Conversa no Mogadouro
Margarida Cordeiro
nasceu em 1938, Mogadouro
(Continuação)
Falemos da pesquisa que faziam, que era de certeza muito grande e muito aprofundada.
É difícil. Eu e o António tínhamos um modo de trabalhar que... talvez haja mais casos destes no mundo, mas pessoalmente não conheço ninguém. Nós tínhamos longas conversas, falávamos horas e horas por dia, trocávamos pontos de vista, fatalmente; duas pessoas que se entendem bem, que não se criticam uma à outra mas também não se inibem de dizer: "Esta ideia fílmica pode ser aperfeiçoada", forçosamente. Funcionando ao mesmo tempo, conseguíamos evitar que se caísse no patético, no lesser than life. É o que eu chamo ao cinema português, é menor que a vida, ainda é mais chato que esta vida de aldeia global! Nós procurávamos potencializar o que víamos, e realmente respeitávamo-nos muito e trabalhávamos – disse isso para uma entrevista francesa – como se fossemos um grupo, um grupo de confiança. Nós não dizíamos ao outro: "Essa ideia não presta", dizíamos: "Vamos pensar bem acerca dessa ideia, não acho que seja isso". Mas o que falávamos não era: "Aquela mulher falou assim e deslocou-se assim"; era: "Isto ficava bem encadeado desta ou daquela maneira2. Era uma pré-montagem.
Houve algum nome da pintura, da literatura, da filosofia, do cinema ou mesmo da psicanálise que tenha sido significativo para o vosso trabalho?
Não, no meu caso, não. Tenho imensas influências porque leio imenso e realmente as minhas ideias não são "originais", são fruto da minha experiência e do que as outras pessoas me têm transmitido, pessoas já mortas, que escreveram. Mas não me lembro de ter pegado numa ideia e de a ilustrar, nunca peguei numa ideia de um livro mesmo que goste muito da pessoa que estou a ler. Não, as pessoas influem em mim de uma maneira profunda, ajudam-me a ser um humano diferente, a encontrar raízes. Tenho-as, é evidente. A minha experiência não seria nada se eu fosse cortada das minhas fontes de informação. Devo tudo a toda a gente, é o mais que posso dizer. Agora, esse tipo de influencia consciente, isso não, nunca. Isso traduz-se fatalmente num cinema inferior.
Queria dizer que, tendo em conta que qualquer um desses filmes é um cinema muito especial, muito conceptual...
É irrepetível. Por isso acho um crime terem-nos cerceado o Pedro Páramo. O António ainda estava vivo, foram cerca de dois anos. Era a nossa saída da província pela primeira vez. Era o culminar do que tínhamos feito até ali.
O Pedro Páramo era o vosso quarto projecto, mas não conseguiram apoio do IPC.
De todo!
Voltando um pouco atrás: o Trás-os-Montes, o Ana e o Rosa da Areia fizeram o percurso dos festivais.
Andaram e andam, por todo o mundo. Nos festivais grandes de muito movimento, como o Festival de Berlim, perdem-se. Já depois do António morrer, fui várias vezes a França, mas a primeira vez adorei. Era numa aldeiazinha que só tinha uma rua. Não me esqueço nunca, foi a primeira homenagem ao António, apenas uma rua, casas de um lado e do outro. Estava lá muita gente dos Cahiers du Cinema. Um festival pequenino com poucos filmes e gostei imenso. É um dos festivais que está na minha cabeça, em Lussas (Ardèche), a sul de Lion.
Não havia um determinado tipo de festivais em que os filmes fossem acolhidos de outra forma?
Os grandes festivais são como as feiras, com carrosséis, propaganda, certa "vedettes", essas coisas...
Algum dos vossos filmes teve exibição comercial em Portugal?
