de silêncio.
E a alegria muito funda e grave durante todo este longo e inenarrável processo.

António Reis:

Eu diria que «Rosa de Areia» é, totalmente, um filme de matérias. Matérias em permanente devir: o vento natural torna-se vento de tuba, o vestido das actrizes contracena com as nuvens, a tri-dimensionalidade cai aos pés da bi-dimensionalidade, o plano-sequência é emparedado pelo fixo, a música é o silêncio e a cor modulada, a luz mais pura passa a flutuante e difusa.
O sentido do labor sobre as matérias (implicando-se e implicadas) não pode, pois, delimitar-se: é múltiplo, refaz-se constantemente e sobretudo interroga, elabora formas...
«Rosa de Areia» não passa como uma torrente: esvai-se em lenta rotação, em lenta translação, movido pela insubmissa energia das formas cinematográficas.

14 de Agosto de 1989


Revista Cinema, n.º 16, pág. 8, Outubro de 1989 (Director: Henrique Alves Costa). NOTA: Parece-nos que este depoimento foi escrito para o Xociviga, Xornadas de Cine e Vídeo de Galicia, mas não temos a certeza. Se nos puder ajudar...

domingo, julho 10, 2005

082. OBRA A MEIAS



Conversa entre António Reis e Margarida Cordeiro durante a rodagem de "Rosa de Areia".
NOTA: A imagem não respeita o enquadramento da fotografia
original que adquirimos na Cinemateca Portuguesa
.

sábado, julho 09, 2005

081. "ROSA DE AREIA" no Xociviga, Galiza (Acrescentado)

Terminada en 1988

"Rosa de Areia", de Margarida Cordeiro e António Reis

O público que onte acorreu á Casa da Cultura para ver "Rosa de Areia", de Margarida Cordeiro e António Reis, foi o da estreia do filme, na Galiza. Já mostrado em diferentes países europeus, em encontros cinematográficos de índole diversa, esta película terminada em 1988, continua inédita em Portugal.
Para quem tem acompanhado o trabalho dos dois realizadores portugueses, este filme, o mais recente, eleva-se a um grau de depuração formal que ihe retira pontos de apoio que o identifiquem com um grupo sócio-cultural determinado, para se tornar numa longa meditação sobre a natureza humana e o destino da vida.
Mais uma vez, a Natureza, em planos magistralmente fotografados por Acácio de Almeida, um dos nomes fundamentais do cinema portugués actual, acolhe no seu seio, ora rochoso ora florido, mas sempre grandioso, os figurantes humanos que, na mais íntima comunhão com os elementos, se erguem quase estáticos, para nos dizerem da fragilidade, do passageiro, do absurdo de todas as coisas. Contra a imensidade dos contrafortes transmontanos, Margarida Cordeiro e António Reis projectam a brevidade da vida humana e a dor real (não existencial) que nos traza a consciência da fugacidade irremediável da nossa condição.
Filme intemporal, diríamos, em que a sensibilidade de concepção busca as imagens de um telúrico eterno onde o vento o sibilar do vento ou o murmúrio da água que corre, são o contraponto mais expressivo (e mais comunicativo, num cinema como este) ao suceder ininterrupto dos días, das estaçoes, do tempo, do espaço, da vida e da morte, numa combinaçao orgánica de factores estilístico com uma linguagem de alto nível poético que acaba de entegrar um humano no silêncio e na amplidão da universalidade cósmica em que tudo se resolve. Sugerimos á Organização do Xociviga que, na próxima edição (ou numa das próximas), organize uma retrospectiva integral da filmografia de Margarida Cordeiro e António Reis:
"Jaime" (1974), "Trás-os-Montes" (1974/76), "Ana" (1984) e, de novo este "Rosa de Areia", para que aqui o público e os críticos possam ajuizar das afinidades de todo o tipo entre estes filmes e a realidade humana de uma Galiza que, por exemplo Chano Piñeiro retrata em "Mamasunción", e com a qual tanto nos identificamos.

