096. PEQUENOS DRAMAS E ALEGRIAS DISCRETAS
[Poesia]
No n.º 5 de Notícias do Bloqueio, de Dezembro de 1958, uma das publicações onde se afirma o que poderíamos considerar uma segunda geração neo-realista, figuravam poemas de três representantes dessa geração, José Fernandes Fafe, António Reis e Daniel Filipe.
Eram três poetas bem individualizados dentro da corrente a que pertenciam. Um, José Fernandes Fafe, inseria-se no realismo social pela via de uma poesia reflexiva, que não dissociava o pensar do sentir; outro, António Reis, pela recuperação dos gestos mais simples do quotidiano, do que no dia-a-dia há de mais evanescente e íntimo; outro, Daniel Filipe, pela urgência e pela veemência postas no canto de denúncia da ocupação da «cidade» (o último dos três poemas de Daniel Filipe incluídos no fascículo tinha como título «Coro dos adolescentes na cidade ocupada»).
Lirismo que não abdica da dimensão pensante, reflexiva, lirismo dos pequenos nadas, do que não tem história, lirismo comprometido na sua face mais ostensivamente protestária – eis aí outros tantos modos de cumprir, no plano poético, o programa do realismo social na segunda metade dos anos 50.
Dentro do grupo de poetas identificados com o espírito da revista, não poderia haver maior contraste do que o que, por exemplo, se verificava entre as poesias de António Reis, cujos Poemas Quotidianos, 1957, e Novos Poemas Quotidianos, 1960 (reunidos, em 1967, em Poemas Quotidianos, Col. «Poetas de Hoje» da Portugália, com um prefácio de Eduardo Prado Coelho), foram «seleccionados» para publicação por Notícias do Bloqueio, e de Daniel Filipe, que até precisamente ao número 5 fora um dos responsáveis pela orientação literária dos fascículos.
Dum lado, temos um lirismo sóbrio, elíptico, que desconfia dos excessos verbais e que evita toda a ênfase retórica. Do outro, uma poesia que não teme abandonar-se à força torrencial da palavra e que faz da «veemência» e da «insistência» retóricas o seu fundamento maior (cf. o texto de U. T. Rodrigues, «A Poesia de Daniel Filipe», que acompanhava a 1.ª ed. de A Invenção do Amor e Outros Poemas, 1961).
Realismo intimista
O realismo intimista de António Reis fixa-se essencialmente nos pequenos dramas e nas alegrias discretas da vida conjugal. É uma poesia em que tudo tende a girar à volta de um «eu», de um «tu» e do «nós» que se gera no espaço de comunhão, partilha a cumplicidade entre o «eu» e o «tu». A comoção, o sobressalto líricos nascem, para o sujeito, não dos grandes eventos, mas do que de mais simples, trivial há numa vida em comum: a revelação de uma gravidez («[…]// E o teu ventre/polido/de novo me arrepia»); a descoberta de mais uma ruga no rosto da amada («Na mágoa dos dias/amor/nasce-te uma ruga//mesmo de alegria») ou de uma malha caída nas suas meias de nylon («Teia de nylon/desfeita//um golpe branco/a malha/caída das tuas meias// […]»; a consciência aguda do real conhecimento do outro («Enquanto estudo/oiço-te na cozinha//sei o que fazes/o que pensas/sentes//[…]»); a dor insuportável da perda de um lugar que foi testemunha da vida e da morte («Mudamos esta noite//E como tu/eu penso no fogão a lenha/e nos colchões//onde levar as plantas//e como disfarçar os móveis velhos//Mudamos esta noite/e não sabíamos que os mortos ainda aqui viviam//e que os filhos dormem sempre/nos quartos onde nascem//Vai descendo tu//Eu só quero ouvir os meus passos/nas salas vazias»).
A sobriedade, a contenção da escrita poética de António Reis, a recusa de se servir de proclamações mais ostensivas de denúncia de um estado de coisas injusto, não significam, de modo algum, que no registo magoado, melancólico dos seus poemas se não possa perceber o estremecimento provocado no seu lírico pelos desequilíbrios existentes na sociedade.
