domingo, novembro 17, 2013

205. “TRÁS-OS-MONTES” – Texto de João Bénard da Costa

[Anos Gulbenkian]

DE "TRÁS-OS-MONTES" A "AMOR DE PERDIÇÃO"

Na carta que escreveu ao Dr. Azeredo Perdigão, Paulo Rocha anunciava igualmente que desistia, pela segunda vez, do subsídio concedido a “Ilha dos Amores” e propunha que, no Plano III do CPC, esse filme fosse substituído por “Trás-os-Montes” de António Reis e Margarida Cordeiro.

Rocha, como dito atrás, tinha um duplo subsídio (Gulbenkian e IPC) para esse filme. Mas foi lúcido ao considerar que, em 1975, não havia condições para levar a bom termo uma produção, que, além de muito cara, pressupunha filmagens em Portugal e no Japão, senão uma co-produção com aquele país. A “Ilha dos Amores” baseava-se na vida do escritor Wenceslau de Moraes (1854-1929), bem como na sua relação com o poeta Camilo Pessanha (1867-1926). Ambos emigraram para o oriente nos finais do século XIX e Wenceslau fixou-se no Japão e converteu-se ao xintoísmo. Paulo Rocha queria aproximar dois imaginários, segundo o poema chinês Nove Cantos de Chu Yuan (poeta chinês do século IV a. C.) e procurar relações com Os Lusíadas e com o episódio da Ilha dos Amores. Não era definitivamente conversa que rimasse com o povo e com o MFA. Por isso, Paulo Rocha aceitou um convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros para ocupar o posto de Conselheiro Cultural na nossa Embaixada em Tóquio e por lá se deixou ficar até 1980. A “Ilha dos Amores” viu a luz deste país lânguido e inerme, mas só a viu sete anos depois em 1982. Já lá votarei.

Ao propor Reis como substituto – o que a Fundação aceitou – Paulo Rocha era coerente com o que exprimiu quando soube em 74 do subsídio do IPC: “António Reis (…) ficou adiado. De todos os filmes propostos parecia-me o mais urgente e o mais promissor”. Assim, por ínvios caminhos, “Trás-os-Montes” foi o único filme desses anos gerado exclusivamente pelo ventre Gulbenkian, da última vez que tal sucedeu. Foi o filme que fechou a porta dos anos 70-76 e fechou-a com chave de ouro.

“Trás-os-Montes”, que não é um documentário sobre a província desse nome, mas uma espécie de auto-sagrado, é um filme que se pode aproximar do realismo mágico, servindo o ténue fio narrativo da obra para realçar o lado mágico de personagens e paisagens, buscando raízes no nosso imaginário colectivo. Primitivismo e modernidade fundem-se no cinema antropológico de António Reis e de sua mulher, Margarida Cordeiro, recorrendo ao onirismo, ou a vestígios primevos (a sequência no Domus de Bragança, em que os actores dizem um texto de Kafka, vertido para mirandês) e manifestando total crença na força ressurgidora das artes.

Reis e Margarida insistiram que as primeiras apresentações da obra se fizessem nessa província que tanto amavam.

Recordo uma peregrinação em Maio de 1976, em que os realizadores foram acompanhados por amigos como Miguel Torga e Nuno Bragança, para estrear o filme em Bragança e Miranda do Douro. Não podia ter corrido pior. Os transmontanos, muito escaldados com as campanhas da 5.ª Divisão que os tinham eleitos em símbolos do nosso atraso, queriam ver progressos e estradas, casa estilo “maison” e jovens desempoeirados. Perante aquela visão arcana, desesperaram, nada percebendo. Em Miranda, a coisa esteve quase a chegar a vias de facto. Já a vozearia era enorme (projecção ao ar livre) quando chegou a cena em que eu mais temi ver o caldo entornado. Era uma refeição numa casa pobre, mas onde se guardava dignidade inteira. Neve era o repasto dos comensais. Felizmente, a assistência não compreendeu o que eles comiam. Não reconheceu a iguaria, embora desse largas à sua estranheza perante tal ceia. Tivessem eles percebido e talvez a projecção não tivesse chegado ao fim nem o projector ficasse inteiro.

Seguiram-se abaixo-assinados dirigidos à Gulbenkian pedindo a excomunhão do “insulto feito às gentes transmontanas”. Felizmente, e mais uma vez, a apresentação na Gulbenkian, em Junho, na presença do General Ramalho Eanes, em vésperas da sua primeira eleição presidencial, deu a volta à coisa. Tanto o Dr. Perdigão – que, em 1975, deixara de ter o Pelouro das Belas Artes que desde 1960 fora dele  – como o Dr. Pedro Tamen (n. 1934) que nesse ano lhe sucedeu e o deteve até à sua aposentação em 2000 – gostaram muito. No final, o Dr. Perdigão ainda disse a António Reis: “Talvez, você não devesse era ter chamado ao filme «Trás-os-Montes». Porque é que não lhe deu outro título?”. Reis olhou-o frontalmente, com aquele olhar que às vezes era terrível e outras dulcíssimo, e respondeu-lhe com uma pergunta: “E porque é que o Senhor Dr. deu o nome de Calouste Gulbenkian à Fundação?”. “Boa resposta, Reis, boa resposta”, comentou o Presidente que não mais deixou de o apoiar. 