Conversa com Margarida Cordeiro e António Reis

Em Agosto, o calor abrasa nas ruas desertas de O Carballiño. É a hora de xantar – assim se chama, em galego, o nosso almoço. No restaurante do Hostal Esclavo, onde os empregados vão por entre as mesas dos veraneantes que acorrem às águas termais daquela vila da Galiza, vamos encontrar Margarida Cordeiro, António Reis e a filha Ana Umbelina. Enquanto saboreamos o «caldo galego» e a «chuleta» que o Manolo se apressa a trazer–nos com simpatia solícita, falamos de cinema português, mais concretamente do cinema feito pelo casal e, em particular de «Rosas de Areia» que viemos conhecer aqui:
P.: – «Este filme...»
R.: – Não tem nada a ver com o resto do cinema português, nem do ponto de vista estético, nem do temático. A arte é um meio de prospectar o desconhecido. De abordar o mistério. Queremos sempre ir mais além. Avançamos, interrogamo-nos e transformamos essas interrogações em cinema. Neste processo, o tema não é de primordial importância. Alguém disse que o nosso cinema é pré-socrático, é metafísico – foi Jacques Rivette.
P.: – Porquê a incidência de Trás–os-Montes na vossa filmografia?
R.: – Porque conhecemos bem a terra, a gente e amamo-las muito. É também mais barato trabalhar lá. Fomos a Marrocos, ao Sahará, filmar dois planos que ficaram caríssimos. Trás-os-Montes representa um confluir de civilizações milenárias que se foram acumulando, estratificando. Lá fomos encontrar um espaço cénico físico e cinematográfico bravio, livre, não-poluído. É uma geografia humana que tem permitido a modulação plural dos nossos filmes. Achamos que a montagem deve ser modulada e não modelada como acontece no cinema narrativo tradicional. A Margarida nasceu lá, conhece bem todo aquele mundo e isso nos permitiu destruir o conceito de «décor» e passar directamente para a Natureza.
P.: – Não está nos vossos planos um filme de tema urbano?
R.: – O nosso próximo projecto continua a ser rural – o filme a seguir, gostaríamos de o fazer no México, se houver possibilidades para isso. Quanto a um filme citadino, é claro que nos interessa. O Porto é uma cidade matricial, com uma personalidade fortíssima. Ao Porto devemos um filme, um grande filme, pelas vivências que lá vivemos. Terá de ser uma água-forte avassaladora, mas que não seja tributária de qualquer estética, quer dizer, onde não haja pontos de partida formais a-priori. Repito [é António Reis quem fala] que sempre transportei no mais fundo do coração, a dor e o sonho de anos de vida no Porto, que me marcaram para sempre.
P.: – Sobre o cinema contemporâneo?
R.: – O cinema que fazemos num país como o nosso e neste tempo, procura exprimir um modo de ver e de sentir a vida. Há quem diga que os nossos filmes não têm acção, mas repara, uma pessoa a olhar para uma paisagem é acção, a acção que nos interessa, a interior, porque da actividade das ideias e da comoção dos sentimentos é que nasce a verdadeira evolução. É a legibilidade da contemplação das formas naturais e a sua componente emocional que procuramos exprimir nos nossos filmes.
P.: – Que dizer mais, para terminar, sobre «Rosa da Areia»?
R.: – É uma obra acabada, completa que nos deixou a sede de continuar, abre novas pistas, outras vias de interrogação que nos encaminham para o novo trabalho que nos absorve já por completo.
O diálogo termina aqui. Em conversa posterior, Margarida Cordeiro e António Reis acrescentaram:
«O filme ainda não foi exibido em Portugal mas, para além de já ter sido mostrado nas «Xociviga/89» de O Carballiño (Galiza) foi passado em ante-estreia, no passado dia 7 de Outubro, na Cinemateca portuguesa, para actores e pessoal da equipa técnica do próprio filme, jornalistas, críticos, escritores e demais pessoas interessadas. A recepção foi calorosa e os presentes ressaltaram a beleza poética do filme e insistiram no desejo de o verem novamente. Achamos que esta é a melhor credencial do nosso trabalho».

José Coutinho e Castro

Jornal La Región–Ourense, Martes, 1 de Agosto de 1989, in revista portuguesa "Cinema", n.º 16, pág. 6-8, Outubro de 1989 (Director: Henrique Alves Costa). NOTA: A "Conversa..." retirámo-la da revista "Cinema", n.º 16, mas não sabemos se foi publicada no jornal La Región. Se nos puder ajudar...

sexta-feira, julho 08, 2005

080. "ROSA DE AREIA" na "Variety"

BERLIN FEST REVIEWS

Rosa de Areia
(The sand Rose)
(PORTUGUESE)

"The Sand Rose" contains a flow of handsome images unburdened by any narrative continuity, accompanied by a selection of text ranging from Kafka to medieval tales. Picture will appeal only to audiences exclusively concerned with film language and poetry.
Decorously clad figures, mostly women, are arranged around breathtaking landscapes, their expressions denoting a state of constant angst.
Film is mostly about the abject conditions of human existence, with historical episodes such as the 15th century trial of a sow. The exact significance of all these images is far from evident, but it seems the point is to create moods, rhythms and images.
The film contains its own criticism when it says that these have already been seen before: they are senseless, but also beautiful.
It’s strictly arthouse experimental fare.

Edna.

