068. "ANA" - Texto de Rodrigues da Silva a propósito do êxito do filme no estrangeiro
A arte é, provavelmente, uma experiência inútil. (...) Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas; deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. (...) Essa experiência inútil que é a arte (...) é, no entanto, uma coisa explosiva. Mais do que os Pershing 2 e os SS-20.
Agustina Bessa-Luís,
Longos Dias Têm Cem Anos
"Ana" no estrangeiro
Por economia de espaço, não referiremos as dezenas de páginas que já hoje a crítica internacional de cinema ocupa com «Ana». Diremos – se isto diz ainda alguma coisa a alguém neste país – que «Ana» esteve já presente nos Festivais Internacionais de Veneza, Berlim, Hong-Kong, na Semana dos Cahiers du Cinéma, na retrospectiva de Digne (com «Jaime» e «Trás-os-Montes») e nos Festivais de Roterdão, Tenerife e Figueira da Foz (única exibição em Portugal).
Vai participar, ainda, nos Festivais de São Paulo, Locarno, Mannheim, Edimburgo e Flandres. Foi ante-estreado em Paris, no Centro de Cultura Portuguesa da Fundação Gulbenkian, e estreado, comercialmente, na mesma cidade, em 8 de Junho último, continuando em exibição com a menção na impressa de "visão indispensável". Está distribuído para exibição comercial na Bélgica, Alemanha, Suíça e Áustria, para além de outras cidades da França. Em Portugal, não passa. Quem tem medo da sua exibição pública?
«Ana»
No estrangeiro, o deslumbramento
Em Portugal, a censura e a maldição...
A história é simples, em termos de notícia, de protesto ou lamento: Portugal corre o risco de não chegar a ver aquele que, um pouco por toda a parte, no estrangeiro, se diz ser como que a reinvenção do Cinema, ou da arte e da paixão de ser português.
«Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro (autores já de «Jaime» e de «Trás-os-Montes»), estreia e é premiado lá fora, perante um público e uma crítica deslumbrados.
Em Portugal é a maldição. O filme não passa e não se sabe quando, ou mesmo se passará.
Em causa, como não podia deixar de ser neste país desgraçado, um empecilho burocrático, levantado por quem administra a arte mas não a faz; por quem dirige a cultura mas não a cria.
As más condições técnicas dos laboratórios portugueses não permitem a passagem em condições de uma cópia de 16 para 35mm. Os autores de «Ana» exigem que a operação seja feita num laboratório francês, onde se encontra o negativo, única garantia de ser respeitada, integralmente, a fidelidade da obra, tal como a conceberam e realizaram.
Em qualquer país, isto seria aceitável, atendendo para mais à obra já feita pelos autores, atendendo fundamentalmente à rara beleza deste novo filme que é «Ana».
Em Portugal, não. Aqui, no país dos burocratas, que não cedem; dos tecnocratas, que se instalam; dos funcionários de tudo e dos comerciantes de todos, que proliferam; aqui, a cultura continua a ser de somenos, a arte um luxo, a paixão sempre subversiva.
Aqui, a mediocridade promove-se, a vulgaridade dá-se ares, a facilidade compensa-se, o gosto médio instala-se apelidando-se de divertimento de massas o que não passa de uma manta de retalhos emprestados, um mosaico superficial sem tradição, nem utopia.
Aqui, um empregozito já não é mau, o lar um refúgio, a TV diz quanto baste, que mais é preciso, se o dinheiro é pouco? A crise como desculpa, num país que um dia, através de uma sondagem (a do Expresso da semana passada), descobre que um em cada quatro dos inquiridos não se importaria que Portugal fosse uma província espanhola...
«Ana» nada tem a ver com isto. É um contacto visual, um murmúrio, um silêncio; um poema, uma paixão; a redescoberta de Portugal e do melhor e mais original de nós próprios por quem faz do Cinema uma aposta de vida, o enamoramento de uma escuta e de um olhar, não um negócio do ver e do ouvir.
Por isso, querem condenar «Ana» a uma nova censura. Por isso, a legião kafkiana dos burocratas encolhe os ombros, e deixa andar, interpretando como quer as leis e os despachos, porque sabe que o tempo é a raiz do esquecimento, para mais num país de entusiasmos fáceis e continuidades cada vez mais difíceis.
Testemunho
António Reis descobri-o, há quinze anos, nas páginas de um livro (Poemas do Quotidiano), que líamos e relíamos e cujos poemas sublinhávamos, verso a verso escolhido, e reescrevíamos às vezes, à mão, com a nossa letra, como uma memória ou um recado (Amo-te os defeitos (...) / a melancolia / que sempre encostas ao meu peito" (...) "Já não sei / onde / começa e acaba / a tua face" (...) "Em paz / temos vivido / como quem / sabe / um segredo" (...) "Não é a tua mão / filha / que eu levo / na minha mão / é uma raiz / que eu planto / em mim mesmo").
Foi mais tarde que soube que era o mesmo, António Reis, o poeta e o cineasta, numa altura em que ao seu nome não mais deixei de associar o de Margarida Cordeiro, sua companheira na arte e na vida, transportando os dois a sua mesma obra com o amor de quem traz um filho ao colo.
«Jaime» vi, numa sessão quase privada, andava a revolução na rua e não era lá assim muito cómodo falar a gente de um louco que passara toda a vida num hospital a dar corpo aos seus fantasmas com bocados de lápis e restos de papel.
«Trás-os-Montes» veio depois. Foi em Paris, por acaso; e com ele (ou com o belíssimo plano final do comboio a apitar, longe, longe, na paisagem nocturna) descobriria, comovido até às lágrimas, que não mais deixaria de ser português – aqui.
De «Ana» mais não falo, agora. De Margarida Cordeiro, não sei, que não a conheço. De António Reis recordarei sempre a primeira vez que o vi, homem apaixonante e apaixonado, meia leca de gente, cuja voz, melodiosa surdina, fechada ainda nos seus ditongos de raiz portuense, reinventa, numa linguagem sedutora, palavra a palavra, a nossa língua.
Disse-lhe: "É uma honra"; respondeu-me: "Amigo".
Hoje, aqui estamos a lutar pela mesma causa...
Rodrigues da Silva
Jornal Diário Popular, de 6 de Julho de 1983