Como eu disse, estávamos em 1976. 

Em 75, para dar contas do que ainda sobrava do Plano II e III, estrearam-se “Cartas na Mesa” de Rogério Ceitil, a 6 de Janeiro, sem elogios nem vitupérios, que nem uns nem outros mereciam (Assis Pacheco colaborou outra vez nos diálogos); ”Brandos Costumes” a 18 de Setembro e “Benilde ou a Virgem-Mãe” a 21 de Novembro. Oliveira fora praticamente o único cineasta que, durante o “ano quente”, se não envolvera nas ruas, e o passara na Tóbis, a filmar essa adaptação de Régio, segundo painel da “tetralogia dos amores frustrados”, iniciada com “O Passado e o Presente”. Em, Portugal, praticamente ninguém reparou no filme, apresentado quatro dias antes do “estado de sítio” e visto por raríssimos. Mas, dois anos depois, foi esse filme que lançou a carreira internacional de Oliveira, quando foi projectado em Bolonha e em Roma numa Rassegna del Cinema Portoghese, em que Oliveira foi, pela primeira vez, aclamado como um dos maiores. Ao contrário do que muitas vezes se diz, foi a Itália, e não a França o país que descobriu Oliveira e onde, neste últimos trinta anos, “Il Maestro” obteve grande parte das suas maiores consagrações, recebendo dois Leões de Ouro (Veneza 85 e Veneza 2004), o prestigiadíssimo Prémio Donatello e inúmeras condecorações. 

Em 77, já Oliveira estava a filmar o terceiro painel, “Amor de Perdição”, a sua histórica adaptação do livro de Camilo. Foram acidentadíssimas filmagens, com muita gente a jurar que aquele filme Oliveira não o levava ao fim e sem que o dinheiro (vindo do Plano do IPC de 75) chegasse para um filme de 4 horas e vinte minutos. A RTP entrou a certa altura, sob a condição do filme ser pela primeira vez projectado na televisão e só depois em salas; a Gulbenkian subsidiou-o directamente, a pedido do cineasta, já na fase final. 

Mas quando o filme chegou à televisão, em finais de 78, foi o bom e o bonito. Era a época em que a primeira telenovela brasileira – a Gabriela de Jorge Amado – batia records de audiência, chegando a interromper conselhos de ministros. A comparação foi fatal a Oliveira, que não se submeteu a nenhum cânon televisivo nem transigiu com qualquer moda. Ainda por cima, a obra fora rodada a cores, mas televisão ainda era a preto e branco. Não me recordo, em minha vida, de uma tal campanha contra um filme português. “Aniki-Gagá” foi o mais doce nome que lhe chamaram, levando tal “dislate” à conta dos 70 anos do cineasta.

Teria sido o fim dele, se o produtor Paulo Branco (n. 1950), à época um exibidor radicado em Paris, não tivesse decidido estreá-lo, em Maio de 1979, no cinema Action-République, que ele programava.

O Le Monde dedicou-lhe a primeira página, o Festival de Roterdão seleccionou-o. 

Em Portugal, foi a incredibilidade total. Sugeriu-se que se tratava de uma campanha paga e ainda hoje estou para perceber como é que alguém, com dois dedos de testa, acreditou que o Conselho de Administração da Gulbenkian, sob a minha pérfida influência (que nessa altura, outros contos, não valia um caracol) comprara o Le Monde ou o Le Monde se deixara comprar para defender um cineasta português. 

As coisas melhoraram e pioraram quando Paulo Branco, em hábil operação, estreou também em Paris, “Trás-os-Montes”, com enorme êxito crítico. Melhoraram porque no estrangeiro se percebeu que Oliveira não era um caso único e que havia que tomar o cinema português a sério. Pioraram porque perante um célebre número dos Cahiers du Cinéma  (n.º 276 de Maio de 1977) em que Oliveira e Reis eram capa, não faltou quem acusasse os espíritos daninhos da Gulbenkian de tentarem reduzir esse cinema a Oliveira e a Reis. 

Só que, em 78, como hoje, Portugal é Portugal. Se “Trás-os-Montes”, depois do vexame citado, viu a crítica esgotar elogios quando se estreou a 11 de Junho de 1976 (depois obteve o Prémio Especial da Crítica em Toulouse, um grande prémio em Manheim, em 77 e uma Menção Honrosa em Lecce, 79), “Amor de Perdição”, quando chegou às telas do Quarteto a 25 de Novembro de 1979, fez a mais da gente virar de bordo e descobrir no filme os méritos que lhe havia negado no ano anterior. 

No final da década, que começara com o arranque do CPC, a Gulbenkian voltava a ser protagonista da história do nosso cinema com os apoios que deu a Reis e a Oliveira. 

João Bénard da Costa – Cinema Português: Anos Gulbenkian, p. 40-42, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007.