Variety, March 15-21, pág. 16, 1989

quinta-feira, julho 07, 2005

079. "ROSA DE AREIA" - Crítica de João Bénard da Costa - 2

[Festival de Berlim 1989]

O crepúsculo inicial ou a aurora final
Um filme

(Conclusão)

Com Deus diante dos olhos

É, pelo contrário, uma rima poderosa que unifica os episódios que se sucedem entre o belíssimo plano élfico das raparigas a correr na clareira do bosque (plano que fortemente recorda outro semelhante que existe em Ana e com a mesma função) e o episódio da ressurreição do morto. É a «secção» mais violenta e agreste do filme, desde que abandonámos um imaginário à Corot (o tal plano a que chamei élfico) e os discretíssimos rumores (guizos, chocalhos, sopros, brisa) da descida da fraga que ecoa o de Trás-os-Montes, e entrámos nas grutas e no oculto.
No alto de um monte, o vento é fortíssimo, muito mais implacável na sua estridência do que os corpos esvoaçantes que começam a evocar a guerra que parecem ver, mas de que apenas nos é dado esse off sonoro. Depois, os ruídos tornam-se mais misteriosos, dir-se-ia que «raspando» à própria imagem, como se o discurso de horror fosse mais o dos sons do que o das palavras. Um imenso travelling atira-nos para o fundo de uma cova num imaginário surreal, até um dos mais fabulosos planos do filme em que a câmara se imobiliza perante um cão negro e cego que parece arrancado ao mais tenebroso bestiário barroco, a Dionísio Minaggio e aos insólitos jardins dos governadores espanhóis de Milão do século XVI.
A essa imagem alucinante (que me evoca igualmente o plano da raposa n'A Caça, de Manoel de Oliveira) sucede-se a do poço com água amarela, que lentamente sobe e extravasa numa analogia mais misteriosamente horrível. E é depois que se sucedem as sequências do boomerang, da invocação de António Reis e do regresso da alma doente (outro fio oculto para Ana) com a composição soberba da imagem (o espelho, o corpo do jovem).
É, precedido pelo rufar do tambor da mesma mulher de negro, entramos no episódio que certamente mais dará que falar: a leitura do processo e sentença do porco homicida, na Vila de Castelo Branco, em Março de 1428.
Ao contrário da guerra (figurada na banda sonora, como disse) ao contrário do «episódio» posterior do distribuidor do pão (relator do que só ao longo entrevemos) o processo do porco é inteiramente figurado, com personagens vestidas à época e reconstituição do patíbulo. E se o horror sonorizado ou narrado (as violências das mortes) funcionava por elipse, aqui funciona por visualização, «quadro vivo», na própria monstruosidade kafkiana do processo e do facto (verídico a histórico). Mostruosidade que atinge o paroxismo quando o juiz afirma que, em cumprimento de preceito legal e teológico (baseado numa passagem do livro do Êxodo) significou ao porco a sentença capital, «olhando nos olhos o animal criminoso» e com «Deus diante dos olhos» condena o «culpado» a ficar «pendurado na potência até à morte» e «aí ficará longo tempo, até apodrecer, para memória da enormidade do seu crime e para incitar à reflexão os outros que poderiam querer imitá-lo».
O realismo da sequência introduz vertiginosamente o irrealismo da visão e a irrisão de uma justiça que procura, para o animal, justificar-se com os mesmos fundamentos que utiliza para humanos. Abstendo-se de qualquer excesso (não vemos morrer o porco) António Reis e Margarida Cordeiro perceberam que só essa visualização (pela sua carga de insólito, de absurdo) podia servir de correlato à violência não visualizada, que a nossos olhos – ao contrário daquela – já seria banal pela quotidiana invasão de imagens semelhantes.
O que justifica essa visão é a sua diferença de natureza e de objecto. Sendo o mesmo, o horror é diverso e daí a circularidade desses vários «episódios» carentes de «alimento, ajuda humana e vida».
Por isso também, essas chacinas não podem ficar confinadas a um passado remoto. A mancha amarela que a rapariga, mais tarde, risca no chão, associável à da água do poço, reenvia a outro círculo em que o tempo histórico se une com o da ficção científica. O círculo das imagens é tão perfeito como o dos sons. E as palavras são como o vento que passa.
Tudo é imagem. Tudo é fragmento. Tudo é uno.

Espaço, caça, pátria

Na quarta das Elegias de Duino, Rilke fala de uma misteriosa «promessa». Os amantes, diz, prometem-se Weit, Jagd und Heimat (Espaço, Caça e Pátria). Os que se reúnem pelo amor, situam-se no Weite, o espaço, ou, mais precisamente, o «largo». É neste espaço alargado, dilatado, aberto, que terá lugar a «caça». O Heimat, a pátria, o lugar de regresso, e o terceiro momento da «promessa», mas esse momento não está situado no tempo. Como diz Rilke, não é «uma das estações do ano secreto». A «pátria» é, mais aproximadamente, a abolição do tempo e a sua reabsorção num novo espaço que a Décima Elegia chama
        Stelle, Siedelung, Lager,
        Boden, Wohnort (Lugar,
        Residência, Terreno,
        Solo, Morada)

