terça-feira, novembro 05, 2013

200. «TRÁS-OS-MONTES» - Reportagem de Alexandra Lucas Coelho - 1

[34 anos depois da rodagem]

Nos passos do filme Trás-os-Montes I
Como tudo e nada mudou em terras de Miranda

Uma aldeia que já é vila wireless, e atrás do monte um pastor que se enforca. Um pauliteiro que ontem dançou em Nova Iorque, e hoje não tem emprego. Escola para todas as crianças, e não há crianças. A seguir ao 25 de Abril, António Reis e Margarida Cordeiro filmaram estas terras entre Miranda e Bragança. Que é feito dos lugares e das pessoas de Trás-os-Montes? Um Portugal interior que fomos, e ainda somos. Primeira parte.  

Quando em Bragança perguntamos:

- Qual é o melhor caminho para Miranda? 
Toda a gente responde:
- Ide por Espanha.
No mapa parece um saltinho, duas cidades tão próximas lá na ponta interior de Portugal. Mas, vendo melhor, a estrada boa é a que sai de Bragança, dá uma volta espanhola e desce para Miranda. A outra, toda portuguesa, é às curvas. Havemos de a fazer (e de enjoar), mas à volta. Para já, vamos então por Espanha.
Quando António Reis e Margarida Martins Cordeiro aqui começaram a filmar Trás-os-Montes, havia uma fronteira a sério, com posto da guarda e contrabandistas a monte. Dava uma trabalheira a entrar - e agora entramos mesmo sem querer.
É a hora do poente. As folhas brilham como espelhos. As placas na estrada anunciam Alcañices, depois Parque Natural do Douro Internacional e, enfim, a aldeia mirandesa de Ifanes/Infainç.
Estamos em território bilingue.
O mirandês ainda não era língua de lei no tempo em que Trás-os-Montes foi rodado. Mas as leis da capital ficam muito longe, diz um mirandês no filme. É um excerto de Kafka (A Grande Muralha da China), mas quem não sabe não identifica. Aquelas palavras são a realidade desta gente, não têm nada de ficção.
Assim é ao longo do filme, rodado em 1974-75, estreado em 76, pouco visto desde então, e no entanto essencial para saber quem somos.
Trás-os-Montes fala-nos "de quanto pode ser dito sobre a nossa morte-vida, por quem dela vive e morre", escreveu João Bénard da Costa. É "um dos grandes actos de amor e criação que a arte feita por portugueses nos tem dado" e "uma das poucas pedras do caminho que nos pode ajudar a reencontrar a direcção".
E quando o filme se estreou em Paris, no Le Monde saiu "uma ordem terrorista assinada pelo Joris Ivens e pelo Jean Rouch, os dois mestres supremos do cinema documental: "Allez voir, toutes affaires cessantes, Trás-os-Montes!" [Deixem tudo para trás e vão ver Trás-os-Montes!]", lembrou o cineasta Paulo Rocha.
"Nunca, tanto quanto sei, um realizador se havia empenhado, com tal obstinação, na expressão cinematográfica de uma região: quero dizer, a difícil comunhão entre homens, paisagens e estações", disse Rouch.
António Reis e Margarida Cordeiro não registam o lugar sem interferência. Agem sobre ele, constroem-no até lhe tocarem no fundo, na sua memória mais antiga - as fábulas do tempo pagão, o fantasma da fome e do abandono, a vida com todos e com os animais, o gelo que se parte com os pés e se chupa nas palhinhas, a forma como a luz muda ao longo do dia, um pastor que assobia no Verão como Pã e treme no Inverno enrolado num cobertor. Tudo isso é real como um poema.
Cá estamos, 34 anos depois da rodagem.
Granito, xisto, azulejos de emigrante, e entramos em Miranda, o abismo do Douro à esquerda, a ruína do castelo à direita, Lhargo de L Castielho.
Aqui fica a pensão-restaurante Santa Cruz. No tempo de Trás-os-Montes era só restaurante. A dona lembra-se de os autores aqui virem comer. E agora o filho dela vai ser presidente da câmara. Toma posse depois de amanhã.

Padre, sobrinho de padre
Um néon vermelho a piscar: "Restaurante." Mais adiante néons azuis, verdes: cafés. Noite de Outono e nem uma brisa. Gente à porta, como o Miguel, que anda na Covilhã em Ciências Biomédicas mas não deixa de ser pauliteiro.