É, temperado por uma resignação reminiscente, no plano literário, do estoicismo de Ricardo Reis, o receio do «desemprego» e da «velhice» que abala o sujeito e a sua interlocutora, em «Que foi feito de nós»: «Que foi feito de nós/Ah Clara nada invejes//todos mais ou menos/ficamos tolerados/e aguardando//receando como tu/o desemprego e a velhice//vendo/crescer/os nossos filhos sem sorrir». É o retrato delicado da pobreza envergonhada dos casais que se não podem permitir o supérfluo, acrescentar o «ter» à dignidade do ser, em «Depois das 7»: «Depois das 7/as montras são mais íntimas//A vergonha de não comprar/não existe/e a tristeza de não ter/é só nossa//E a luz torna mais belo/e mais útil/cada objecto». É, a partir da sinonímia imperfeita de «brisa» e «vento» e da conotação poética e prosaica de um e outro termo, a chamada de atenção para a extrema penúria em que vivem, na cidade onde o sujeito assiste ao seu envelhecimento, os que trabalham, sem terem uma muda de «roupa», em «Na cidade onde envelheço»: «Na cidade onde envelheço/não há brisa/há vento//A brisa é para o amor/e para os cabelos//Na cidade onde envelheço/A roupa tem de secar/durante a noite//os operários levantam-se cedo//e o seu amor é simples/ e no trabalho». É a discreta devassa à intimidade das famílias modestas, que mal atingem o nível da estrita subsistência, a atenta observação da difícil manutenção de uma imagem de dignidade por parte dos que operam milagres de transformação a partir do mesmo mas que não conseguem evitar o «atraso» no pagamento de uma pequena quotização, em «Hei-de entrar nas casas»: «Hei-de entrar nas casas/também//como o silêncio//A ver o retrato dos mortos/nas paredes/um bombeiro um menino//a ver os monogramas bordados nos lençóis//os vestidos virados/os vestidos tingidos/os diplomas de honra/e as redomas//E a caderneta dos Socorros Mútuos/e Fúnebres/em atraso». É, com uma nota um pouco menos contida que o habitual, no meio das privações a que nada escapa, do necessário ao supérfluo, o desejo de uma partilha total na amizade, e no espaço que privilegiadamente na cidade a consagra – o café –, «do maço de cigarros/aberto sobre a mesa/e à-discrição», em «Já deitado»: «Já deitado/e pensando no escuro amigos/há um poema de café que quero escrever ainda//o poema do maço de cigarros/aberto sobre a mesa/ e à-discrição». Quando não é o mesmo, perante a necessidade sentida de não esquecer os que tombaram na luta contra a injustiça, a denúncia pública da «cobardia» colectiva, como acontece em «Não esqueço os mortos»: «Não esqueço o mortos//Não esqueço os heróis//Não esqueço/o luto/das famílias//todos silenciosos//Denuncio/publicamente/a nossa cobardia//e quem mente».
Arte da sugestão
Não é, porém, este último o tom dominante na poesia de António Reis, que raramente faz uso de tal veemência acusatória, preferindo-lhe antes, como vimos, o registo recatado dos efeitos de uma situação injusta sobre o quotidiano de «heróis» apagados que dificilmente acendem aos mais modestos níveis do «ter». Tom de pública acusação, de luta, de «ofensiva», de imersão na voz coral há-o, sim, nos textos de Daniel Filipe publicado no n.º 5 de Noticias do Bloqueio (atentese nos títulos dos poemas, «Ofensiva Primavera».
«Lutaremos meu amor» e «Coro dos adolescentes da cidade ocupada»), e incluídos, 3 anos depois, em A Invenção de Amor e Outros Poemas, que, em volume, marca a afirmação plena da 2.ª fase – a fase interventiva – do poeta.
A diferença entre os dois poetas é, desde logo, sensível a nível da forma da expressão: preferência pelo verso curto, em António Reis; predilecção pelo verso longo de Daniel Filipe. Uma poesia reduzida ao essencial, que vive muito de uma subtil arte de sugestão e que aposta na participação do leitor, em António Reis; uma poesia da explicitação, da repetição, do recurso a todos os meios expressivos destinados a reforçar a importância e a urgência da mensagem, em Daniel Filipe.
Fernando J. B. Martinho
Jornal JL, pág. 7, 17 de Setembro de 1991