É uma semelhante promessa que me parece anunciar-se e enuncir-se na Rosa da Areia de Margarida Cordeiro e António Reis.
Já me referi ao mistério do «eu» e do «tu» no diálogo final, que insinua um olhar bifronte, uma dualidade amante.
Essa dualidade, esse olhar começa por pousar-se no espaço de Trás-os-Montes, espaço já mitológico nos filmes dos dois autores, pela referência que de Trás-os-Montes e Ana unem esses filmes a este no que é muito mais do que um décor. Rosa da Areia não começa em Trás-os-Montes, mas a parede nua inicial (o «muro do tempo» para voltar ao léxico jügeriano) só se descerra para nos levar a ver crianças «profundamente mergulhadas na noite» que a voz do poeta não desperta, mas parece introduzir a sonhos semelhantes dos das crianças de Trás-os-Montes e Ana (sobretudo ao sonho do miúdo doente em Ana, velando pela avó).
Logo a seguir, se afirma esse espaço, libérrimo e solto, o espaço inconfundível dos filmes anteriores e das aparições anteriores. Esse espaço é, também, o espaço da montagem, tal como esta foi entendida pelos cineastas russos com que, desde Jaime, António Reis tem secretas e electivas afinidades: Dovjenko, Tarkowski, Paradjanov. Um olhar muito incauto pode dizer que em Margarida Cordeiro e António Reis, como nos cineastas citados, não há montagem, no sentido retórico do termo. Mas não há filmes mais milimetricamente montados, não há filmes onde a montagem não seja tão respiratória, não há filmes onde montagem e espaço se confundam de forma tão absoluta e tão totalizante.
Basta ver com atenção esse prodigioso início, desde a seara dovjenkiana, até ao travelling da cega; desde o aparecimento primeiro da imensa mole granítica (o vento, o vento) até à visitação do anjo andrógino de calças amarelas que a cega acompanhará, desde o plano da apanha da batata até ao da giesta e da constituição do grupo germinal.
Que propõe o anjo à rapariga cega e, depois, às outras aparições? No sentido rilkeano, uma caça ou uma caçada (Jagd) em que a imaginação não é jogo de imagens (visuais e sonora) mas a própria substância do mundo, esse mundo a que se dirigem por «tu», com medo e assombramento.
Explicita-o o episódio da igreja («ancestral, silenciosíssima e vazia» como no poema de Cristóvão Pavia) explicita-o a associação (feita do diálogo) da insensatez à beleza, da frieza à compaixão. E explicita-o, sobretudo, a magnífica encenação do texto de Montaigne, novamente confiada ao velador inicial. Ao princípio, move-se como se estivesse num aquário, num elemento líquido, até que a câmara recua e descobrimos a assistência a quem se dirige. O aquário volve-se em palco ou tela e o cinema é expressamente convocado (filme dentro do filme) para essa caça às imagens, colocada sob o signo da raposa.
Caçada, para além da poesia, num mundo de amére beauté, ou na mais forte imagem de Rilke, do «primeiro grau do terrível». E é a uma ascensão nessa beleza e nessa terribilidade que somos conduzidos no episódio que acima evoquei, perante esse «vento pleno dos espaços do mundo» também referido nas Elegias. O último degrau dela é a ressurreição do pai morto («demasiado tarde») e o lindíssimo texto zen do homem perseguido por um tigre que caiu num poço onde outro tigre o esperava.
É depois dessa narração, culminando a mise-en-scéne desenvolvida ao longo do que chamei «a caça», com um domínio e tensão plásticos a que só, eventualmente, foge a «sequência» do espancamento na igreja (a única no filme que me suscita reservas) que se faz referência ao «crepúsculo inicial da história» no que é, para mim, o movimento visualmente mais impressivo de todo o filme. É quando «a beleza extrema desses corpos frágeis», antes do fim da noite, emerge no primeiro nu dos filmes de Cordeiro e Reis e no movimento da criança que abre a porta e se perde na noite. É uma composição magrittiana que culmina esse reinado da mise-en-scéne e o ciclo do surreal.
Saint-John Perse vem então chamar-nos, por outras palavras, a cette terre jaune, notre délice, no regresso à pátria, ou seja às moradas. E o filme adquire então a sua dimensão plenamente cósmica, em que esta terra e esta beleza são apenas um lugar entre mil milhões, mil milhões, mil milhões.
Regressa o anjo, regressa o imaginário telúrico, enquanto explode o cogumelo atómico e a paisagem parece liquefazer-se, tão carnal e tão abstracta como nas Nymphéas de Monet. O amarelo dá lugar ao rosa e o eu e o tu dissolvem-se na «mesma pessoa... a mesma imagem, talvez...».
Do «crepúsculo inicial da história» regressamos à «aurora final», fechando-se o círculo que é a mais contrastante das metáforas utilizadas no filme. Do fundo dele, brota a água de diversas cores que une as nascentes terríveis às nascentes de harmonia, os crepúsculos sangrentos aos crepúsculos pacificados.
Rosa de Areia é uma figura perfeita, carregando o simbolismo mágico de todas as formas perfeitas. Em cinema, é a mais bela versão do texto hindu do Matsya Purana que Malraux evocou na introdução a La Metamorphose des Dieux. «O regresso ao real» pertence sempre a um ciclo de aparências em que o afloramento do sagrado incomunicável só pode prolongar a inundação».
António Reis e Margarida Cordeiro ousaram segredá-lo no filme em que o cinema revela o que separa a visão da aparência da própria aparição. Dela, teceram os mais inextricáveis fios, sabendo que a tapeçaria ficará, como a de Penélope, para sempre inacabada, porque nela, simultaneamente «se desenham e apagam todas as formas».

