sábado, outubro 31, 2009

188. ANTÓNIO REIS EM TRÁS-OS-MONTES

[Recolhas]



TRÁS-OS-MONTES
por António Reis

NOTA - Do Boletim da Casa Guérin, extraímos, com a devida vénia, este texto do poeta António Reis sobre Trás-os-Montes, evocação de uma província que o ilustre poeta de «Poemas Quotidianos» ama e sente como poucos e através da qual (por Miranda, Rio de Onor, Curalha) tem feito a sua peregrinação de artista e estudioso inquieto, sobretudo como folclorista e como cineasta.

Vejo, outra vez, as fotografias que tirei em Trás-os-Montes. Quase todas mentem. Nenhuma dor intolerável nelas ficou. Nenhuma esperança. Qualquer raiz.

Trás-os-Montes seria para Paul Strang [Strand] ou Van Gogh, que chegavam a terras de fogo sem pressa, e só partiam exangues, com os sentidos destruídos. Seria para Miguel Torga, que foi criado por uma águia e nunca esqueceu o gosto de uma cebola com sal.

... porque contemplei fragas e a amplidão deixei.
Vi queimar florestas e as razões oculto.
Ouvi cantar as aves e o cristal perdi.

Fermentava o feno.
Voltavam a ramos os engaços.
O linho era erva, a amêndoa silêncio.

Como quem parte de uma sombra para um poema, e de uma folha guardada para a memória, parto de imagens fluídas para uma província perdida.

Nove meses de Inverno. Três de inferno.
E a Primavera [primavera]?

Bato a porta abertas. Ninguém responde.
Há colmo caído no chão do [de] sobrado. Azeite vertido, manhuços intactos.
Corro à fronteira seca e grito. Clamo. Nomes com geada.
Ninguém responde...

E os arados? Os arados deixados às portas das vossas casas, gravados à navalha nas portas das vossas casas?

Se me queres algo
Sal-me al camino.


Ao caminho? Só vejo penedia de chumbo, tresmalhada, estalada,
oh mirandeses!

Corvos. Corvos e águias. Águias e lobos.
E longe, o som de lã de um tamboril... pastora muda chamando o seu rebanho.

Quedos, quedos, cavaleiros!
El-rei [Rei] vos manda contar...


Somos vultos e estamos longe num cavalo tremedal.

Anda daí, se queres benir,
‘garra la capa e bamos.
El camino ié de todos,
la capa ié de nós ambos.


Mas a terra... quem vai fabricar a terra?
E ainda esta manhã ouvi, em Cércio, a Alvorada!

Tu não ouviste, em Cércio, a Alvorada...
ou cantigas de abaular; a cantilena da pedra.
Ouviste falar de erva no trigo,
a trovoada
e as pedras dos moinhos a caírem na água.

Deixais, só, D. Filomena, com um pente de oiro na mão!

Sonhas...

a D. Filomena é uma nuvem, um polvorinho de folhas.
Quem vês com pentes de oiro na mão? As mulheres vestidas de negro? As suas mãos pousadas no regaço têm cartas vindas de França.

Azedões em muralhas. Estevas cobrindo os castros.
Cerâmicas neolíticas na escuridão das grutas.

Em vão os juncos esperam ser cestos. Em vão as ribeiras esperam as moiras.
Nos olmos cavados não há tentações.

Talvez nos pombais haja amor ainda,
a cal seja um ovo
e um ovo uma ave...

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É xisto de casas que apanho do chão. É uma tábua que prego e uma candeia que acendo. É uma talha que lavo, uma azeitona que corto.
Um vento que estendo.

É um baldio que escavo. Uma gadanha que afio. Uma encosta que subo e um tempero que lembro.

É uma trança que solto.
Um escano que fecho,
que não vendo,

e uma roca que fio...


ANTÓNIO REIS
Trás-os-Montes – Junho de 1969


Jornal de Notícias, Suplemento Literário, págs. 17 e 18, de 6 de Novembro de 1969. Entre [] apresenta-se o texto como se encontra no Boletim da Casa Guérin.