Há o grupo da cidade e depois cada aldeia tem os seus pauliteiros. Os que aparecem em Trás-os-Montes eram de Duas Igrejas. Dirigia-os um padre que deixou de o ser para casar, António Rodrigues Mourinho. O nome aparece no genérico com um agradecimento especial.
Morreu há anos, mas o sobrinho vive em Miranda, aconselhou a responsável da cultura na câmara: "É historiador." Também se chama António Mourinho, e, como se verá, também foi padre e deixou de o ser para casar.
- Vão até à casa em frente às antenas, com uma palmeira - indica-nos, por telemóvel.
Miranda já tem uns arredores, umas rotundas, quem vem de fora até se perde. Mas cá está António Mourinho ao portão, a fazer entrar. Uma Nefertiti emoldurada na parede, reposteiros e torneados, mesa de vidro com bibelôs. Aí pousamos o portátil para mostrar as cenas com os pauliteiros. Trás-os-Montes não está disponível em DVD, mas temos uma gravação, gentilmente emprestada pelo cineasta Manuel Mozos, de quando o filme passou na RTP.
- É o grupo de Duas Igrejas, não há dúvida! Cá está a Casa Paroquial, o poço, as escadas. O meu tio viveu ali 42 anos e eu fui praticamente ali criado. Os pauliteiros ensaiavam no andar de cima que o meu tio mandou fazer.
Nessa altura, o tio ainda era padre.
- Eu casei em 83 e ele casou em 84. Este é o meu tio! - aponta. - E este é o tio Belmiro, que era ensaiador principal e tocava bombo. O meu tio ia buscá-lo à Freixiosa.
Agora o filme mostra uma mulher à porta de um quarto a ver dos filhos. Três para a cabeceira, dois para os pés, cinco numa cama.
- Não me parece que o meu tio tenha dado grande aceitação a isto - diz António Mourinho, franzindo a cara. - Acho que no modo de pensar dele isto não retratava o povo transmontano, que é de Vila Real para cá. O nosso Trás-os-Montes tem regiões muito diferentes, o quente e o frio, o da oliveira, o do trigo, o da amendoeira, o da vinha.
Aponta para o ecrã.
- Isto é uma amostra, mas o meu tio nunca ligou grandemente a este filme. Sim senhor, havia casas destas, em que os miúdos dormiam aos quatro e cinco, e dizia-se que havia fome. Mas comia-se presunto e galinhas criadas em casa, mais saborosas que em Lisboa. Nós não tínhamos meios de comunicação, agora fome não tínhamos.
Já amanhã, em Duas Igrejas, vamos encontrar um pastor a falar de fome. E depois de amanhã, em Bemposta, Margarida Cordeiro vai contar como a mãe dela tinha a barriga inchada de fome.
O tão português desagrado do ex-padre Mourinho é o de quando o filme se estreou em Miranda. Houve revolta, quiseram cortar os cabos, queimar a película porque aparecia uma mãe a apanhar neve e a servi-la à mesa. É essa cena que aparece agora no ecrã, com a extrema realidade de um poema.
- A nossa gente olha para isto e diz: "O quê! À nossa mesa nunca se comeu neve!" Criou-se uma ideia muito irrealista quanto a Trás-os-Montes.
Mas António Reis, nascido junto ao Porto, achou-se renascido em Trás-os-Montes, conhecia estas terras como suas, e Margarida Cordeiro era transmontana, da Bemposta.
- Uma psiquiatra idealista que nunca captou a realidade - teima António Mourinho. - Bemposta não era assim tão pobre. Não havia mendigos!
No filme também não há mendigos.
- Trás-os-Montes só passou a ser isolado com o liberalismo. Nos séculos XVII e XVIII, principalmente depois que o bispo veio, havia teólogos, filósofos. Tivemos três bispos que foram reitores da Universidade do Minho.
Aponta para o ecrã.
- Há um exagero aqui. Isto seria 20 por cento da realidade. Quase toda a gente colhia o seu pão, tinha a sua horta, matava o seu porco, tinha a sua capoeira e coelheira. Não havia dinheiro, mas trocavam-se sardinhas por pão.
E hoje?
- Está muito diferente. Há melhores meios de transporte. O que não mudou foi a indústria, Trás-os Montes não tem. E os campos estão todos por semear. A falta de trabalho chegou a tal ponto que emigram cada vez mais para a Espanha, a Suíça, a França. As nossas aldeias, é tudo velhos, praticamente. Não há crianças. Hoje as crianças ficam caras e os pais não se aventuram.