FIM

João Bénard da Costa

Jornal Diário de Notícias, págs. 12-13, de 26 de Fevereiro de 1989

terça-feira, julho 05, 2005

078. "ROSA DE AREIA" - Crítica de João Bénard da Costa - 1 (Actualizado)

[Festival de Berlim 1989]

O crepúsculo inicial ou a aurora final
Um filme

Le temps s’en va, le temps
s’en va, ma Dame;
Las! Le temps non, mais nous
nous en allons

        Pierre de Ronsard


Em Berlim, Fevereiro de 1989, Rosa de Areia, o último filme de Margarida Cordeiro e António Reis, teve estreia mundial. Já estamos por demais habituados a estas primeiras núpcias de filmes portugueses no estrangeiro para que o facto choque alguém Devia chocar, mas não choca. Também não chocará quando daqui a bastante tempo (um ano? dois? três?) Rosa de Areia for finalmente distribuído em Portugal, eventualmente, até, primeiro na televisão (primeira também – honra seja feita – a apostar no filme) e só depois numa sala de cinema. Continuará a não chocar se o público deixar a dita sala às moscas. E chocará um bocadinho – mas não muito, é fait divers – se uma douta comissão – como sucedeu com Ana – vier a declarar ex cathedra que o filme não tem qualidade. Um dia, depois, eu sei. Mas também sei que a longo prazo estaremos todos mortos. E para nos ressuscitar só fica o filme.
Não quero ser ave agourenta. Queiram alguns (não é preciso invocar o Santo Nome em vão) que as coisas se passem de modo diferente e de modo diferente se passarão. Já alguns, só alguns, quiseram que o filme existisse (RTP, Secretaria de Estado da Cultura, Fundação Calouste Gulbenkian) e o filme existe. Mas, para ser inteiramente sincero, não creio, não creio que se vá além disso, nem que o filme seja recebido, em Portugal, de modo diverso do que o foram Jaime, Trás-os-Montes, Ana, os três sublimes filmes anteriores de Margarida Cordeiro e António Reis.
Neste pessimismo só eles me não acompanham. Os grandes visionários podem ter dúvidas, podem ter muitas noites de agonia, mas a sua fé move montanhas. E já é muito dissonante que eu comece este texto com tanto pessimismo. Por isso, a ele não torno. Porque vos vou falar de uma das grandes obras fundadoras e fundamentais que o cinema já nos deu. Perante ela, acreditamos que tudo pode estar ainda no início, esse início donde nos falam António Reis e Margarida Cordeiro.
Pegando no epígrafo de Ronsard, só nós é que nos vamos. O tempo não, o tempo não, minha senhora.

