(Continuação)
AQUELA GENTE VEIO DE ONDE HAVIA URZE
J.C.M. – Mas tu quebras, embora, diferentemente, sem o tom gritado da provocação cósmica que o travelling é continuamente a tensão desses espaços claustrofóbicos! Estou, por exemplo, a lembrar-me da inserção de um plano de urzes do exterior, na sequência do pátio que, aliás, é também a introdução, no filme, da primeira nota de cor ou, se preferes, do primeiro acorde de cor.
A.R. – Mesmo assim, é um raccord sentimental, com a festa ao gatinho e é, também, sépia daquele espaço, uma espécie de chamada: aquela gente veio de onde havia urze, ou de onde ainda se pode sonhar com urze, ou, apesar de tudo, apesar de todas as condições em que os homens vivem, ainda há urze, ainda há água. Ou tem que haver! Talvez aquele homem que acaricia o gato tenha tido um, ou talvez esteja a acariciar a urze. Depende do delírio do espectador. Não sei. Não posso oficiar.
J.C.M – A presença de uma cisão entre os seres e as coisas, a flagrante brutalidade desse corte é particularmente premente no filme e acho que, ao falares em raccord sentimental, tocaste o seu movimento mais profundo – o da evocação (que não é só nostálgica) de uma unidade perdida. É inútil recordar que esse é, talvez, o movimento mais fecundo de toda a arte moderna, da que vai de Rimbaud a Klee, passando, sei lá, por Pessoa, Brecht, Godard, Joyce, Stockhausen, Char, etc., mas julgo não errar muito arriscando-me a dizer, e não leves isso em conta de entusiástica valoração, que, ao restabeleceres ficticiamente essa unidade, inventaste os mais belos falsos raccords da história do cinema, em minha modesta opinião.
A.R. – Hoje estamos como as pessoas chamuscadas. A concepção antropocêntrica começa a ser ultrapassada tão tardiamente quanto civilizações milenárias nunca a tiveram. Parece que acordámos tarde de mais, para nos apercebermos que o homem se integra numa pequeníssima coisa que é a terra, num grande fenómeno da vida do universo. Eu, homem, é pouco. E é imenso...
UM POUCO O QUE KEATON FAZIA COM OS «GAGS»
J.C.M. – Falemos, por exemplo, da água. As variações de intensidade da água, a distribuição de regiões fluidas, ao longo do filme, obedecem a valores muito chegados a certas pesquisas formais da música moderna (estou a pensar em Stockhausen), mas propiciam também uma inventariação muito fecunda de uma antropologia estrutural do imaginário.
A.R. – Às vezes, é só a água que a gente bebe, outras vezes, a água que nos arrasta. No caso do Jaime, a utilização da água deve-se ao facto de ser muito obsessiva, nos seus escritos. Ele nasceu à beira de um rio, pescou lá muitas vezes, muitas vezes regou os campos com as suas águas. A água, no filme, é um símbolo, inclusive na sua própria cor ou curso. Tomemos a água do chafariz. É um chafariz vulgar, mas, quando o vi, pareceu-me uma coisa terrível. Hoje, acho fundamental que o chafariz exista naquele lugar. De repente, é o fio da vida, uma ampulheta, é uma água que aquele deus, digamos assim, manda parar. A água do rio é a água dos corvos, e das raízes arrancadas, e dos nós dos troncos. Quando vemos aquela panorâmica da montanha, por aquela montanha correu muita água, muita fonte. E o Jaime nasceu à beira do Zêzere e esteve sempre ligado à água. Mas se a água permite um significado imediato de denotação, também permite o de conotação, e eu acho que o que é fundamental, em todo o filme, é o significado imediato de cada plano ser imediatamente destruído pelo jogo de associações e de contradições que estabelecem entre si. Nesse sentido, parece-me que existe um pouco o que o Keaton fazia com os «gags», ou seja: o filme está permanentemente a fugir da mão. O espectador não tem tempo de ter a boca doce, nem de agarrar os planos por estes serem agradáveis. Tem de os agarrar, no contexto do filme todo. Há conclusões que só irá tirar mais tarde, outras há que, eventualmente, será forçado a abandonar. Isto não tem nada a ver com complexidade. Foi assim que sentimos e trabalhámos. Não há intelectualismo de nenhuma espécie. Há conhecimento, mas conhecimento que foi utilizado como uma ferramenta que ia servindo cada vez melhor, para atingirmos o fim que pretendíamos. Não é um filme difícil, não sendo um filme linear.