Mas se alguém puser isto num filme, haverá por certo quem não goste.
Noite em Duas Igrejas
Meia dúzia de quilómetros até Duas Igrejas e está tão escuro como na estrada. Ainda haverá vivos? E estas janelas fechadas, estas ruas desertas, nem um cão, o velho apeadeiro do comboio.
Em Trás-os-Montes há comboios que chegam de noite, do nada, e atravessam os montes, só fumo e assobio. Hoje, restam os apeadeiros abandonados, com os seus beirais de Estado Novo.
Damos voltas de carro à procura da Casa Paroquial, damos com a igreja, e nada, ninguém.
Até que ao fundo de uma rua aparece um néon laranja. Chegamos perto: "Associação Cultural Pauliteiros de Miranda." E a placa antiga por trás: "Casa do Povo, património e sede da Junta de Freguesia e Centro de Saúde de Duas Igrejas."
Lá dentro também há luz, bar com balcão de alumínio, mesas de fórmica, ecrã ligado na SIC, André, 42 anos de peso, anfitrião para o que precisarmos, ao lado da mulher, Paula. Ainda é hora de jantar, não há muito movimento, querem ver imagens de Trás-os-Montes, sim senhor.
- É o padre Mourinho!
- O tio Belmiro!
- A Ana Maria!
- Parece a garota dela agora!
- O Domingos, que agora é presidente da junta!
- O Artur!
Vão buscar fotografias de há mais de 30 anos, o Artur vestido de pauliteiro.
Paula deita um mel escuro no chá de limão, e que mel.
Ainda há escola em Duas Igrejas?
- Há, mas fechou. As crianças vão a Miranda.
Quantas crianças?
Paula conta pelos dedos.
- Sete.
Nas paredes há fotografias antigas a preto-e-branco. Começam a entrar homens. Bebem uma mini a olhar para a televisão. André, que também foi pauliteiro, traz uma placa de honra: "Associação de Pauliteiros de Miranda do Douro - pelo espírito de corpo, dedicação, sacrifícios e exemplar patriotismo." Foram a Newark pelo 10 de Junho. Os de agora, está claro, não os do filme.
E nem de propósito, entram dois jovens pauliteiros. Não têm ensaio marcado, mas dado o interesse logo ali começam a congeminar ensaio para amanhã. Para dançar são precisos oito, para tocar três. Mas podem dançar um ensaio sem música.
Fica combinado.
Do rio ao pastor
De manhã há que ver isto, o Douro nas arribas de Miranda. O sol bate na água e os choupos deixam cair folhas como lâminas de ouro. Para a direita são as barragens, Miranda, Picote, Bemposta. Mas para a esquerda, depois da curva, não há mão humana. Vêem-se águias, abutres, pinguins do rio, azinheiras centenárias encastradas nas rochas.
Do lado de lá é Espanha.
E alguém há-de aparecer para nos fazer ver o "2", que é mesmo um "2" perfeito na rocha. A lenda é que as solteiras que o não vejam não casam, e as casadas que o não vejam são enganadas. Para os homens ficava a melhor parte naturalmente, e não foi assim há tanto tempo, ainda agora. Por exemplo, Ilídio Cristal, que tem um café aqui, não compreende que haja um grupo de pauliteiras.
- Nunca houve - é o argumento dele.
À beirinha da água, Alípio e Celeste vieram à pesca. São reformados, "a caminho dos 70", da aldeia de Cércio.
- Antes de haver a ponte, passavam com umas cordas para a Espanha.
- Antes era crime, agora não.
Estão a falar em português. Não falam mirandês?
- Correctamente. É a nossa primeira língua. Não é um dialecto, é uma língua, e hoje já se ensina na escola. Mas se a falássemos, não capichavam nada. Teneis que ficar aiqui muito tiempo para poder aprender al mirandês.
Os dois filhos, formados e bem, lá na capital, falam mirandês, mas os netos já nasceram longe daqui, como hão-de falar?
Sendo quase meio-dia, Alípio e Celeste vão almoçar e nós vamos pela estrada das aldeias, até encontrarmos um pastor, no fim de Duas Igrejas. Está sentado nas ervas enquanto as ovelhas pastam.
Trás-os-Montes abre e fecha com pastores, sempre crianças.
- As crianças eram proibidas de andar com o rebanho, mas andavam porque os pais tinham outras coisas que fazer - diz.