Tratar por tu o universo

Por isso, em Rosa de Areia, o tempo pode ser nenhum (rigorosamente indefinido como em tantos planos acontece), pode ser a Idade Média, o século XV, o século XVI, ou pode ser o tempo futuro, o tempo de que Carl Sagan nos fala noutro plano do filme. Por isso, também o termo plano é pobre e particularmente desajustado. Dizer plano-sequência (e, na verdade, o filme é a soma e súmula de 97 planos a que se costuma chamar assim) não me ajuda, nem ajuda a entender a prodigiosa construção do filme. Porque não há diferença de significação e de significado, entre um plano de segundos de uma seara ondulante, ou de um campo de flores às vezes pacificado, e uma sequência de quatro ou cinco minutos que narra uma história: o porco executado ao abrigo de uma prescrição mosaica; o relato da imolação pelo fogo de centenas de camponeses esfomeados; a história do pai que ressuscitou dos mortos para dar de beber à filha um vinho feito de sol, de poeiras e de chuva.
Precisamente depois do episódio da execução do porco, precisamente depois do plano que a ele se segue – o mais erótico e críptico do filme – onde vemos os carrascos, de tronco nu, moles de músculos arrancados a uma revisitação cottafaviana do peplum italiano, a lavarem-se do sangue do animal, precisamente depois, dizia eu voltamos a ver as Parcas que desde o início nos conduziram nesta peregrinação. Estão junto a rochas e montes, como saliências deles e recitam um texto védico que nos pergunta para onde vão as meias-luas, para onde se apressam as virgens de diferentes rostos, porque nunca param as águas, porque nunca descansa o vento, porque nunca descansa o espírito. Que relação obscura existe entre o episódio anterior e esse plano (e já expliquei quão mal utilizo esses termos)? Pode responder-se que existe uma relação poética, como se pode chamar poema cinematográfico a todo o filme. Mas a palavra ou a expressão só não é redutora se a entendermos etimologicamente (no sentido da poiésis) e nos esquecermos de qualquer conotação com as definições pasolinianas de «cinema-poesia». Não há cinema mais directo, menos subjectivo (mesmo que se pense na «subjectividade livre» de Pasolini) do que o cinema de Margarida Cordeiro e António Reis. Jamais os autores penetram na alma dos seus personagens (se existem personagens e se têm alma) adoptando a sua psicologia ou a sua língua, para continuar a seguir a teoria do autor de Teorema.
Essa penetração, mesmo entre eles, parece impossível. No final, uma voz em off pergunta ou insinua que «é preciso, talvez, escolher um fio, ao acaso». Obtém como resposta (ou como continuidade) que «a ideia destas histórias é tua, e não sou eu que vou interferirnelas». E as últimas palavras do filme, junto à terra nua que fora também (pelo ecrã da parede) sua imagem inicial, dizem «e, no entanto, será que houve, jamais, alguma coisa, nalgum lugar, nalgum tempo?».
Quem é o «tu» a que se atribui «a ideia destas histórias»? Quem é o «eu» que não vai interferir nelas?
Como Bachelard um dia escreveu (no prefácio à tradução francesa do Ich und Du, de Martin Buber), a questão é irrelevante quando transcende o substancialismo do primeiro pronome pessoal: «Que importam as flores e as árvores, o fogo e a pedra, se não amo e não tenho lar? É preciso ser dois – ou, pelo menos, ai de nós, ter sido dois – para compreender um céu azul, para invocar uma aurora. As coisas infinitas, como o céu, a floresta e a luz só acham nome no coração daquele que ama. A brisa das planuras, na sua doçura e mansidão, é o eco de um suspiro enternecido. Por isso, a alma humana, enriquecida por um amor eleito, anima as grandes coisas entre as pequenas. E pode tratar por tu o universo, porque conhece a embriaguês humana do tu».
Este texto de Bachelard é, porventura, a melhor explicação originária de Rosa de Areia e da singularidade, inocente e perversa, do seu olhar. Muitos excertos de L’Air et les Songes podiam ser também citados. Porque este é um filme «que trata por tu o universo», um filme sobre o ar e os sonhos, as flores e as árvores, o fogo e a pedra, o céu e a montanha, a luz e o som. E é essa grande coisa que é o cinema que nele se anima, tão convocada pelo olhar mais inicial, como pelo olhar mais crepuscular, num círculo em que o tempo mensurável e o tempo do destino são concêntricos. E, na passagem de uma terminologia bachelardiana a uma terminologia jüngeriana, Rosa de Areia é também o filme que nos recorda que é quando a noite é mais densa que o orvalho é mais fecundante.
Bachelard e Jünger teriam amado esta Rosa do Deserto, manhã de crepúsculos, crepúsculo de manhãs.