Sim, o Trás-os-Montes, o Ana e o Jaime. Só o Rosa de Areia é que não entrou em circuito comercial. E por uma razão: a Inforfilmes estava a dissolver-se, o filme pertence à Inforfilmes e aquilo está complicadíssimo. O Trás-os-Montes foi exibido primeiro em Bragança, numa sala de cinema, depois em Miranda, porque os actores eram todos daqui; foi exibido no largo porque não havia sala de cinema na altura; e depois em Lisboa foi exibição comercial. O Jaime, com muita honra para nós, foi estreado com o Couraçado Potemkine [de Serguei Eisenstein]. Lembro-me do António ter ficado muito orgulhoso por os filmes estarem juntos.
Como foi a reacção da crítica aos vossos filmes?
A crítica sei-a toda, porque está coleccionada, tenho um dossier impressionante, dado que tive de o fazer para concorrer como o Pedro Páramo. Concorri duas vezes por ano, durante oito anos – mais dois anos com o António, foram dez anos. A crítica era muita boa, em geral; o João Lopes, o Leitão Ramos, o João Mário Grilo por vezes também falava bem; nos actores, o Artur Semedo... Agora não me estou a recordar.
E o público?
É evidente que são filmes que o público entende mal. Diga–me uma coisa: o público gosta da Roda dos Milhões, como é que vai perceber um filme como os nossos, tão trabalhados? São pedaços de gourmet, para quem percebe de filmes, e mesmo assim... Não têm o que o público está habituado a ter, apoios de atenção: uma jovem, sexo, violência, acção rápida, que é o que estão a fazer certos portugueses, estão a tentar ir por aí.
Concorreu durante dez anos com o projecto Pedro Páramo, e desistiu de fazer cinema porque o projecto nunca foi aprovado.
A concorrer, legalmente. Com curriculum, com sinopse, com planificação, com nomes de actores, com co-produção espanhola, com co-produção francesa, com co-produção italiana. Foram mudando, inclusive. Só na Suíça tivemos já os dois ou três projectos de co-produção que ao longo do tempo foram caindo, claro. Tive sempre co-produção, tinha era de arranjar dinheiro aqui também.
A única razão porque não voltou a filmar foi porque não teve a comparticipação nacional, portanto.
A razão porque eu não filmei foi porque deixaram fazer filmes portugueses outros que não os meus.
Por vezes os filmes da Margarida e do António Reis são um pouco comparados com o cinema do Jean Rouch. Sente alguma afinidade?
Não sinto. Gosto muito do Jean Rouch, do que vi gosto imenso, mas não tem nada a ver connosco. Ele faz um filme etnográfico. Eu sou suspeita, gosto do que ele faz, gosto de etnografia e ele diz coisas lindíssimas; mas o Jean Rouch está muito perto da recolha etnográfica.
Quais são os escritores para si mais significativos?
Novalis, está ali, nunca me separo. Montaigne, Kafka. Dizem que existiu o Homero, A Ilíada. Rilke, Jean Follain, René Char, Lautreamont...
E pintores?
Adoro o Goya, o Paul Klee, o Rembrandt, o Bacon, o Mark Rothko, o Velasquez, os Flamengos...
Gosta mais de romance ou de poesia?
Não gosto de romance. Adoro poesia.
E cineastas?
Jean Renoir, Jean-Luc Godard, Jean Rouch, Dovjenko, Eisenstein...
Se lhe dessem a oportunidade de ter todo o dinheiro que quisesse para fazer o que quisesse, o que faria?
Queria ser astronauta. Gostava de fazer parte de uma missão tripulada, da próxima, que vai a Marte. Quer uma coisa mais terrena? Uma coisa mais terrena, era assim: congelar o dinheiro da cultura para o cinema durante vinte anos e só deixar fazer filmes aos jovens. E castigar os cineastas que nos últimos onze anos estiveram a fazer coisas. São duas atitudes drásticas.
Tem acompanhado a produção cinematográfica dos cineastas mais jovens?
Sim, os que tenho podido ver na Cinemateca. Vi o Manuel Mozos, a Teresa Villaverde, o Pedro Costa, sei lá...
(Continua...)
Ilda Castro - Cineastas Portuguesas 1874-1956, págs 92-107, Câmara Municipal de Lisboa, 2000.