Tem nome de nobre, Lázaro Afonso de Castro. Boné sobre as rugas, mãos duras sobre o cajado, 62 anos.
- Agora só os velhos é que fazem isto.
O seu rebanho conta 130 ovelhas. São para criar carne.
- Aqui não se faz queijo. Em Mogadouro já se faz queijo de ovelhas, mas aqui não.
Pausa. As nuvens passam-lhe por cima da cabeça. Sol-sombra.
- É uma miséria ter um rebanho. Tenho de pagar muitas rendas para fazer forragem para elas. Quem tira o benefício é o dono da terra. Agora, se tivesse um cento de cordeiros, vendia-os bem. Mas o ano veio ruim, seco, miserável. Para o que cultivamos, não deu nada. Nos outros anos fiz 150, 200 rolos de aveia, e este ano 30 ou 40. Só quem não pode fazer outra coisa é que faz isto. Eu tenho as vértebras completamente destruídas, não posso trabalhar e tenho de me sujeitar a fazer isto. Digo-lhe a verdade: se não derem um bocadinho de subsídio, a gente morre de fome. Ainda outro dia um pastor suicidou-se. Meteu uma forca ao pescoço porque não conseguia cobrir a despesa, já tinha muito débito. Teria 54 ou 55 anos. Tinha oito filhos. Viveu toda a vida do gado e agora viu-se obrigado a suicidar-se. Tinha um rebanho muito bom, alugava muitos terrenos, mas chegou um momento em que já não tinha dinheiro para pagar a vacinação. Chamava-se Narciso, mas chamavam-lhe Granado. Era de Vilar Seco.
A dez quilómetros daqui. E a família?
- O gado, venderam-no. E os filhos andam a ganhar a vida em Espanha.
Lázaro costuma vender trigo à cooperativa de rações para vacas e porcos.
- O ano passado pagaram a 20 cêntimos o quilo. Este ano a 13. Depois acumulam-se as despesas.
Mas a vida dele não foi isto. Emigrou para França, como muitos.
- Estive em Bordéus 20 anos nas obras, no duro, por isso é que tenho a coluna como tenho.
E asma crónica. Por causa da saúde voltou a Portugal, o dinheiro de emigrante deu-lhe para mais 20 anos, até agora.
- Vou ganhando para sobreviver, mal, mal. Tenho uma neta com cinco anos. Tinha dois e meio quando a mãe morreu de leucemia.
A filha dele.
Põe a mão dura nos olhos, baixa a cabeça. Assim ficamos.
- A vida às vezes começa a virar, a virar. É má. Muito má.
O filho está em Paris, vem passar férias em Agosto. A neta vive com ele e com a mulher. É uma das sete crianças de Duas Igrejas que vão à escola a Miranda.
Quartel-general na Gabriela
Casas amarelo-canário. Outro rebanho antes de Fûonte Aldé. Uma pastagem com água e uma pedra pousada, como suspensa. Oliveiras e vinha.
A próxima aldeia é Sendim.
Sendo hora de almoço, vamos à Gabriela, restaurante e pensão, inventora da posta mirandesa. A receita passou para a filha Alice e depois para a neta Adelaide, esta rapariga que afinal tem 50 anos, não se acredita. Carne daqui, grelhada na lareira, um molho com vinagre, e batata em quartos alourada. Assim se alimentou a equipa de Trás-os-Montes.
- Era aqui que faziam quartel-general. Vinham às dez e às onze da noite, cheios de fome. "Ó tia Alice!" E a minha mãe dava de comer àquela gente toda. A dona Margarida Cordeiro é que lhes pode contar tudo.
Lá iremos, lá iremos.
- O António Reis lidava com as pessoas tu cá tu lá. Tinham empatia com ele. Quem andava com ele era porque queria. Ofereciam-se para colaborar. E como a mulher era daqui, mais confiança arranjou. Nesse tempo Sendim tinha muito mais gente, muito mais crianças. Tinha oito professoras primárias. Hoje, são três para 50 ou 60 alunos, e vêm destas aldeias à volta. Aqui não há emprego, indústria, e as pessoas fogem. Morrem 25, 30 pessoas por ano, nascem três ou quatro.
Onde?
- Vão nascer a Bragança. Agora até já nascem muitas no IP4. Já não há hospital em Miranda, vai tudo para Bragança e para Mirandela. Se temos um enfarte, adeus viola.