Um ordenado rigor

Disse o suficiente, julgo eu, para se ter já percebido que Rosa de Areia, ao contrário de Trás-os-Montes e de Ana, não tem um fio narrativo, pelo menos na acepção convencional do termo. Ténue era esse fio nos filmes anteriores, mas existia. Em Trás-os-Montes, transportavam-no as crianças, através da sua maravilhosa iniciação à magia e aos ritos. Em Ana, transportava-o a personagem titular, essa avó telúrica para quem a visão de um cometa e o apelo de uma vaca constituíam a mesma aura de sacralidade.
Rosa de Areia – apesar do lugar que no filme tem a mesma paisagem primeva e matricial – Trás-os-Montes, sempre como lugar de origem e lugar de fim – não segue essa estrutura guiada ou centrada. Os únicos guias no mundo deste filme, no tempo deste filme, são os autores, tão expostos quanto secretos para usar palavras deles. E expostos – mais expostos ainda do que nos filmes anteriores – porque a ordenação das imagens não obedece a outra lógica que não a do seu próprio imaginário, nunca tão assumido e tão fulgurante como aqui. Secretos – mais secretos ainda do que nos filmes anteriores – porque nenhum mensageiro se introduz entre eles e a mensagem que cada plano é. Nos planos iniciais julgamos encontrá-lo, quer no velador do sono das crianças, (aquele que lê um obscuro texto de Kafka que fala de «uma pequena comédia», de «uma inocente ilusão») quer na rapariga cega que um travelling acompanha, entre searas e ventos, paralelamente à câmara, na profundidade de campo, até depois se virar para ela – e para nós – do plano afastado até ao plano próximo.
Reencontramos muitas vezes ou algumas vezes essas personagens, se for legítimo chamar-lhes assim, mas não são mais condutores do que todos os outros que iremos conhecendo ao longo do filme. Esses, como todos, são relevos de um sonho oueds temporários onde nasce a rosa do deserto, para citar uma frase da brevíssima sinopse do filme. A sua missão – se missão tem – é apenas a de presidir à conformação dessa flor, a de nos acordarem ou adormecerem para a sua efémera fragrância. Quem são? Não sabemos, mas acompanhamo-los.
Do mesmo modo, guia não é o tema musical que ouvimos durante o genérico, as Variações Sinfónicas, de César Franck. Depois delas, nunca mais ouviremos música no filme e não prenunciam sequer uma estrutura a que a forma «variações» se possa aplicar. Num filme de tantos temas, não é possível «variar», mas apenas prosseguir, adensando. Por isso, depois, só há lugar para os sons e os silêncios – imagens sonoras tão relevantes como as imagens visuais – na banda som mais bem trabalhada de qualquer dos filmes de Cordeiro e Reis (e quem viu Trás–os–Montes e Ana sabe já da importância que os autores lhe deram nesses filmes).
Em duas sequências, voltamos a ouvir algo a que convencionalmente se pode chamar música. São as sequências em que surge uma mulher toda de negro vestida com um boomerang e depois com um tambor associadas ao plano em que se faz referência a guerras passadas, violências passadas, paroxismos e excessos. Como fantasma de um chefe guerreiro, ou do «soldado isolado» referido pouco antes, no diálogo, essa mulher – que nunca antes vimos e nunca mais veremos – parece simultaneamente desposar e chorar tal violência, ficando no filme como nota mais aguda dela. Com ela, a banda sonora explode, na percussão ou no silvo, em ritmos que, uma vez mais, tanto podem ser originários como prenunciadores de dissonâncias futuras.
Será por acaso que essa sequência – a mais musical – é a mais violenta?
Será por acaso que a ela se sucede o plano em que um dos autores – António Reis – surge no filme de costas para comandar o regresso da alma penada? («Vem, alma errante! (...) Vem comigo, alma! Para tua casa! Ao abrigo das tempestades, do vento e da noite escura!»).
Não o creio. As libérrimas associações do filme jamais parecem comandadas por acasos e nenhuma escrita automática é invocável a propósito deste filme, onde a ordenação mais oculta é a mais rigorosa.

(Continua...)

João Bénard da Costa

Jornal Diário de Notícias, págs. 12-13, de 26 de Fevereiro de 1989

segunda-feira, julho 04, 2005

077. "ROSA DE AREIA" - Crítica de A. M. S.

[Festival de Berlim 1989]

Em estado de sonho

A obra de Margarida Cordeiro e António Reis é uma experiência radical que, filme após filme, nos seduz e confunde no convite a uma viagem na qual simultaneamente reconhecemos elementos primordiais e enfrentamos o desconhecido.
Rosa de Areia, estreado no Fórum de Berlim, é a apoteose desse cinema, o seu momento mais fulgurante mas também o que suscitará maior perplexidade.
Progressivamente, a definição concreta de um objecto, que seriam a pessoa e os desenhos de Jaime ou a terra de cultura de Trás-os-Montes, vem-se diluindo numa ordem mais abstracta. Já em Ana era ténue o fio narrativo entre os diversos fragmentos e sequências, algumas das quais (como a evolução do eclipse ou o inesperado discurso sobre influências mesopotâmicas nos barcos do Douro) pressupunham coordenadas espaço-temporais exteriores à racionalidade do nosso saber.
Esta abstracção percorre integralmente Rosa da Areia, qual imensa colagem de textos e imagens.
Se fosse possível «definir» um filme em duas ou três palavras (ou se duas ou três palavras podem ser de algum modo indicativas), dir-se-ia que Rosa da Areia é um filme sobre «a condição humana». Ao princípio poderia ser uma tragédia grega: do alto da montanha, os deuses, as deusas (ou as «estrangeiras», como o diz uma, estrangeiras à condição humana e terrena), comentam as acções que ocorrem lá em baixo, no vale, a violência e as guerras. Ocorre um eixo vertical (em cima/em baixo) que poderia ser tomado como elemento de inteligibilidade do filme. Mas em breve tudo se confunde, quando as próprias estrangeiras têm experiências humanas, e o fascínio hipnótico das imagens e dos sons se revela como único ponto de referência (que assim pode ser reconvertido) numa viagem cujo sentido nos escapa.
Poderia pensar-se (e essa atitude é legítima) que a precisa questão de um «sentido» é inócua, pois que este cinema solicita os sentidos e não o esclarecimento de um saber. Ora, esta é uma questão crucial. Mais do que os filmes anteriores dos autores, Rosa de Areia é um filme que sugere ser, se não da ordem do inomeável (porque, enfim, é um objecto, existe), pelo menos da ordem do indizível, ou seja, um filme cuja radicalidade seria impositiva: sobre ele não se poderia ter nenhum discurso, nada seria passível de explicação ou de interpretação, todo o saber deveria ser anulado perante a experiência dos sentidos. Sucede que o saber, os vários saberes, são precisamente objecto do filme, um saber empírico como um saber científico, um saber íntimo como um saber cósmico (e assim convivem textos de Montaigne e Carl Sagan, por exemplo). Talvez que a questão fulcral deste cinema reside, justamente, na sua polaridade entre a matéria e o saber. Poucos, muito poucos, são os cineastas que são capazes de nos fazer sentir tão intensamente as matérias físicas, mas esse sentir é constantemente recomposto por um conhecimento que os autores detêm e mantêm como que secreto, como que podendo ser apreendido apenas na sua globalidade e não em nenhuma operação particular. Um conhecimento que exigiria uma alteridade absoluta, um estado outro.
Em Ana ouvia-se a dado momento uma das Elegias de Duino de Rilke, com a imagem de uma criança dormindo. O sono e o sonho são invocados em Rosa da Areia desde o início, qual estado originário em que domina a noite, a grande noite cósmica, mas em que simultaneamente afloram outras imagens, outras linguagens, outras associações. A intensidade do olhar torna-se num delírio visionário. Sucede que nesse delírio se vem inscrever uma diferente ordem de representação, com certas e concretas referências históricas ou com certas figurações artificiais – e este, digamos, é o limite da abstracção. As cenas «medievais» que se sucedem nos filmes, as figurações que lembram récitas escolares, vêm-se interpor, e de repente parecemos ter parado em terreno mais reconhecível, embora desconhecendo as razões porque aí estamos. Primeiro trabalho dos autores em 35mm, Rosa da Areia é um filme magistral, composto de planos admiráveis, com sistemática e rigorosa utilização do plano-sequência. É difícil não ficar deslumbrado perante tanta beleza, mas, essa beleza é também um risco. Se este cinema é uma experiência dos sentidos e do conhecimento, não será necessário amá-lo e não apenas admirá-lo, sentir-se transportado por ele e não apenas contemplá-lo? E, no entanto, é de uma beleza prodigiosa!