«DEIXEI AS ARCAS»
J.C.M. - Precisamente porque obriga a um enorme trabalho de leitura, é um filme fascinante (o que não quer dizer, antes pelo contrário, que ceda à fascinação) e, tanto mais, quanto te vais encarregando de apontar pacientemente algumas pistas. Assim, gostava que falasses um pouco da sequência da casa do Jaime.
A.R. - Das arcas. Deixei as Arcas. É o mesmo caso das águas. Aparentemente, é a arca de madeira, mas é a barriga de um animal, uma casa que se deixou, um sonho que foi violado, uma paisagem que ficou. Quando ele diz deixei as arcas, para mim, é tudo o que o obrigaram a deixar. A arca é envolvente, mas ele deixou as arcas abertas, deixou as arcas ao tempo, e a prova é que, nos desenhos, as figuras dos animais também são arcas. Um barco é uma arca, a casa, esburacada ou não, também.
J.C.M. - O plano final da sequência, sobre o tecto, fecha esse círculo, mas, entretanto, o percurso pode ser percorrido em toda a multiplicidade dos seus sentidos: há o real, há o surreal...
A.R. - Se for surrealismo como dimensão do homem para alterar o real, para lhe acrescentar o que está nas profundidades e nas alturas e não, propriamente, o copo que se agarra, mas o copo que nos corta, o copo por onde a gente bebeu, o copo que a gente transfigura, a sequência é surreal: o conjunto da construção dos planos também é paredes de arca, arca cósmica, arca de sonho.
J.C.M. - O guarda-chuva aberto, no interior, sobre o círculo de milho...
A.R. - Não é o guarda-chuva dádá. O guarda-chuva é um instrumento dos pobres, é um instrumento útil, é um instrumento poético. Temos a infância cheia de guarda-chuvas, desde o guarda-chuva, com buraquinhos, onde cabiam sempre quatro ou cinco, na vinda da escola, até ao guarda-chuva que é posto atrás das portas. Sei lá. O guarda-chuva do amola-tesouras das feiras, o guarda-chuva das cidades sem gabardina, o grande guarda-chuva do Extremo Oriente... O guarda-chuva é o cogumelo, uma árvore, e ali, fundamentalmente, também é o preto no amarelo.
J.C.M. - Mas não se diz que o guarda-chuva aberto, dentro de casa, dá sorte?
A.R. - Sempre ouvi dizer: «Não abras o guarda-chuva dentro de casa que dá azar!». Aí talvez o Jaime tivesse tido azar, mas quando diz que deixou as arcas - e o Jaime tinha o delírio de minas de ouro - não podia haver, sem parafrasear Guerra Junqueiro, melhor ouro quer o milho. Espero que, um dia, o ouro da terra seja o milho, e não o ouro da África do Sul. E, de repente, fecharam-se aquelas portas todas, tudo aquilo era de uma madeira maravilhosa e, subitamente, lembrei-me de dar largas à imaginação. Aliás, na infância, vi secar muitas espigas dentro de casa porque, quando chovia, tinham de as tirar das eiras. Ao pôr ali o milho, lembrei-me do guarda-chuva, e ao pôr lá o guarda-chuva, lembrei-me dos grandes acordes modernos do amarelo e do preto, tudo começou a convergir para uma emoção profunda. Depois, foi tudo o que a sombra do guarda-chuva arrastou, à medida que tudo se organizava, quer cinematográfica quer plasticamente. Quando o Jaime tinha um delírio, pegava numa picareta e começava a picar no cimento do hospital, para descobrir a mina de ouro. Também tive o meu delírio. Peguei na picareta... Não tenho vergonha por isso. Não te esqueças que essa sequência começa por ser vista pelo olho do burrinho e, imediatamente, o olho do burro é o olho humano.
J.C.M. – Percebe-se que é um animal, mas não se chega a saber que é burro.