Sendim chegou a ter 4000 pessoas. Hoje tem pouco mais de mil. A filha de Adelaide acabou Medicina em Coimbra. Quem vai ficar com a receita da bisavó é o filho, engenheiro florestal de formação. Há muita gente formada em Sendim, diz Adelaide. Mas isso também quer dizer que poucos vão ficar em Sendim, porque poucos podem viver disto, o homem na horta, a mulher na cozinha:
- Tenho a minha batata, os meus licores, as minhas compotas, o meu azeite, o meu feijão, os meus legumes. Era o meu pai que tratava, agora é o meu marido.
Não se passa fome, mas falta gente.
A contra-corrente disto são os novos activistas, a associação que defende os burros em extinção, ou o centro que o melómano Mário Correia montou, quando veio viver para Trás-os-Montes. Adelaide telefona-lhe e anuncia que estamos a caminho.
É andar uma rua, nem cinco minutos, isto se não desviarmos na Rue de Roi para falar com dona Ana da Conceição Afonso, que tem 80 anos e se veste de preto, com lenço, como as mulheres de Trás-os-Montes. Também tem abóboras no telhado como as há no filme, e podia ter sido uma feirante de sucesso, porque logo ali nos pesa um quilo de figos, que na verdade não pedimos. Dois euros e meio.
- Tenho os filhos pelo mundo. Um em Pinhal Novo e os outros no Porto.
O tamanho do mundo varia sempre. Do degrau de dona Ana, parece tudo muito longe. Mas voltando a esquina, no Centro de Música Tradicional Sons da Terra, tudo parece perto. Além disso, como esclarece Mário Correia, que agora nos abre a porta, basta um computador.
- Sendim é vila wireless. "Quem não semeia o progresso faz morrer a tradição."
A frase está na parede.
Mário guarda em perfeita organização toda uma discoteca, biblioteca e filmoteca que são memória viva. E usa a melhor técnica possível para as recolhas de música e literatura oral que tem feito, 1800 horas.
- Gravar, gravar, gravar, para documentar.
Sem lamentos.
- Ainda bem que já não cantam nas cegadas, a apanha do trigo, que era duríssima, de sol a sol, com temperaturas de 40 graus. A poeirada que se levantava, o calor asfixiante.
Mas ainda bem que pauliteiros e gaiteiros estão em grande.
- Fiz aqui cursos de gaiteiros e hoje tenho muita proa de os ver por aí com os pauliteiros. Nos anos 80 estavam praticamente desaparecidos.
Oito a dançar
À noite, de volta a Duas Igrejas, vamos então ver como dançam aqueles que nasceram depois de Trás-os-Montes.
Abrem o salão grande da associação e põem-se frente a frente, quatro de cada lado. O mais novo tem 16, o mais velho 26, a média ronda os 20. Gel no cabelo, blusões, jeans. Um soldado (César); um empresário agrícola (Emanuel); um aprendiz de pasteleiro (André); um estudante de Electrónica (José) e um restaurador que tirou Electrónica (Paulo); um finalista de liceu que quer ser veterinário (Edgar); um mecânico empregado (Bruce) e outro desempregado (Tiago).
Quem vai fazer o salto-de-castelo - pirueta por cima de todos os outros - é José e depois Edgar, eleitos os mais ágeis.
Dançam três lhaços, ou seja três danças, com um mais-velho a fazer percussão com a voz. E no fim falamos em roda.
O que é que lhes falta?
- Dinheiro.
- Movimento.
- Gente.
- Uma pessoa sai à noite e não se passa nada.
- Mulheres.
- Trabalho.
- Trabalho há muito. Emprego.
- Indústrias.
- Ajudas do Estado para a cultura.
- Médicos.
- Um hospital ou um helicóptero. Tive o azar de me falecer um irmão.
E o que significa ser pauliteiro?
- Um gosto.
- Uma honra.
- Orgulho. Não deixar morrer as nossas origens. Tem de pôr que fomos a Nova Iorque em Junho.
Pois, a Newark.
- Não. Também dançámos em Times Square à noite.
No meio da rua. O trânsito estava cortado. Com saias e paus, imaginem a sensação.
A família do pescador
Bemposta é a aldeia seguinte. A família Velho vive numa casa logo à entrada, com uma figueira no quintal. No genérico do filme aparece várias vezes o apelido Velho. Entraram quase todos, pais e filhos. Em terras de Miranda, são eles os protagonistas.