A. M. S.

Jornal Expresso, pág. 43-R, de 25 de Fevereiro de 1989

domingo, julho 03, 2005

076. "ROSA DE AREIA" no Festival de Berlim

Terceira longa-metragem dos realizadores Margarida Cordeiro e António Reis

«Rosa de Areia» exibido no Festival de Berlim

O filme português «Rosa de Areia», dos realizadores Margarida Cordeiro e António Reis, foi projectado na 39.ª edição do Festival de Cinema de Berlim, numa exibição fora do concurso.
Aplaudido na secção Fórum da Berlinale, o filme foi já convidado para os festivais de cinema de Locarno, na Suiça, de Pesaro e Salsamaggiore, na Itália.
Segundo Margarida Cordeiro, Rosa de Areia é um filme intemporal, aberto, diferente, uma tentativa de não deixar o cinema confinado. «Não tem uma história única» e é a «continuação» dos anteriores filmes deste casal de realizadores – a média–metragem Jaime e as longas–metragens Trás–os–Montes e Ana.
Por seu turno, o director do Fórum da Berlinale, Ulrich Gregor, escreveu que Rosa de Areia é «um ensaio fílmico não usual, radical na linguagem e ideias, representativo do cinema meditação e da extrema estilização».
Este filme, concluído em Janeiro, foi financiado pela Secretaria de Estado da Cultura, RTP e Fundação Calouste Gulbenkian.
A projecção de Rosa da Areia foi seguida por um longo debate em que participou, nomeadamente, o realizador francês Jean Rouch, que neste filme [festival] apresenta o 150.º filme, Boulevard d’Afrique.
Esta realização de Margarida Cordeiro e António Reis será exibido Quarta-Feira, em Paris, por iniciativa de Gulbenkian antes de ser projectado para jornalista e de entrar no mercado.
(...)

Jornais Diário de Notícias e A Capital, págs. 27 e 29 (respectivamente), 20 de Fevereiro de 1989. Nota: O texto nos dois jornais é praticamente igual, por isso optámos por os referenciar em conjunto.

sexta-feira, julho 01, 2005

075. "ROSA DE AREIA" - Festivais e Prémios

- Festival de Berlim (secção Forum) - 18 de Fevereiro de 1989
- Xociviga/89, Xornadas de Cine e Vídeo de Galicia - 31 de Julho de 1989
- Antestreia na Cinemateca Nacional - 7 de Outubro de 1989, Sábado, 11 horas da manhã
- Festival de Salsamaggiore (Itália)
- Parcomondo-Vacelli
- Festival de Pesaro (Itália)
- Festival de La Rochelle
- Festival de Outono de Paris
- Festival de Toronto
- Festival de Locarno (Suíça)
- Festival da Flandres
- Festival de Cadiz

- Seleccionado para a Semana dos Cahiers du Cinema.


Nota: Esta lista será corrigida quando se justificar, com futuras pesquisas ou com o contributo dos leitores. Colabore connosco, corrigindo-nos e dando sugestões.