A.R. – Sim, não se sabe, mas esse arranque, sem alterar o plano, é logo uma elipse. Esse olho do animal é imediatamente o olho do observador. Quando se vê o primeiro plano, na casa, é o burrinho que está a ver o milho amarelo e o guarda-chuva, mas quando se vê o plano seguinte, automaticamente, é uma pessoa que está a espreitar, através de uma fechadura, as arcas do Jaime. No fundo, são também as arcas da nossa infância. E a palavra arca é muito bonita.
J.C.M. – E a cabra? E as maçãs penduradas? E a máquina de costura?
A.R. – São as três maçãzinhas de ouro. São três planetas. São o amarelo necessário, naquele castanho imenso. A máquina de costura não é a do Fernando Pessoa, nem a dos filmes expressionistas. É... As maçãs são as maçãs da aldeia que se penduram no tecto para não apodrecerem. Não sei se estiveste alguma vez num palheiro, mas quando já não há fruta, os nossos tios da aldeia metem-na entre a palha dos alpendres para ela durar, e come-se fruta todo o ano. E há, na casa, um cheiro muito perfumado! Tudo aquilo estava abandonado, era a casa que o Jaime, em certa medida, tinha deixado. Era preciso amarelo naquela casa, era preciso levar três flores ao Jaime. Isto parece literatura, mas se quiseres chamar-lhe candura, amor pelo Jaime, chama, embora, no filme, tires outro significado das maçãs.
A GENEALOGIA DA CABRA
J.C.M. – Lembra-me um poema de René Char que, um dia, vi escrito num quadro negro, no interior de uma casa que cheirava, curiosamente, a maçãs.
E a cabra?
A.R. – Se quiseres uma dimensão mitológica para ela, se quiseres ir para muito longe, vamos para além dos Celtas. Co’os diabos, se há pessoas que se preocupam com a sua árvore genealógica, eu preocupo-me muito com a genealogia da cabra.
J.C.M. – Mas para chegares aos Celtas, era preferível teres posto um porco.
A.R. – O porco só não me dava ali, na poética das relações. A cabra era também a malteia. E a Diana não anda muito longe. Uma gaita de capador é o capador que toca, mas é um bocado o Pã que anda naqueles montes. É uma actriz também. É a cabra perdida porque o Jaime era pastor. Isto ainda parece literatura, mas repara que houve um tempo muito grande dado à cabra. Ela chega a comer a sua própria sombra. E ouve vozes. Ela ouve vozes. Há uma voz, no Canto dos Adolescentes de Stockhausen que arranca sobre ela. E é bonita também. Plasticamente é uma maravilha. E é a cabra metida numa casa. Também é uma das arcas. É a arca metida na arca. E há aquela respiração funda que ela tem. E há o espaço fechado. Há a grande arca aberta que vimos anteriormente, a grande aberta e terrível, que é quase um caixão com a cama diametralmente oposta.
J.C.M. – Para mim, é a mais bela actriz do cinema português.
A.R. – E acaba justamente a comer a própria sombra. Foi um escândalo. Não imaginas o trabalho que foi para a segurar. Tivemos de a pegar ao colo para subir dois andares. E demos-lhe a categoria de conviver com a gente, como já viveu, noutros tempos. Dignamente. As pessoas só têm cães de luxo em casa. Não sei porquê. Podiam ter uma cabra. O Picasso gostou imenso delas. E tinha razão. Vivia com elas, mas é um plagiador. A cabra até tinha a caca bonita. Sem brincadeira.
É um animal lindíssimo. Sem a mais pequena ponta de malícia ainda nos chegaram a perguntar se não a queríamos a pôr a dizer mé...
J.C.M. – Podia-la ter posto a dizer Mé-lo Neto. Ou melhor: não. Podia ficar vaidosa, em excesso, ou excessivamente triste.
A.R. – Eu sei lá! Claro que, em toda a sequência, só há duas cores. É toda construída em valores – até para opor às cores fortes da pintura do Jaime – graves, donde saltam as cores vivas das maçãs e o vermelho do fio da dobadoira. Mais nada.
São aquelas cores fundamentais com que, muitas vezes, com um só tom, um pintor segura uma composição inteira.
(Continua)
Entrevista de João César Monteiro a António Reis, publicada no Cinéfilo, n.º 29, págs. 23-32, de 20 de Abril de 1974, a propósito da estreia de "Jaime".