Cá está António Velho, a quem todos chamam Escalo, ou Escalico, nome de peixe, porque era pescador e peixeiro. Em Trás-os-Montes é ele de motorizada a trazer peixes a uma garota; é ele de barco a ensinar o filho mais velho a pescar; é ele que se vem sentar no escano - o tradicional banco de lareira -, ao lado da mulher. São deles os cinco filhos numa só cama.
E aqui estão os filhos, trintões, quarentões, solteiros, de mãos nos bolsos, maus dentes.
Foi a droga, diz-se em Bemposta, dirá Margarida Cordeiro. Pai e mãe trabalharam muito e é o que se vê. Cheguemo-nos ao quintal: comida de galinha, baldes velhos, restos. Cá fora enjoa e lá dentro moscas.
Mas aos 72 anos, a energia de António "Escalico" Velho é um portento. Só anda de bengala, dói-lhe muito uma perna, e não pára nem se cala, riso aberto.
Chama a António Reis "poeta Reis".
- O poeta Reis pediu e a gente ia. Não ganhávamos nada, às vezes lá davam mil escudos.
Maria da Glória Barros Novais Velho aparece de bata nas traseiras, grisalha, botas de borracha, dentes a menos. No filme tem uma beleza melancólica, escura. E de repente olha-nos a direito e é ela:
- "Não fica ninguém. Vai-se embora a filha da Mariana e amanhã quem será?"
São as palavras que António Reis e Margarida Cordeiro lhe deram para dizer, há 35 anos. Ainda as sabe de cor, aqui, nestas traseiras do mundo.
- Outra vez a doutora pôs-me de chefe numa moagem com uma bata branca. Outra vez eu fazia que vinha do campo. Punha as alforjas às costas e ia ver se os filhos estavam bem.
Não filmaram em casa deles, levaram-nos para Duas Igrejas.
- Mas era a realidade, dormíamos quatro numa cama. Antigamente não tínhamos posse para cada um ter um quarto e eles foram criados assim.
Continuam quatro em casa. A filha em França.
- Primeiro emigrou para Itália. Era empregada da dona Donatella.
Donatella Versace.
- Ganhava mais do que as outras todas, mas a dona Donatella era uma senhora muito difícil. Agora a minha filha está há três anos em França, trabalha a tomar conta de casas de férias.
E os rapazes aqui?
- Trabalham para a junta, a limpar estradas e a fazer muros. Dois vão para o fundo de desemprego. Os outros têm estado na Espanha, mas lá também está no "paro".
Vamos para a cozinha ver o filme, toalha de plástico, lareira no chão, pote de ferro.
- Quando o rio gelava, partíamos o gelo à bordoada, tirávamos o peixe com as mãos, sem ver nada, escalos, barbos, bogas. Era da meia-noite até de manhã, porque mais cedo o peixe estraga-se.
António chama o filho mais velho para se ver no filme. Ele vem, 45 anos sem jeito, mas de perfil é o Carlos de Trás-os-Montes.
Ainda têm barco no rio. Combinamos para as oito da manhã.
E às oito da manhã somos nós que nos atrasamos. Pai e filho estão prontos, metem-se no carro, guiam-nos pelos caminhos florestais no meio do nevoeiro, até descermos a pique para o Douro, e que visão.
António "Escalico" Velho caminha nos flutuadores como se não tivesse bengala e senta-se na proa do barco, um barquito de chapa com remos de madeira e tábuas para sentar. O filho rema e não aceita ajuda. É como no filme, só eles e a água, entre encostas de zimbro, esteva, pinho e azinheiras.
- Eu e a minha mulher dormimos muitas noites neste barco. Fazíamos a cama aqui até chegar a hora de pescar.
Chama "flor" à mulher, conta como "tinha vaidade nela", ele um órfão "criado aos pontapés". E a voz de Escalico, o homem do rio, é tudo o que se ouve, a chamar gajos aos corvos marinhos e poeta a António Reis. A conhecer o rio de olhos fechados.
- Eu era terrível para os peixes!
Amanhã: Das aldeias de Bragança a um atelier no Porto
Dia 22 na Pública: Entrevista com Margarida Cordeiro 
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As citações de João Bénard da Costa, Paulo Rocha e Jean Rouch estão disponíveis no blogue antonioreis.blogspot.com, trabalho minucioso e dedicado de António Neves, ex-aluno de António Reis (1927-1991).

Alexandra Lucas Coelho (texto) e Nelson Garrido (7 fotos).

Jornal Público, P2, capa e págs. 4 a 7, Sexta-feira, 6 de Novembro de 2009.